Reflexão a Rosa Caramela, um conto do Escritor Moçambicano Mia Couto

Um conto do Escritor Moçambicano Mia Couto
Um conto do Escritor Moçambicano Mia Couto

Administração e Gestão

20/05/2014

INTRODUÇÃO À OBRA

A obra Cada homem é uma raça (1998), do escritor moçambicano Mia Couto, é um conjunto de contos, e um deles é “A Rosa Caramela”. A protagonista dessa narrativa é Rosa Caramela, nome atribuído pelo povo à moça, que é corcunda: “Se conhecia assim, corcunda-marreca, desde menina” (COUTO, 1998, p. 15). Devido a essa imperfeição física, ela é objeto de riso e exclusão por parte da comunidade.
A ALTERIDADE E O CONTO “A ROSA CARAMELA”

A situação descarta no ponto anterior, que evidencia o preconceito com o diferente, permite trazer à luz a discussão sobre a alteridade.
Para introduzir a temática da alteridade, fazemos uso aqui das palavras de Nadja Hermann, que diz que:
“A alteridade é outro, do qual depende a própria identidade. O outro e o eu estão numa relação complexa em que se remetem reciprocamente. Assim, o outro não só está fora como dentro do indivíduo. [...] o outro só existe para que o próprio sujeito possa se reconhecer. A alteridade seria, então, o meio necessário (enquanto negatividade) do reconhecimento do próprio sujeito como consciência de si”. (HERMANN, 2006, p. 72 e 73)

Vejamos, então, como se apresenta a questão da alteridade no texto literário em questão.
A alteridade pode ser também chamada outridade, pois só existe na relação interpessoal de um Eu e um Outro. Já diz Eric Landowski que ela
“só pode construir-se pela diferença, o sujeito tem necessidade de um ele – dos “outros” (eles) – para chegar à existência semiótica, [...] o que dá forma à minha identidade não é só a maneira pela qual eu me defino [...] é também a maneira pela qual objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à diferença que me separa dele”. (LANDOWSKI, 2002, p. 4)

Na narrativa, a identidade de Rosa Caramela é construída pelos outros, que a colocam na posição de alguém sem qualquer pertencimento social:
“A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos continentes. A família se retirara, mal que lhe entregava na vida. Desde então, o recanto dela não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea, sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera à tábua: restava tronco, pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia? Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem sonhado”. (COUTO, 1998, p. 15)

Nesse parágrafo, vemos claramente o caráter de marginalidade de Rosa Caramela, pelas expressões “mistura das raças”, “muitos continentes”, “a família se retirara”, que representam que ela não se identificava por uma raça definida, não tinha vínculos de pátria e família, o que contribuía para que ela fosse excluída do grupo. É inumana a condição de Rosa Caramela: ela é fruto de uma miscigenação, foi abandonada pela família e mora num casebre onde a pobreza está escancarada. Isso tudo se reflete também em seus traços físicos. Os seus olhos apresentam o “redondo cansaço de terem sonhado”, mas o seu rosto é belo e contrasta com a feiura de seu corpo: “A cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender desejos. Mas se às arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se anulava tal lindeza” (COUTO, 1998, p. 15).


Bem, temos nesses trechos iniciais do conto uma grande descrição de Rosa Caramela, com traços bastante singulares e que causam estranhamento. Mas para quem são singulares? Para quem causam estranhamento? Ao levantarmos a discussão sobre a alteridade, essas questões precisam ser respondidas. Isso porque a alteridade pressupõe um Eu (Um) e um Outro, e todos os julgamentos, toda a diferenciação, partem de um ponto de vista, conforme teoriza Eric Landowski. Segundo ele, “o fato de o Outro ser “diferente” não significa, necessariamente, que o seja no absoluto. (LANDOWSKI, 2002, p. 14)

No caso de “A Rosa Caramela”, o que se pode dizer é que não é apenas ao narrador que os traços de Rosa Caramela e sua conduta causam estranhamento. É a todo um grupo social que habita no mesmo espaço que a protagonista e o qual o narrador representa.

Mas voltando a Rosa Caramela, já que as pessoas lhe rejeitavam a comunicação, ela se ocupa com as estátuas, na esperança de poder estabelecer contato com elas. Esse comportamento, estranho para a comunidade, é apresentado pelo narrador: “Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que sofria, essa era a pior [...] palavrear com estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. [...] E ela, frente aos estatuados, cantava de rouca e inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhava” (COUTO, 1998, p.16). Essa atitude de Rosa demonstra sua carência de afeto, agravada pelo abandono do noivo à beira do altar, o qual não comparecera à cerimônia de casamento. Essa era a única história que se contava sobre ela, e até se cogitava que nem noivo havia: “O que parece é que nenhum noivo não havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventava-se noiva, Rosita-namorada, Rosa-matrimoniada.” (COUTO, 1998, p. 17) Assim, pensou-se que a história fosse pura imaginação da corcunda. Mas para ela, o jovem acabara com seu sonho de casamento: “Toda a vida ela sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela rainha, linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as mil buzinas” (COUTO, 1998, p. 16 e 17).

Tudo isso evidencia o apagamento da alteridade, a exclusão máxima do Outro, a ponto de ele ter que buscar num elemento não-humano a atenção, o afeto, o diálogo que não consegue com os homens apenas porque para esses é diferente, anormal. É a desconsideração máxima, que é notada também quando Rosa é internada no hospital e esquecida: “Rosa não tinha visitas, nunca recebeu remédio de alguma companhia”. E assim, a relação que ela já tinha com as estátuas, colocada no início do conto, tornou-se ainda mais íntima, pois “Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, teto: só a pedra lhe dava tamanho. Rosa se pousava, com a leveza dos apaixonados, sobre os frios soalhos. A pedra, sua gêmea” (COUTO, 1998, p. 17). A relação com as pedras não se interrompe com a saída de Rosa do hospital: “Quando teve alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das estátuas, solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes nos dias de chuva, nos tempos de frio.” (COUTO, 1998, p. 17) E acabou por se apaixonar por uma das estátuas:
“A estátua dela, a preferida, era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era monumento de um colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as horas na contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada”. (COUTO, 1998, p. 17 e 18)

O fato de Rosa Caramela venerar a estátua de um colonizador provoca sua prisão, pois ela não permite que se derrube essa estátua, que era um monumento considerado “um pé no passado rasteirando o presente” (p. 20). Essa atitude é interpretada pelos governantes como um desacato, tanto que “O chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura da corcunda escondia outras, políticas razões” (COUTO, 1998, p. 20).

Quando Rosa interroga as pessoas se pode gostar do morto, demonstra sua indignação por ter sido proibida de zelar pelas estátuas. É aqui que a identidade de Rosa Caramela se revela fugazmente. Isso se pudermos falar em identidade. Pensamos que, no caso de Rosa Caramela, parece que nem é ela que constrói sua identidade, isso se acreditarmos que ela tinha uma identidade, uma vez que sabemos dela apenas aquilo que o narrador apresenta. Considerando que a protagonista tenha uma identidade, essa identidade parece construída somente pelo grupo que a cerca, e não por ela mesma. Além do que, “não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre na relação a uma outra” (COUCHE, 1998, p. 183). Portanto, firmando-se no fato de que Rosa Caramela não tem relações pessoais, poderia se dizer, talvez, que ela é uma personagem sem identidade.
Na parte final do conto, o narrador-observador narra uma noite de insônia, quando ele vai ao jardim e vê a estátua arrancada. Vê também Rosa Caramela se dirigir à casa dele (narrador) e seu pai a consolar. Num desfecho inesperado, o pai do narrador se revela Juca, noivo de Caramela, e a convida para irem embora. Fica esclarecido, então, porque Rosa Caramela venera a estátua que está no jardim da casa do narrador. Ela está substituindo o amor por Juca pelo amor à estátua que ele tem em seu jardim.

Ao chegarmos ao final do conto, fica a pergunta por que Juca abandonou Rosa Caramela? Podemos pensar que ele a abandonou à beira do altar para não assumir em público a sua relação com ela. Afinal, o que pensariam os outros moradores se ele se casasse com a moça excêntrica que é Rosa Caramela? E aqui entra a questão do preconceito, da discriminação, profundamente relacionados à alteridade. A discriminação é um grande problema e difícil de resolver.
A DIMENSÃO HISTÓRICA DO CONTO
Após treze anos de combate contra o exército português e as forças salazaristas de repressão, obtidos os objetivos com a assinatura de acordos em 1975, os países africanos de língua portuguesa enfrentariam, a seguir, o impacto de nova guerra, situada no seio da nação. É sob as contingências de aproximadamente trinta anos de guerra, colonial e civil, que os escritores se debruçam. Em primeiro lugar, desvendam as arbitrariedades praticadas pelo império, utilizando a literatura como ferramenta de combate e consciencialização.

Em segundo lugar, abordam os conflitos deflagrados pós-independência, período que se mostrou tão atroz e violento quanto o anterior. Em comum, a atenção do escritor com a História é configurada ainda pela ancestralidade mítica e religiosa, pelas práticas populares, extraídas do passado, como autênticos signos a serem celebrados pela nacionalidade instituída.[1] Este facto parece-nos estar claro no conto Rosa Caramela:

[...] nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas [...], nos chegou a notícia: a Rosa Caramela tinha sido presa. Seu único delito: venerar um colonialista. O chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado [...] era monumento de um colonial, nem o nome restava legível [...]. (COUTO, 1998, p. 5/6)


Ainda na perspectiva de Fornos:


A representação da História pode ser avaliada sob os efeitos da condição étnica e racial. Conquanto examinadas distintamente, tais aspectos atravessam tematicamente a produção literária nas ex-colônias portuguesas. Em vista disso, é sintomático o título escolhido por Mia Couto para um de seus livros: Cada homem é uma raça, coletânea de contos, publicada em 1990, cuja finalidade está em problematizar o vínculo entre nacionalidade, etnia e raça, figuras norteadoras das relações sociais no espaço africano. Nos contos, evidenciam-se tal preocupação, uma vez que as personagens caracterizam-se pelo elemento fenótipo e pela comunidade étnica. (FORNOS, 2011, p 233).

Desse ponto de vista, o de Fornos, é possível vislumbrar no conto os aspectos ligados à etnia, nacionalidade e raça “A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos continentes” ( COUTO, 1998 p5).

A perda do noivo gera em Rosa uma depressão profunda, conduzindo-a à loucura. Família e nação igualmente a rejeitam, categorias singulares na constituição do indivíduo. Sem o aconchego do lar e da pátria, Rosa perambula à noite pelas ruas e praças da cidade, dedicando carinho pleno às estátuas.
Esse circular solitário alegoriza a dolorosa e violenta história do pós-colonial em Moçambique. As consequências das guerras e das diferenças ideológicas são a loucura, a imobilidade e a solidão, aliás, como sucedeu com a grande maioria dos países africanos. O amor em tempos de cólera étnica e racial torna-se inviável, impossibilitando as mestiçagens.

Em linhas gerais as observações sobre as violências provocadas pelo colonialismo português e os desdobramentos políticos pós-independência em Moçambique cercam todos os contos de Cada homem é uma raça. Mia Couto põe sob juízo crítico o império português e o aparato ideológico após a descolonização, apresentando personagens que desafiam as práticas culturais na sociedade colonial e pós-colonial.
Na perspectiva de Fornos (2011) a personagem Rosa Caramela e outras da mesma obra simbolizam a contínua dissolução das identidades. Aleijadas na razão após sofreram os ferimentos provocados pelo amor não concretizado, tais figuras buscam recursos distintos para salvaguardar a desordem emocional.

Diante da veneração a um explorador colonialista português, o governo moçambicano acusa a moça de saudosismo ao passado colonial. Para o comandante militar, a loucura de Rosa escondia razões políticas, senão, por que se opor, com violência, a destruição da estátua pelas tropas da independência? Em respeito à pátria encarceram Rosa e derrubam o monumento.

O episódio ironiza o autoritarismo ideológico nacionalista, sublinhando um dos componentes assinalado por Pires Laranjeira (1995) como fundamentais da escrita de Mia Couto: o humor que acaba por desdramatizar episódios trágicos da nação. Contudo, não significa que a crítica não seja efetuada, mas quase sempre vem suavizada pelo tom humorado, na visão do estudioso. No entanto, é preciso examinar com precisão se tal característica se estende de facto ao conjunto da obra.
No conto e análise, ainda que o humor seja uma nota a ser constatada, tristeza e desconsolo se sobrepõem ao final.

O conto em análise e outros informam acerca do desequilíbrio global que continua a causar guerras, martirizando comunidades em diferentes lugares do mundo. Neste caso, os contos de Mia Couto enfatizam, em especial, para a condição dos marginalizados absolutos que vítimas das políticas internacionais e nacionais se encontram em situações permanentes de risco. São os refugiados da guerra e da fome cujas fórmulas ideológicas oficiais promovidas pelo Estado e pelo capital global estão longe de alcançá-los em suas necessidades mais urgentes.
Para Fornos (2011) os contos analisam o trabalho da cultura como paradigma importante para a compreensão das comunidades e dos indivíduos. Se os universalismos, liberalismo, marxismos, trouxeram dificuldades, igualmente o chamado multiculturalismo pode obliterar as potencialidades do indivíduo e da nação.

CONCLUSÃO

As considerações levantadas acerca da protagonista desse conto, Rosa Caramela, apresentam a exclusão social de que essa personagem é vítima devido à singularidade que lhe é atribuída pelos outros que a cercam. Rosa Caramela é considerada diferente porque não tem uma raça, uma pátria nem uma família; por causa de seus traços físicos, do lugar em que vive, de seu comportamento em relação à comunidade humana. Por esses motivos, ela é excluída do grupo a que pertenceria. Rosa Caramela é uma personagem colocada à margem de qualquer pertencimento social. Apesar de ela compensar sua exclusão pela alternativa do sonho e pelo estreitamento de sua relação com o mundo natural, representado pelas estátuas, esse conto mostra a desconsideração da alteridade. Mostra a dificuldade de que a grande maioria dos seres humanos tem de relacionar com quem lhe é diferente, de conviver com pessoas de pensamento diferente, de atitudes diferentes ou com qualquer tipo de diferença.

Em “A Rosa Caramela”, evidencia-se o ensimesmamento do sujeito, o egoísmo, a desconsideração do Outro. E quão comum é querer ser o Eu hoje em dia e não o Outro. Todo mundo quer pertencer ao grupo do Nós, o ponto de referência. Mas, como diz Landowski, o grupo que se identifica como o Nós, isso é, o dominador, não pode se considerar o único detentor do direito de ser plenamente ele mesmo. Segundo Landowski:

“[...]as pessoas esquecem-se que a diferença ser um fato de natureza, um fato de sociedade: é a diversidade das heranças culturais, dos modos de socialização, das condições econômicas que determina a diversidade dos tipos humanos”. (LANDOWSKI, 2002, p. 24)

as diferenças não justificam atitudes discriminatórias ou preconceituosas. Afinal, “Num mundo de Sujeitos, todo mundo, por definição, é Sujeito do mesmo jeito e no mesmo grau, qualquer que seja a natureza das diferenças que singularizam uns com relação aos outros”. (LANDOWSKI, 2002, p. 24)



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[1] FORNOS, José Luís Giovanoni, 2011, p 233

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Francisco Domingos

por Francisco Domingos

Técnico Médio de Administração Local e Autárquica pelo IFAL- INSTITUTO DE FORMAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL E AUTÁRQUICA. Frequência universitária no Instituto Superior de Ciências da Educação- ISCED/Luanda Especialidade: Ensino de Língua Portuguesa. Frequência Universitária na Universidade Gregório Semedo- UGS. Especialidade: Ciência Política e Administração do Território. Outros Cursos afins.

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