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As medidas protetivas da Lei Maria da Penha podem ser aplicadas a homens?
As medidas protetivas da Lei Maria da Penha podem ser aplicadas a homens?
A violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos
Direito
16/04/2013
1. Os fundamentos da decisão do TJMS
O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul concedeu, em 16/09/11, pedido de liminar em agravo de instrumento no qual o marido que se encontra em processo de separação de sua esposa requereu que ela fosse proibida de se aproximar dele.
As disposições da Lei Maria da Penha foram, no caso mencionado, aplicadas por analogia e por via inversa, salientando, o relator, Des. Dorival Renato Pavan, que, “sem desconsiderar o fato de que a referida Lei é destinada à proteção da mulher diante dos altos índices de violência doméstica em que na grande maioria dos casos é ela a vítima”, há que se aplicar o princípio da isonomia nas situações em que as agressões partem da esposa contra o marido.
Após verificar a existência de prova suficiente, ao menos para a fase processual em que o feito se encontra, de que a mulher vem promovendo agressões físicas e psicológicas contra o marido, chegando a ameaçá-lo de morte, bem como promovendo comentários e atitudes humilhantes contra ele, o Desembargador trouxe, para fundamentar o seudecisun, os seguintes argumentos:
(a) “a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direito dos homens (gênero masculino) não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, pois [...] o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um todo indissociável e os conflitos de interesses resolvidos através da aplicação de princípios e da interpretação analógica de suas normas”;
(b) “situação de conflito familiar insustentável que afeta os direitos fundamentais seus e de seu filho adolescente, todos afetos à dignidade da pessoa humana”;
(c) o livre direito de locomoção da esposa deve ser restringido, a fim de obstaculizar práticas de atos atentatórios a valores relevantes, como os da honra e da dignidade da pessoa humana;
(d) “a restrição à liberdade de locomoção da agravada não é genérica, mas específica, no sentido de tão-somente manter distância razoável do agravante, para evitar ao menos dois fatos, de extrema gravidade, a saber: a) primeiro, que a agravada possa dar continuidade à prática dos atos agressivos e de humilhação a que submete o agravante perante sua própria família e colegas de trabalho, ofendendo, com tal ato, sua dignidade; b) segundo, que é possível que o autor, sentindo-se menosprezado, humilhado e ofendido, possa revidar à agressão, com prejuízos incalculáveis para o casal e consequências diretas no âmbito da família.”
(e) o marido, “ao invés de usar da truculência ou da violência, em revide aos ataques da mulher, vem em juízo e postula tutela jurisdicional condizente com a realidade dos fatos e da situação de ameaça que vem sendo – ao que tudo indica – praticada pela mulher”.
Vistas as fundamentações, ademais delas, torna-se importante ressaltar que a agressão de mulheres contra homens é tão grave quanto o seu contrário (o próprio CP pune ambas com a mesma pena). Não obstante, entendemos que a decisão acima não encontra respaldo jurídico. E assim pensamos não por achar que somente a violência masculina deva ser desvalorada, mas sim por entender que são as especificidades da violência de gênero que justificam que direitos, princípios, liberdades e garantias da pessoa acusada sejam limitados e restringidos, tal qual se dá em inúmeros dispositivos da Lei Maria da Penha, quando se vale de instrumentos mais enérgicos que podem chegar, inclusive, à prisão preventiva. Tem aplicação, aqui, o princípio da proporcionalidade, conforme abaixo se retomará.
2. Considerações preliminares acerca da violência de gênero e a Lei Maria da Penha
Antes de se adentrar o tema objeto da decisão do TJMS, algumas considerações preliminares:
2.1. Lei Maria da Penha, contexto internacional e ações afirmativas
A Lei Maria da Penha está inserida no contexto do Direito Internacional. Ela é fruto de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que tem fundamento no art. 51, 2, da CADH (in litteris: “A Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada”), em face de condenação sofrida pelo Brasil no processo movido por Maria da Penha Fernandes.
Ademais, a Lei Maria da Penha decorre de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito da igualdade de gênero. Em seu art. 1º são citados dois documentos internacionais: Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW – e Convenção de Belém do Pará, ratificadas pelo Brasil em 1984 e em 1995, respectivamente. No preâmbulo dessa última, consta que “a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, o gozo e o exercício de tais direitos e liberdades”.
É neste aspecto que a Lei Maria da Penha cumpre o seu mais relevante papel: fazer-se instrumento que possa ser utilizado pela mulher vítima de agressão ou de ameaça. Trata-se de “normas de discriminação positiva, ou seja, medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher”, conforme preceitua o art. 4.º, item 1, da Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é signatário.
Por serem excepcionais e por preverem sérias restrições de direitos (como é o caso da maioria das medidas protetivas previstas na LMP), a aplicação dos instrumentos de discriminação positiva só se justifica em situações muito relevantes (princípio da proporcionalidade). É que, ao mesmo tempo em que de um lado se alargam garantias (em relação à vítima: garantia da vida, da integridade física e psicológica etc.), de outro se limitam direitos (concernentes ao réu: liberdade de ir e vir, presunção da inocência, direito ao contraditório etc.).
É assentado o entendimento de que “direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição. É preciso não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas. [...] Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental, quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas.”(1)
É aqui que reside o ponto fundamental do que se discute: se, por um lado, se consegue, em razão das circunstâncias especiais e da brutalidade dos números da violência de gênero, justificar um tratamento diferenciado, com o necessário alargamento da proteção à mulher nos casos de violência doméstica e familiar, por outro, há que se analisar se a situação que envolve a violência da mulher contra o homem encontra-se na mesma ordem de equivalência. As informações abaixo trazidas demostram que as experiências vividas em cada uma das situações (violência de homem contra a mulher e violência de mulher contra o homem) são, quase que no total das vezes, bastante diversas, mostrando-se muito mais institucionalizadas, frequentes, reiteradas, intensas, permanentes, intimidatórias, brutais e de consequências irreversíveis quando a vítima é do sexo feminino. 2.2. Características justificadoras da violência doméstica e familiar contra a mulher
Inúmeras são as características da violência doméstica e familiar contra a mulher que justificam uma proteção mais efetiva e enérgica, tal qual se estabeleceu (ao menos em seu sentido formal) na Lei Maria da Penha, mas raramente elas se encontram presentes quando se trata de vítima do sexo masculino. Dentre outras, podemos destacar as seguintes:
•os agressores de mulheres são pessoas que se aproveitam de relação íntima de afeto que mantiveram ou mantêm com a vítima;
•o agressor perpetra a violência , normalmente, no interior da própria casa onde vive a mulher, prevalecendo-se do ambiente reservado;
•a violência contra a mulher encontra-se submetida a mecanismos legitimadores e propiciadores de sua perpetuação (papel social atribuído ao feminino, dependência econômica, saralidade do matrimônio, dentre outros, o que conduz a que tudo se releve;
• ciclo de violência: inicia-se com a (1) construção da tensão, chegando à (2) tensão máxima, finalizando com a (3) reconciliação. Há um escalonamento da intensidade e da frequência das agressões, que depende das circunstâncias da vida do casal. Não obstante as variáveis (circunstâncias da vida do casal), já se constatou que a repetição cíclica das etapas tende a fazer com que a agressão seja cada vez mais grave e habitual.
É fato que também pode ocorrer violência da mulher contra o cônjuge, companheiro ou namorado etc. no âmbito doméstico e familiar (principalmente as agressões psicológicas). Só que tal violência distingue-se, em muito, da praticada pelo homem. As principais diferenças são trazidas por Elena Larrauri: (a) menor intensidade: o dano produzido é muito inferior; (b) sua finalidade: age em defesa de sua integridade ou da dos filhos; (c) seus motivos: conflito é pontual e não se caracteriza por uma pretensão global de intimidar ou castigar; (d) seu contexto: a violência da mulher não tende a produzir uma sensação de temor perdurável (ameaça onipresente e onipotente)
É este último aspecto que se consubstancia em principal ponto da questão: sensação de temor contínuo a uma ameaça onipresente e onipotente. Tal característica, marca da violência de gênero, autoriza a que medidas mais enérgicas e efetivas sejam utilizadas exclusivamente para proteger a mulher em situação de violência doméstica e familiar.
Um derradeiro argumento: considerando-se que “o homem médio é mais forte do que 99,9% das mulheres”(2), e que a assimetria do poder representa significativo obstáculo para se ultrapassarem as desigualdades estabelecidas entre os sexos, medidas preventivas, inclusive aquelas que restrinjam direitos do agressor, encontram-se mais do que justificadas. 2.3. O objeto de proteção da Lei Maria da Penha
A violência doméstica e familiar objeto de proteção da Lei é somente aquela baseada no gênero. É o que prevê o art. 5º da Lei, quando, ao conceituar a violência, o faz da seguinte forma:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
A violência de gênero consiste em um processo de caráter social. Sua compreensão, assim, exige a análise do papel reservado – e por reservar – à mulher nas relações sociais. Facilmente se verificam sobras consistentes do sistema patriarcal, marcado e garantido pelo emprego de violência física e/ou psíquica. Tal dominação propicia o surgimento de condições para que o homem sinta-se (e reste) legitimado a fazer uso da violência, e para compreender a inércia da mulher vítima da agressão, principalmente no que tange às reconciliações com o companheiro agressor, após reiterados episódios de violência, como uma condição “natural” de sexo. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo conclui que é comum as mulheres sofrerem agressões físicas, por parte do companheiro, por mais de dez anos. Ora, diversos estudos demonstram que tal submissão acontece em decorrência das condições de existência da mulher, e não da sua essência.
3. Fundamentos para as restrições de direitos, princípios e garantias previstos na Lei Maria da Penha
Algumas das particularidades que, por estarem presentes nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, justificam o tratamento diferenciado e que representam fatores de alto risco para a vida, a integridade física, moral e psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar:
• o principal tipo de violência sofrido pelas mulheres vítimas de violência doméstica e familiar é a física (65%), seguida da psicológica (38%) e da moral (32%) (Data Senado 2011);
•82% dos agressores de mulheres possuem vínculo afetivo íntimo com a vítima: 66% é o marido/companheiro; 13%, ex-namorado, ex-marido ou ex-companheiro; 4%, pai; 3%, namorado; 3%, irmão/cunhado; 2%, tio/primo; 0%, filho/enteado; 0%, padrasto; 6% foram agredidas por outras pessoas; e 4% não souberam ou não responderam (Pesquisa Data Senado 2011);
•18% das vítimas ainda sofrem algum tipo de violência doméstica e familiar; 20% sofrem violência todos os dias; 13%, semanalmente; 13%, quinzenalmente; 7%, mensalmente; 40%, raramente (de vez em quando); e 7% não responderam (Pesquisa DataSenado 2011);
• 27% das vítimas de violência responderam que o ciúme motivou a agressão; 27%, o uso de álcool; 7%, a traição conjugal; 5%, a separação; 3%, o uso de drogas; 3%, a falta de dinheiro; 1%, a influência das amizades; 0%, vícios em jogos; 33% apontaram outros motivos; e 4% não souberam ou não responderam (Pesquisa DataSenado 2011). No mesmo ano, pesquisa do Instituto AVON constatou que 48% das entrevistadas que declararam ter sido vítimas de violência grave responderam que os ciúmes motivaram a violência; 43%, problemas com bebidas ou alcoolismo; 26%, a falta de respeito; 20%, a desconfiança; 20%, a traição; 19%, desentendimentos do dia a dia; 18%, problemas econômico-financeiros; e 18%, o desequilíbrio emocional;
•38% dos entrevistados que admitiram ter agredido gravemente uma mulher responderam que os ciúmes motivaram a violência; 33%, problemas com bebidas ou alcoolismo; 21%, a traição; 19%, provocações; 18%, problemas econômico-financeiros; 12%, a desconfiança e 12% não tiveram motivo;
•48% dos entrevistados têm amigo ou conhecido autor de violência doméstica; 25% possuem parentes que agridem as companheiras; 2% declararam que “tem mulher que só aprende apanhando bastante” (Fundação Perseu Abramo 2010);
•meios que exigem contato direto, como objetos cortantes e penetrantes são mais comuns quando se trata de violência contra a mulher (15,1% para homens, 24,6% para mulheres), contundentes (5,0% para homens, 7,7% para mulheres), sufocação (0,9% para homens, 6,1% para mulheres) etc. (Mapa da Violência 2010);
• entre os homens, apenas 17% dos incidentes aconteceram na residência ou habitação; entre as mulheres, essa proporção se eleva para perto de 40% (Mapa da Violência 2010);
•estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimou que só a violência doméstica produz custos de 2% do PIB dos países da América Latina (http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=35782864);
• dos assassinatos ocorridos no Estado do Rio Grande do Norte, entre 1997 e 2007, em 49,15% dos casos de homicídio de mulheres praticados por homens, a motivação foi briga conjugal ou discussão, ciúmes, fim de namoro ou separação do casal (Coordenadoria Estadual de Defesa das Mulheres e das Minorias – CODIMM). Conclusões
A Lei Maria da Penha é, ao mesmo tempo, protetiva de direitos de mulheres e restritiva de direitos de agressores. Decorrentemente, sua aplicação somente se justifica em razão das circunstâncias muito específicas que envolvem a violência de gênero: brutalidade, institucionalização da violência, frequência, reiteração, permanência, intimidação e elevadíssimos índices.
Aplica-se, aqui, o princípio da proporcionalidade, já que o comum, dramático e de consequências gravosas é a violência do homem contra a mulher. A mulher agredida não se encontra em igualdade de condições com o homem agressor. Há uma vulnerabilidade, mesmo que transitória, ou seja, enquanto durar o estado de agressão, ainda que iminente.
Para uma melhor ideia da extensão do problema, citam-se dois relatórios. O primeiro, publicado pela Human Rights Watch, em abril de 2007, informando que em cada cem mulheres assassinadas, setenta o são no âmbito de suas relações domésticas. O segundo – Mapa da violência de 2010 – analisando dados nacionais, traz números equivalentes.
No que tange à violência doméstica e familiar, não se pode esquecer que ela possui causa (consequência e reprodução) social, decorrendo, principalmente, do papel reservado na sociedade às representantes do sexo feminino. Apesar de reconhecidos avanços, ainda vivemos em uma sociedade com mossas patriarcais fortes, na qual predominam valores estritamente masculinos, restos de imposição por condição de poder. A dominação do gênero feminino pelo masculino é apanágio das relações sociais patriarcais, que costumam ser marcadas (e garantidas) pelo emprego de violência física e/ou psíquica. Aliás, nesse assunto, muito há que ser percorrido para que o Brasil possa sair da vexaminosa 85ª posição em uma lista de 134 países (Estudo sobre igualdade entre os sexos, Gender Gap, 2010).
As peculiaridades da violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como os números absurdamente elevados, clamam pela utilização de instrumentos eficazes e enérgicos, mesmo que, para tanto, tenham-se que se sacrificar direitos, garantias e liberdades.
Dentro desta perspectiva, somente as vítimas de violência doméstica e familiar baseada no gênero (art. 5º da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha) ou aqueles (homens ou mulheres) que estejam nas situações elencadas no inciso III do art. 313 do CPP, com as alterações trazidas pela Lei 12.403/11 (criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência), ou nas condições mencionadas na Lei 9.807/99 (vítimas coagidas ou expostas à grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou processo criminal) possuem amparo específico, já que em relação a tais pessoas, há motivações particulares que, por conta de sua especial vulnerabilidade (vulnerabilidade situacional), justificam um tratamento também diferenciado, ainda que com a consequência de restringir direitos, garantias e liberdades fundamentais do acusado.
Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.
por Aline Bianchini
Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN - Instituto Panamericano de Política Criminal.
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