Terapia gênica viral

Terapia gênica in vivo e ex vivo
Terapia gênica in vivo e ex vivo

Biologia

21/04/2014

A terapia gênica atualmente é reconhecida como a verdadeira revolução da medicina, a cura do Futuro. A habilidade de manipular o genoma para aumentar, corrigir ou silenciar expressões de certos genes, de forma transiente ou mais permanente, é o seu princípio de ação, e é através da utilização de vetores virais ou não virais para introdução de genes terapêuticos em alvos celulares apropriados que subsiste uma breve possibilidade de cura de inúmeras doenças até outrora impensáveis.A terapia génica pode ser esquematizada de forma simples:

1| Inserção do gene no vetor;

2| Transferência do vetor transportando o gene terapêutico para a célula;

3| Entrada do gene na célula;

4| Dissociação do vetor e libertação do gene para o citoplasma;

5| Disposição do gene do citoplasma para o núcleo;

6| Entrada do gene para o núcleo;

7| Transcrição do gene terapêutico em RNA mensageiro (mRNA) e transporte para o citoplasma;

8| Tradução do mRNA em proteínas terapêuticas;

9| Secreção da proteína terapêutica ou inserção na membrana celular.

A terapia gênica tornou-se possível após o desenvolvimento de técnicas de transfecção de DNA em células somáticas e alcançou, em 1990, o seu lugar na história da medicina com um extraordinário contributo para a cura de uma doença rara recessiva denominada imunodeficiência combinada grave (SCID).

A transfecção é um procedimento de introdução de genes estranhos em células para a produção de células geneticamente modificadas. A introdução desse material genético (DNA e RNA) nas células e em forma de plasmídeo (vetores circulares de transporte de genes ou fragmentos de DNA específicos) existe numa forma estável ou transitória, dependendo da natureza do material genético. Para transfecção estável ou dita permanente, o material genético com um transgene selecionado para o efeito pretendido, é incorporado no genoma da célula hospedeiro e é capaz de expressar-se mesmo após a replicação celular. Por outro lado, numa transfecção transiente ou temporária, os genes não são incorporados no genoma celular permanecendo em forma de plasmídeos no citoplasma, expressando-se por um curto período de tempo pela perda através de fatores ambientais e divisão celular. A transfecção aborda três metodologias diferentes de entrada do gene na célula: biológica (vírus), química (fosfato de cálcio) e física (electroporação). O principal propósito da transfecção é o estudo da função e regulação dos genes bem como dos produtos provenientes, através do aumento ou inibição da expressão de genes específicos em células e produção de proteínas recombinantes com possíveis fins terapêuticos.

O silenciamento de genes é um recurso quando a mutação ou sobre-expressão de certos genes é responsável por patologias (condições inflamatórias ou neoplásicas). Uma das estratégias de supressão centra-se na utilização de oligonucleótidos que vão hibridar com genes específicos ou com mRNA de forma a inibir a sua transcrição (antigene) ou tradução (antisene). Outro procedimento passa pela utilização de moléculas de RNA de pequena interferência (siRNA), que na célula induz a clivagem especifica de sequências únicas no transcrito de mRNA, travando a transdução e, consequentemente a expressão do gene. Esta última metodologia tem revelado muita utilidade no estudo de patologias neuronais. Porém uma das maiores limitações prende-se com a estabilidade de transporte até às células desejadas, visto que este ácido nucleico é altamente instável e facilmente degradável.

A terapia génica é constituída por duas metodologias distintas de transfecção de genes terapêuticos, que são aplicadas consoante a natureza da patologia em causa, o tipo de célula/tecido alvo e sempre prezando pelo maior benefício terapêutico. O mecanismo de entrega de genes pode ser efetuado ex vivo ou in vivo. A terapia gênica ex vivo envolve um conjunto de etapas:

 1| Recolha de células do indivíduo afetado que são colocadas em cultura in vitro;

 2| Transfecção do gene terapêutico para essas células com objetivo de correção do defeito genético;

3| Seleção das células geneticamente corrigidas;

4| Posterior aplicação dessas células modificadas no indivíduo afetado.

Este tipo de terapêutica pela utilização de células próprias do indivíduo evita/minimiza assim a ação e rejeição do sistema imunitário. É usada em células que podem ser induzidas a enxertar e sobreviver por longos períodos de tempo após recolocação. Assim, este tipo de abordagem é frequentemente utilizado para células da pele, do músculo, do fígado e do sangue. A utilização de vírus adeno-associados contendo um transgene com um fator de crescimento transformante β1 para transfectar e orientar a diferenciação de células mesequimais humanas em condrócitos in vitro, seguindo-se da recolocação destas células mutadas in vivo para a regeneração da cartilagem de uma lesão osteocondral é, um excelente exemplo de aplicação deste procedimento de terapia gênica, com eficácia e com o mínimo de imunogenicidade para o doente.

Por outro lado, a terapia génica in vivo, é aplicada como a única opção para os tecidos que não conseguem atingir um número suficiente em cultura in vitro, ou quando existe a impossibilidade de uma reimplantação eficiente por parte das células em cultura. Desta forma, nesta abordagem, o gene terapêutico é administrado diretamente no doente, sendo a sua captação por parte das células alvo um importante passo para o sucesso deste tipo de terapia. Como exemplo deste tipo de abordagem temos a aplicação de vetores virais (Adenovírus, vírus Herpes Simplex) para o tratamento de doenças neurodegenerativas tais como Alzheimer e Parkinson.

Para alcançar uma expressão genética a longo termo é apreciável integrar o gene terapêutico dentro de um cromossoma da célula hospedeiro. No entanto, a integração acarreta alguns problemas e riscos. A integração da maioria dos modelos construídos ocorre em sítios aleatórios e é diferente de célula para células num mesmo indivíduo, podendo nunca a ser expresso ou demonstrar expressão num nível baixo indesejado ou ser simplesmente expresso num curto período de tempo e depois irreversivelmente silenciado. Não obstante, a integração do gene inserido, pode também alterar a expressão de genes endógeno possibilitando a ativação de oncogeneses adjacentes que são uma grande preocupação da integração de um modelo que resulta em níveis elevados de expressão genética. Por esta razão, os vetores que permanecem com a informação genética sob a forma de plasmídeos provavelmente são a principal ferramenta de terapia gênica. Porém, a limitada duração de expressão genética é caracterizada como a principal desvantagem, pois verifica-se uma diluição dos epissomas à medida que as células alvo se replicam e a população aumenta. Assim, não existe a possibilidade de alcançar uma cura permanente e, são necessários tratamentos repetitivos.

Neste sentido, é geralmente aceite que o principal impedimento para uma aplicação bem-sucedida de terapia genética para o tratamento de uma série de patologias não é devido à escassez de genes terapêuticos, mas à falta de um eficiente sistema de entrega de gene não tóxico. Embora se verifique um atual desenvolvimento por abordagens de transferência génica usando vetores sintéticos não virais, os sistemas de entrega de genes mais eficientes e mais comummente utilizados ao nível da aplicação clínica são os vetores virais.

Os vírus, tendo evoluído para fornecer os seus genes às células alvo, podem ser facilmente manipulados para expressar os genes terapêuticos ou para replicar especificamente em certos tipos de células. A escolha de um vírus depende muito da célula alvo e acerca da necessidade de uma expressão transiente ou a longo prazo do gene terapêutico. Os vetores virais têm sido usados em 70% dos ensaios clínicos de terapia gênica, com retrovírus, adenovírus, parvovírus, vírus vaccinia e vírus herpes, sendo estes os mais frequentemente estudados.

A seletividade para células alvo por parte dos retrovírus e adenovírus pode ser alterada por inúmeros procedimentos, em especial, pela pseudotipagem. Esta técnica consiste na substituição total das glicoproteínas do envelope do vírus pelas proteínas de outro vírus diferente, pertencente ou não à mesma família viral.

A pseudotipagem é uma metodologia que tem sido utilizada durante muitos anos como uma ferramenta para o estudo de interações de recetores, no entanto, com desenvolvimentos recentes, alcançou-se uma substituição precisa do envelope e produção de populações de vetores apresentando um novo tropismo. A pseudotipagem pode ser conseguida por cotransfecção de plasmídeos, com um codificando as glicoproteínas do envelope, outro plasmídeo codificando todos os outros componentes estruturais do vetor viral e ainda outro plasmídeo transportando o transgene e a informação de sinal de empacotamento. Alternadamente as proteínas do envelope viral podem ser expressas em trans nas linhagens de células PCL ou geneticamente incorporadas dentro do genoma viral, que é uma metodologia bem adequada para a particular geração de adenovírus pseudotipados. Este processo tem sido extensivamente utilizado para a modulação do tropismo de vetores retrovirais, em especial os lentivírus, pela sua alta capacidade de incorporação de glicoproteínas exógenas.

Até à data, as glicoproteínas do vírus da estomatite vesicular permanecem como a base da pseudotipagem da maioria dos vetores virais, em especial, dos vetores lentivirais derivados do HIV-1.

A pseudotipagem pode também ser usada para vetores que não dispõem de um envelope, tais como os adenovírus e vírus adenoassociados. Contudo, neste procedimento as glicoproteínas, em vez de incorporadas na camada lipídica que constitui o envelope, estão associadas ao capsídeo. Esta técnica é essencialmente alcançada pela substituição das proteínas estruturais do capsídeo por proteínas homólogas de outros serótipos do vírus, garantindo assim, um novo tropismo sem modificação do resto do genoma e permitindo um uso estável. Porém, é também possível incorporar proteínas do capsídeo de vírus não relacionados, embora possa existir incompatibilidades estruturais.

O processo de pseudotipagem é limitado quanto à eficácia pelo número de glicoproteínas virais disponíveis para a abundância e exclusividade dos recetores das células alvo de interesse. Neste sentido, para superar esta limitação, considerou-se a aplicação de modificações genéticas e químicas que exigem o conhecimento da estrutura viral para orientar modificações ao nível das glicoproteínas de conexão. Assim, a utilização de adaptadores de proteínas pode ser, apesar do conhecimento ainda limitado da estrutura viral, aplicado como uma alternativa de alteração de tropismo.

Os adaptadores são moléculas com duas especificidades: uma extremidade que se liga à proteína viral e outra extremidade que se liga ao recetor da célula alvo. A vantagem principal deste procedimento consiste na sua grande flexibilidade pela existência de diferentes adaptadores que conseguem prontamente ligar-se ao mesmo vetor, não requerendo alterações na estrutura do vetor que, de certo modo, poderiam ser prejudiciais à produção do vetor ou à transferência do gene. A maioria dos adaptadores consegue alcançar os dois principais objetivos da entrega de genes virais: atenuar o tropismo nativo do vírus e conferir um novo tropismo viral. Desta forma, os sistemas de adaptadores podem ser caracterizados por dois modelos distintos relacionados com o princípio/procedimento inerente à formação de sistemas que exploram o tropismo nativo de forma a fornecer uma nova afinidade para células alvo:

1| Complexos recetor-ligante: é um processo em que o recetor viral é unido geneticamente a um ligante, que pode ser um fator de crescimento, uma proteína ou um anticorpo, que demonstra funcionalidade ao ligar-se a um receptor expresso na célula.

2| Conjugação química: é um método em que os adaptadores são inseridos por ligação covalente ao vetor. Neste processo, por exemplo, o vetor viral (adenovírus) é revestido com uma solução catiónica, por exemplo o lípido GL-67, e depois é adicionado um polímero (polietilenoglicol PEG ou seus derivados) capaz de ligar-se a recetores de células alvo. Este processo é mais laborioso e exigente do que os outros sistemas de adaptadores e é somente aplicável in vitro com adenovírus.

O sucesso da terapia génica requer não apenas da identificação do adequado gene terapêutico para o tratamento de uma patologia mas, também de um sistema eficiente e preciso de entrega de genes ao tipo de células desejado. Os vírus pela sua estrutura, característica e ciclo de vida replicativo são, até o momento, os melhores candidatos para entrega de genes, pois estão totalmente preparados para entrar numa célula e conduzir eficientemente a transdução da informação genética pretendida Na verdade, essa é a sua missão, o seu objetivo primordial.

A utilização de vírus como vetores de entrega de genes, até à data, constitui metade de todos os ensaios clínicos no âmbito da terapia génica. Atualmente, a terapia génica tem desempenhado uma importante participação no desenvolvimento de novos tratamentos para inúmeras patologias, tais como, as doenças cardiovasculares, as doenças monogénicas (fibrose quística), as doenças infecciosas (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, SIDA), as doenças neurodegenerativas (Alzheimer e Parkinson), as doenças metabólicas (Diabetes mellitus), as doenças osteoarticulares e em especial as doenças neoplásicas. Até à data, 64,5% dos ensaios clínicos centram-se no estudo de tratamentos no âmbito da oncologia e tem-se presenciado pela utilização de vetores virais de replicação deficiente, grandes avanços na entrega de fatores antigênicos, genes supressores tumorais, genes imunoestimuladores, ou em alternativa pela utilização de vírus de replicação seletiva eficiente, tais como adenovírus ou herpes simplex, eficiência na destruição de células tumorais por líse celular.

 Contudo, por existir ainda muito por compreender relativamente ao seu genoma, sua estrutura, seu ciclo de vida e seu tropismo, surgem algumas preocupações quanto ao grande passo para utilização destes vetores em ensaios clínicos de maiores dimensões. Na verdade, ainda existem muitos riscos que não são totalmente previsíveis e que são inerentes à utilização deste tipo vetores, mais especificamente no que se refere à especificidade celular desejada, à patogenicidade e imunogenicidade de que são responsáveis, e isto pode ser constatado pelo reduzido número de ensaios clínicos em fase III com vetores virais. Desta forma, pode-se constatar que ainda se dispõe de um longo caminho a percorrer até que, de certa forma, esta terapia possa tornar-se a verdadeira cura da maioria das patologias da sociedade atual.

 No que refere a perspetivas futuras, na terapia gênica viral, apesar das limitações virais existentes, tem-se verificado grandes avanços: 1) ao nível da criação de novos sistemas de produção eficiente de vetores recombinantes com menor imunogenicidade; 2) em relação à melhoria de eficiência de transdução ex vivo de células hematopoiéticas; 3) quanto à melhoria da especificidade e eficiência da expressão de transgene in vivo, pela otimização de tecidos específicos e promotores (expansão do tropismo vetorial e minimização de resposta imunitária através do desenvolvimento de novos serótipos virais); 4) no que concerne à identificação de possíveis novos vetores (vírus Epstein-Barrs, vírus espumosa, SV-40, entre outros) e doenças alvo para desenvolvimento de novos tratamentos. 

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Hugo Miguel de Sousa Câmara

por Hugo Miguel de Sousa Câmara

Mestre em Bioquímica Aplicada pela Universidade da Madeira (UMA). Pós-graduado em Gestão de Serviços de Saúde e Instituições Sociais pelo Instituto Superior de Administração e Línguas. Licenciado em Farmácia pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra. Colaborador dos serviços farmacêuticos do SESARAM, Portugal, de Março de 2010 a Fevereiro de 2013. Atualmente é investigador da UMA.

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