O voto do analfabeto: uma visão distorcida da cidadania

Sagrado direito do voto
Sagrado direito do voto

Direito

15/10/2012

A cada dois anos, sempre vemos vir à tona nos meios de comunicação e nas rodas de conversas a cidadania (fundamento da República Federativa do Brasil, nº II do art. 1, da CF/88) que esta intrinsecamente vinculada, nesses termos, ao “sagrado direito do voto” (aspas por minha conta).

Aliás, direito ou dever?! Esse é outro ponto até mais debatido do que o voto e a cidadania, mas não vou entrar no mérito dessa questão por esse momento.

Dada às necessidades prementes da eleição, a cidadania é evocada para demonstrar que o Povo, o digno eleitor, legítimo detentor do Poder Político, é o Todo Poderoso por ter nas mãos o igualitário poder do voto (caput do art. 14 da Constituição Federal, parte final) que não o distingue por sua classe, nem por sua cor ou raça, muito menos pelo seu grau de educação facultativamente (alínea a, inciso II, § 1º, art.14 CF/88).

Infelizmente esquecem que é em nome desse Povo que o Poder deve ser exercido. Mas isso é apenas um detalhe.

Em nome da igualdade e da universalidade do sufrágio a Constituição Federal garantiu, em 1988, a faculdade de voto aos maiores de 16 anos, aos maiores de 70 anos e aos analfabetos. Direito este que foi conquistado três anos antes com a Emenda Constitucional nº 25 de 15/05/85, regulamentada pela Lei nº 7.332, de 1º de junho de 1985.

Deixando para outro momento a discussão sobre o voto dos jovens e dos maiores de 70 anos, vamos nos concentrar no voto do analfabeto, o que sem sombra de dúvida, mesmo depois de tantos anos, ainda é uma questão muito polêmica.

Há uma corrente no Congresso Nacional que defende a retirada do direito de votar do analfabeto. Os seguidores desta corrente entendem que falta discernimento suficiente, a capacitação necessária ao analfabeto para identificar o bem comum. Outra ala, no entanto, considera que impedir ao analfabeto votar implicaria em tornar o sistema eleitoral como de sufrágio restrito.

Para os defensores do voto do analfabeto, embora sem saber ler nem escrever, o analfabeto não está alheio da vida social, vive os fatos econômicos e pode bem medir o quanto as decisões da comunidade afetam sua existência.

Aliás, esse foi um dos principais motivos que motivaram a EC nº 25/85, pois os meios de comunicação permitiam mesmo ao cidadão mais alienado politicamente, um mínimo de informação que superava as dificuldades causadas pelo desconhecimento da escrita e interpretação de textos.

Defensor desse ponto de vista, o jurista Walter Costa Porto, em seu livro Dicionário do Voto, considerando o direito de votar do analfabeto, pondera que “a sofisticação dos meios de comunicação permite, hoje, também ao analfabeto uma massa de informações que antes não se poderia suspeitar pudesse, um dia ser oferecida”.
A questão do voto dos analfabetos merece uma cuidadosa reflexão, em virtude da complexidade social que envolve.

Os opositores à extensão do direito de voto aos analfabetos defendem-se sob o argumento de que, em muitos casos, a quantidade numérica das pessoas sem preparo pode influenciar negativamente nas decisões políticas.

Nesse aspecto vale destacar a seguinte análise dos números reais apresentados pelo Tribunal Superior Eleitoral com base no banco de dados do mês de maio de 2012, conforme tabelas expressas ao final deste texto:

No Brasil temos 140.270.497 eleitores alistados, destes, 7.790.892 (5,55%) estão cadastrados como analfabetos, sendo 3.660.844 (46,99%) masculinos e 4.119.483 (52,88) femininos e ainda 10.565 (0,14%) não informados.

Um percentual relativamente pequeno, mas o que torna mais preocupante é constatar que ainda:

44.744.618 (31,9%) têm o ensino fundamental incompleto e
18.767.374 (13,38%) sabem ler e escrever.

Se juntarmos todos estes números teremos 71.302.884 (50,83%) de eleitores com um grau de instrução que pode comprometer o seu julgamento na hora de escolher os candidatos nas eleições.

Estamos realmente falando da maioria absoluta de votos: 50,83%.

Regionalmente, no Centro-Oeste temos os seguintes números de eleitores:

10.001.636 (7,31% de todo país),
414.949 de analfabetos (4,15%),
1.259.036 leem e escrevem (12,59%),
3.139.818 com ensino fundamental incompleto (31,39%),
4.813.803 (48,13%) com um grau de instrução que compromete o seu julgamento na hora de escolher os candidatos nas eleições.

No Mato Grosso do Sul temos os seguintes números de eleitores:

1.768.319 (1,26% de todo país),
79.686 analfabetos (4,51% do MS),
226.290 leem e escrevem (12,8% do MS),
623.518 com ensino fundamental incompleto (35,26% do MS),
929.494 (52,56% do MS) com um grau de instrução que compromete o seu julgamento na hora de escolher os candidatos nas eleições. Maioria absoluta.
Na cidade de Naviraí-MS temos os seguintes números de eleitores:

34.626 (1,96% do MS),
1.898 analfabetos (5,48%),
6.966 leem e escrevem (20,12%),
12.483 com ensino fundamental incompleto (36,05%),
929.494 (61,65%) com um grau de instrução que compromete o seu julgamento na hora de escolher os candidatos nas eleições. Maioria absoluta.

Na cidade de Eldorado-MS temos os seguintes números de eleitores:

9.340 (0,53% do MS),
754 analfabetos (8,07%),
1.811 leem e escrevem (19,39%),
3.644 com ensino fundamental incompleto (39,24%),
6.209 (66,48%) com um grau de instrução que compromete o seu julgamento na hora de escolher os candidatos nas eleições. Maioria absoluta.

Estatisticamente é preciso ressaltar que as informações quanto ao grau de estudos utilizadas neste cadastro apresentado são as declaradas pelos eleitores, sem comprovação, o que dá margem à interpretação de que os maiores graus de instrução podem conter inverdades e, portanto teríamos números talvez bem maiores nos graus de instrução mais baixos.

É preciso lembrar ainda, que estes números são dos que estão alistados no TSE, pois para os analfabetos o alistamento é facultativo, o que quer dizer que podemos, e acredito que temos, muitos mais analfabetos do que esta estatística aponta.

Com base nessa constatação nacional estarrecedora é compreensível entender porque o voto foi estendido aos analfabetos, pois, representam a maioria da população para a qual o Poder deve ser exercido.

Fica pairando no ar uma incerteza sobre a existência ou não de interesses escusos ocultos sob a máscara da cidadania e da democracia que esta inclusão representa.

De todas as análises que se possa fazer acerca do voto do analfabeto, a que desperta maior polêmica é, sem dúvida, a indagação sobre sua qualidade e também a reconhecida facilidade de captação ilícita deste voto em razão da sua desvalorização cívica e política, utilizado como mera moeda de troca por pequenas quantias em dinheiro, cestas básicas, dentaduras, combustível, passagens, etc...

Por outro lado, como estamos falando de maioria de eleitores, cumpre observar que um dos mais basilares princípios que gravitam a órbita dos direitos políticos é o princípio da representatividade e sobre esse ponto democrático, qualquer político eleito sem considerar essa fração do povo teria um mandato ilegítimo e não representativo da vontade democrática do povo que se propõem representar.
Não há que se falar em representação apenas numérica.

Na visão de Paulo Bonavides, em sua obra Ciência Política, 10ª edição, extraímos:

“Excluindo o analfabeto de intervenção no ato político, não foi sensível a Constituição de 1967, nem sua Emenda, a alguns movimentos de opinião esboçados desde os últimos vinte anos, em favor dessa participação. Muito menos o fora o Projeto da Comissão de Juristas. Com a Constituição de 1988 fez-se, porém, facultativo o voto do analfabeto (artigo 14, § 1ª, II, “a”).

Com efeito, tem-se alegado, em abono da extensão daquela franquia política às camadas iletradas de nossa sociedade entre outros, os seguintes argumentos: a coerência do sistema democrático com a natureza do sufrágio universal; a tributação do analfabeto, que cumpre deveres a que não correspondem direitos, ficando assim privado de voz no debate e na aprovação do ônus tributário, e, por fim, a contradição observada, principalmente nos países subdesenvolvidos, onde governo democrático deixa de ser logicamente o que sempre deverá ser: governo da maioria, visto que a minoria participante, investida de titularidade política, que a transforma em sujeito e não apenas objeto da ordem jurídica estabelecida, contrasta de forma esmagadora com a maioria excluída do exercício da soberania, maioria composta por legiões de analfabetos, de todo os pontos marginalizados da vida política.

Os analfabetos da democracia contemporânea, no século das massas, são para os países subdesenvolvidos o que foram para a cidade grega os escravos do século de Péricles.

[...]Do lado dos que argumentam contra o voto do analfabeto, as razões ordinariamente invocadas se prendem à quebra de sigilo do sufrágio que aquela participação viria acarretar, bem como à sustentação de que a democracia, em seu estrito teor político, não é apenas quantidade, mas qualidade.
Daí o impedimento legal se transformar, vantajosamente, num fator destinado a contribuir de maneira indireta mas eficaz ao desenvolvimento da instrução popular, pelo estímulo que representa no combate ao analfabetismo.

Dentre os que no Brasil têm esposado o primeiro argumento, contrário à ingerência política dos analfabetos na vida das instituições, figura o Ministro Edgard Costa, cujos comentários à legislação vigente sobre a matéria se acham enriquecidos pela experiência e observação acumulados no exercício da mais alta magistratura eleitoral. Segundo Edgard Costa, o analfabeto desatende ao principal requisito do voto que é o sigilo, sendo este a condição de sua liberdade.

Em consequência, o sufrágio do analfabeto abre uma brecha irreparável no princípio da liberdade do voto. Quanto ao argumento que gira ao redor da dialética qualidade-quantidade não resta dúvida que o princípio democrático envolve da parte do colégio eleitoral uma compreensão política mais apurada, difícil de formar-se no seio da multidão espessa e ignara.

Daí pesar mais em favor do bom mecanismo institucional do governo democrático, como governo de livre manifestação da vontade popular, o princípio qualitativo do que o princípio quantitativo. [...]

Convocados à cena política, os efetivos sufragantes da população analfabeta, em percentuais caudalosos, acabariam impondo a quantidade à qualidade.

Nenhuma garantia ou anteparo real se ofereceria contra a possível “instrumentalização” de seu acesso à soberania, por parte dos que já se achassem no Poder, ou dos que, acastelados na força dos meios materiais de corrupção, se dispusessem, como em geral se dispõem, a contaminar pela sua influência o veredicto das urnas, corrompendo medularmente o caráter representativo das instituições democráticas.

São tantos os riscos desse alargamento do colégio eleitoral, minado pelas contradições e vícios da prática política nos povos do mundo subdesenvolvido, onde a democracia de massas anda quase sempre decapitada ou flagelada pela sedição dos quartéis e pela ditadura dos grupos econômicos estrangeiros, que nenhuma vantagem traria à firmeza ou aperfeiçoamento das instituições aquela participação das massas eleitorais analfabetas.

Eliminando com sua presença uma contradição teórica, gerariam elas por outro lado na vida dos organismos políticos e sociais contradições muito mais sérias e agudas. [...]

A primeira inclusão gradativa do analfabeto, promovida vitoriosamente a Revolução Industrial, seria, para atendimento de escrúpulos teóricos, o acesso aos pleitos municipais. Estado desenvolvido pressupõe uma baixa extraordinária na densidade da população analfabeta.

Pesando menos politicamente e participando de maneira ativa do processo eleitoral, justamente onde seus interesses têm mais densidade e presença, são mais próximos ou imediatos, como na área do poder local, o analfabeto, pela sua militância nas urnas, estaria removendo o pesadelo doutrinário dos que não condescendem em conceber uma democracia onde a participação deixe de coincidir com a quantidade.

Mas entendemos, com Kelsen, que a democracia é progressão ou caminhada para a liberdade e que a extensão do sufrágio ao analfabeto, já tentada uma vez no Brasil, em 1964, por iniciativa oficial rejeitada pelo Congresso, longe de coadjuvar a solução do problema da democracia de massas em País subdesenvolvido, viria, ao contrário, estorvar a recuperação democrática e precipitar talvez o desenlace das estruturas constitucionais.

Se a democracia é, com efeito, aquela escola de formação política a que aludimos, diríamos melhor, de aperfeiçoamento político, urge mantê-la nos termos atuais do sufrágio universal, sem ambições que a realidade não autoriza nem comporta, pois normalmente não se cumpriu sequer o estímulo à alfabetização, que figurava nas promessas daquela exclusão legal.”

A meu ver parece muito frágil a sustentação da “representatividade legítima da vontade democrática” do analfabeto pela simples constatação de que alguém que não consegue ler uma plataforma de governo, uma lei sequer sem precisar da “interpretação” de alguém.

Sim, toda vez que lemos algo para que alguém entenda estamos transmitindo juntamente com a leitura (entoação e pontuação adequadas ou não) a nossa própria interpretação.

Dessa forma o analfabeto esta impedido tecnicamente de ter a sua própria interpretação haja vista não ter a capacidade para a leitura e consequente entendimento de qualquer texto que precise conhecer para fazer a sua escolha eleitoral livre de qualquer forma de direcionamento.

Em linhas gerais, temos a maioria dos votos validos do país nas mãos de pessoas que sofrem, mesmo que indiretamente, a influência de outros na hora de expressar a sua vontade, o seu direito de voto. Pelo mesmo motivo temos uma grande massa de votos que podem muito mais facilmente serem dominados pela retórica dos politiqueiros de carteirinha.

Não há que se falar em cidadania e direitos com a faculdade de voto do analfabeto uma vez que este tem “o direito” de votar, mas a mesma carta magna que lhe faculta o voto impede-lhe de ser votado.

Simplificando: a constituição reconhece a importância do voto do cidadão analfabeto para a democracia e representatividade, mas não reconhece nele a capacidade para expressar o quer por meio da criação de leis que venham a proporcionar-lhe os benefícios que considera necessário à sua condição e ao desenvolvimento da sua vida e até à sua representatividade ativa, enfim, o analfabeto não tem a faculdade de exercer plenamente a sua cidadania, mas apenas o direito que mais interessa aos políticos: o voto.

Na atual legislação, dita democrática e cidadã, jamais haverá um analfabeto para representar os mais de 71 milhões de analfabetos votantes.

Mas ainda pior do que essas estatísticas, é a certeza da existência muito mais expressiva dos “analfabetos políticos” que são aqueles que não entendem nada de política e ainda assim são eleitores; são aqueles que votam pela obrigação imposta, que não se preocupam em conhecer as propostas dos políticos, não analisam a história política dos candidatos e nem sabem o que querem dos eleitos.

Pior ainda são aqueles que se acham melhores do que todos os políticos e preferem achar que vivem à margem desse meio e por isso não se envolvem, não opinam, muito menos participam e não acordam para a realidade de que são esses políticos que regulam as leis que regem a vida, os impostos, a saúde, a educação, enfim, tudo que funciona nesse país.

Nos dois casos de analfabetos, apenas a educação, a longo prazo, pode mudar essa realidade e transformar a maioria votante em um povo politicamente correto que governa o seu destino e decide e trabalha pelo que é melhor para o seu futuro. Isto sim seria cidadania.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Danilo Fornazari

por Danilo Fornazari

Administrador registrado no CRA/PR, acadêmico de Direito da UEMS, Redator Correspondente do site mshoje.com, autor do livro: Administração por Pequenos, para Pequenos e com Pequenos, publicado pelo Sebrae/1995

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