Ficha Limpa no STF: A Derrota da Argumentação Político Consequencialista

A atividade jurisdicional deve consistir na busca pelo interesse mais fundamental
A atividade jurisdicional deve consistir na busca pelo interesse mais fundamental

Direito

03/11/2012

A Lei Complementar (LC) 135/2010, conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, teve sua aplicabilidade às eleições de 2010 confirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 633703. A votação foi apertada (6 X 5), o que apenas reitera a divisão de entendimentos jurídicos a respeito do tema. Mas antes de adentrarmos o tema, um aspecto deve ser abordado preliminarmente, mormente ao considerarmos a natureza constitucional eleitoral da questão: o STF, no exercício de sua competência para tratar de questões constitucionais, é legitimado para realizar julgamentos político-consequencialistas?

Martin Kriele entende que a atividade jurisdicional deve consistir na busca pelo interesse mais fundamental dentre aqueles que estão em jogo. Caberia ao juiz realizar uma prognose dos efeitos presumíveis da decisão e de sua influência sobre outros interesses considerados relevantes, em consonância com a responsabilidade ética depositada no magistrado. Aqui, parece Kriele colocar-se frontalmente contra Ronald Dworkin, para quem o juiz não pode realizar opções político-finalísticas não indicadas pelo legislador, sob pena de subversão discricionária da democracia e da separação de Poderes. Karl Larenz, com pensamento semelhante ao de Dworkin, é acusado por Kriele de escamotear a responsabilidade ético-decisória dos magistrados.

Apesar da discordância, Larenz faz a ressalva de que as resoluções de grande alcance político para o futuro da comunidade impõem ao tribunal competente pelas questões constitucionais uma responsabilidade política na manutenção da ordem estatal e da sua capacidade de funcionamento, o que pressupõe um raciocínio consequencialista voltado para o bem comum e uma preocupação com a aceitação de seus resultados pela comunidade.
Parece-nos não ser de outro tipo o embate central entre os dois argumentos mais apontados pelos ministros do STF no julgamento supracitado, sem prejuízo de eventual análise sobre os argumentos técnico-conceituais a respeito do caráter eleitoral-processual da norma instituinte de hipótese de inelegibilidade. De um lado, alega-se, como fez Gilmar Mendes, que o art. 16 da CF/88 [1], ao estabelecer a anterioridade de um ano para que uma lei modificadora das normas referentes ao processo eleitoral adquira vigência, fez-se cláusula pétrea, impossível de ser modificada pela LC 135/2010.

Do outro lado, alega Lewandowski que a norma tem o objetivo de proteger a probidade administrativa e visa à legitimidade das eleições, tendo criado novas causas de inelegibilidade mediante critérios objetivos, nos conformes do art. 14, §9º, da CF/88 [2].

[1] Art. 16: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.
[2]Art. 14, §9º: “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

A esse argumento, opõe-se claramente Peluso em seu voto, ao afirmar: “Um tribunal constitucional que, para atender anseios legítimos do povo, o faça ao arrepio da Constituição é um tribunal em que o povo não pode ter confiança”. Aqui, vislumbra-se posicionamento contrário ao de Larenz, para quem não procede, em julgamentos políticos, a máxima fiat justitia, pereat res publica. Mas não seria a democracia a realização da vontade da maioria, de forma a justificar a atitude criticada por Peluso, já que estamos, afinal, tratando de questões políticas?

Já ensinava Rousseau, na Era Moderna, que a democracia não pode ser convertida em ditadura da maioria, sob pena de subversão da própria vontade geral constituinte. Explica Lênio Streck que a mitologia grega permite-nos ilustrar essa máxima: Ulisses, na “Odisseia”, em alto-mar e buscando proteger-se do canto das sereias, ordenou a seus comandados que o amarrassem e não o soltassem, mesmo que ele pedisse. Tal qual o povo ao exercer o Poder Constituinte, Ulisses limitou o seu próprio Poder de Reforma, para obstar maiorias eventuais formadas conjunturalmente e violadoras das garantias fundamentais originalmente concebidas pela soberania popular.

Não cabe ao STF, com o pretexto de responder a um anseio social por efeitos práticos revitalizadores do valor de probidade na vida pública, realizar pragmáticos juízos discricionário-consequencialistas prejudiciais aos direitos políticos subjetivos dos candidatos. Afinal, o caráter democrático de um sistema político exsurge quando a universalização das garantias estabelecida em um momento originário de igualdade de interesses sustenta-se perante interesses minoritários concretamente considerados. Esse, sim, talvez pudesse ser chamado, in casu, de interesse mais fundamental, devendo ser buscado, nos moldes da hermenêutica do próprio Larenz, reflexivamente e sem a influência de orientações político-ideológicas subjetivas (pré-conceitos inautênticos).

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Daniel Oitaven Pamponet Miguel

por Daniel Oitaven Pamponet Miguel

Graduado e Mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Teoria e Filosofia do Direito (PUC-MG) e em Direito Tributário (PUC-SP). Ex-professor substituto da UFBA. Professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito da Faculdade Baiana de Direito. Professor efetivo de IED e Direito Civil da UNEB. Advogado. Autor do livro "Uma compreensão histórica do princípio da proibição de retrocesso social".

Portal Educação

UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93