A seguridade social e a violência contra a trabalhadora rural
A seguridade social e a violência contra a trabalhadora rural
Direito
29/04/2014
RESUMO
A Constituição da República Brasileira de 1988 incluiu na categoria de segurados especiais os trabalhadores rurais. Apesar da garantia constitucional e da regulamentação, em 1991, em razão da promulgação da Lei 8.213, ainda hoje, mulheres trabalhadoras rurais são vítimas de violência institucional, perpetrada pelo INSS e, por vezes, reforçada pelo Poder Judiciário, ao ser-lhes negados direitos previdenciários a partir da exclusão destas mulheres da qualidade de seguradas especiais, a menos que sejam dependentes de outro segurado especial, não raro o pai ou o cônjuge. A violência institucional aumenta o risco de essas mulheres sofrerem violência doméstica e familiar, causando negativos impactos à saúde, além de ser uma violação a direito humano.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a seguridade social compreende um conjunto de ações para a garantia dos direitos à saúde, à previdência e à assistência social. Estes direitos, tidos por direitos sociais, também podem ser considerados direitos fundamentais em razão de estarem destinados a suprir carências básicas dos seres humanos.
Apesar da existência teórica destes direitos, ainda é possível verificar o distanciamento entre o que está legislado e o que é vivenciado, especificamente no que se refere às questões da trabalhadora rural.
Uma das hipóteses para esta incoerência está no fato de que a sociedade brasileira, desde a sua formação delineada por preceitos machistas, ainda não alcançou nível de maturidade suficiente para apreender o real alcance do universalismo, da igualdade, do que seja uma sociedade fraterna e fundada na harmonia social[3].
Embora não haja consenso sobre a origem e causas do machismo no mundo, é fato que este traço cultural está, ainda hoje, arraigado na sociedade brasileira e representa fator de aumento do risco de violência contra a mulher.
Importa analisar a etimologia da palavra violência. Esta surgiu a partir do latim violentia (caráter violento, ferocidade), que, por sua vez, advém de violentus, contendo o significado de impetuoso, furioso. Apareceu no Século XIV.
Segundo pesquisa realizada pelo IPEA sobre a tolerância da sociedade brasileira à violência contra as mulheres e publicada no sítio da ONU Brasil[4], é possível verificar a influência negativa dessas crenças: para quase 60% dos entrevistados, a culpa dos altos índices de violência sexual é das mulheres e para 55% da população brasileira, há mulheres adequadas para o casamento e outras adequadas apenas para o sexo às quais, por serem incontroláveis pela instituição do matrimônio, devem ser subordinadas à força, com violência e, se necessário, por meio do estupro.
Ademais, a partir da análise do Relatório Global sobre Desigualdade de Gênero 2013[5], produzido pelo World Economic Forum, embora a desigualdade de gênero tenha reduzido em 70% na América Latina, o Brasil manteve-se estagnado em relação ao desempenho obtido em 2012, permanecendo na 62ª colocação:
Ao analisar estas informações, é possível refletir sobre quais tipos e níveis de violência contra a mulher são socialmente aceitos no Brasil.
Compreendida a violência sob a visão de Arendt como um instrumento para alcançar um determinado fim, pode-se concluir que seu uso tem servido ao anseio de domínio, de poder sobre a mulher, vez que a violência, sempre instrumental, necessita de orientação e justificação pelos fins que persegue[6].
Em sintonia com este pensamento, René Girard[7] propõe que a violência no homem não é instintiva, mas social, havendo a possibilidade de ser mantida e justificada pela sociedade.
No dia 7 de agosto de 2006, foi aprovada a Lei n.º 11.340, conhecida como LEI MARIA DA PENHA, promulgada com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Embora muito se tenha discutido sobre este tema até o presente, os dados acima expostos demonstram que ainda há muito a ser feito para haver a pacificação social.
Pouco pensada e discutida, e aparentemente aceita pela sociedade, há uma modalidade de violência contra a mulher – a institucional – que agride de forma direta um sem número de mulheres brasileiras, além de indiretamente fomentar a violência doméstica e familiar.
A violência institucional pode dar-se por imposição jurídica de interpretação de norma sem discussão aberta e democrática, como expressão autoritária de poder que impede o reconhecimento do outro, negando-lhe direitos fundamentais e humanos, além de oprimir, subjugar à condição de inferioridade.
A partir da Constituição da República Brasileira de 1988, houve a inclusão teórica de trabalhadores rurais, homens e mulheres, na Previdência Social, como segurados especiais. Antes, havia um benefício rural, com características mais próximas de assistência social, cujo valor era equivalente a 50% do salário mínimo vigente e era concedido ao chefe da família, a partir dos 65 anos, mediante a comprovação de um período mínimo de três anos de trabalho no campo e recolhimento de contribuição sobre a produção comercializada.
Os trabalhadores rurais incluídos na categoria de segurados especiais passaram a ter o direito à aposentadoria no valor de um salário mínimo, sendo estendido este direito às mulheres, tendo como idade mínima para a concessão 55 anos para a mulher e 60 anos o homem.
Segundo publicação da OIT intitulada As boas práticas brasileiras em seguridade social[8], o novo tratamento dado aos trabalhadores rurais impactou na redução do êxodo rural, no desenvolvimento da agricultura familiar, da seguridade alimentar (uma vez que a agricultura familiar produz a maioria dos alimentos consumidos no Brasil), além de promover a solidariedade entre famílias de trabalhadores rurais que possuem aposentados e pensionistas.
Além destes pontos positivos, a trabalhadora rural, ao passar para a condição de segurada especial adquiriu, ainda que teoricamente, direito à licença maternidade, ao auxílio doença, ou seja, normativamente recebeu a proteção do Estado frente a situações da vida em que se encontrasse impossibilitada para o trabalho.
Em 1991, foi promulgada a Lei n.º 8.213, cujo artigo 11 definiu quem são os segurados obrigatórios especiais da Previdência Social:
Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
(...)
VII – como segurado especial: a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente OU em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, na condição de: a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade:
1. Agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais;
2. De seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do art. 2º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida; b) pescador artesanal ou a este assemelhado que faça da pesca profissão habitual ou principal meio de vida; e
c) cônjuge ou companheiro, bem como filho maior de 16 (dezesseis) anos de idade ou a este equiparado, do segurado de que tratam as alíneas a e b deste inciso, que, comprovadamente, trabalhem com o grupo familiar respectivo.
§ 1o Entende-se como regime de economia familiar a atividade em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes.
(...)
§ 6o Para serem considerados segurados especiais, o cônjuge ou companheiro e os filhos maiores de 16 (dezesseis) anos ou os a estes equiparados deverão ter participação ativa nas atividades rurais do grupo familiar.
Após a leitura deste dispositivo, até mesmo pela mais singela das técnicas de interpretação normativa, qual seja, a literal, vê-se que no núcleo da lei são classificados como segurados obrigatórios especiais:
1. A pessoa física, seja homem ou mulher;
2. Que residir no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele;
3. E que exercer individualmente OU em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, qualquer uma das atividades constantes das alíneas a, b ou c.
Porém, o que se vê predominar por parte das instituições INSS – Instituto Nacional do Seguro Social (e seus procuradores) – e Poder Judiciário é a prática da violência institucional contra as mulheres trabalhadoras rurais a partir da interpretação jurídica que elimina da condição de segurada especial a trabalhadora rural que exerce sua atividade individualmente ou com apenas alguns dos seus familiares.
Dessa forma, essas instituições apenas reconhecem os direitos previdenciários dessas mulheres se todos os membros da família também exercerem trabalho rural, em regime de economia familiar e em condição de mútua dependência.
Esta interpretação fere a lei, viola princípios constitucionais e a proteção que o Poder Constituinte Originário quis dar aos trabalhadores rurais e à mulher, negando a essas mulheres o que talvez seja o único direito que lhes poderia servir como empoderamento, como reconhecimento do seu valor e dignidade.
Essa violência institucional é tão destrutiva que a partir de uma reflexão mais profunda sobre as implicações do reconhecimento à mulher apenas do trabalho rural realizado com o grupo familiar, conclui-se que ou a mulher terá que exercer seu trabalho rural na dependência de segurado especial pai, ou na dependência de segurado especial cônjuge.
Em todas as profissões, em todas as relações humanas é de grande importância a inteligência contextual. Porém, este tipo de inteligência toma contornos de imprescindibilidade ainda maiores quando no exercício de representar o INSS, ou no exercício da magistratura, vez que ambos, ainda que em momentos e circunstâncias diferentes, decidem sobre importantes aspectos da vida dos seres humanos e possuem o poder-dever de promover a pacificação e a justiça social.
Porque falha o INSS, há a necessidade de judicializar os conflitos causados pela violência institucional. Porém, como garantidor dos direitos fundamentais de cada cidadão, o Poder Judiciário, em razão de tão nobre função e correspondente responsabilidade, deveria ter a sensibilidade e inteligência contextual necessárias para analisar e julgar em profundidade, sem perder de vista o significado das letras no papel, percebendo a vida real, as relações humanas e o contexto social que da celulose avultam.
Outro ponto relevante está no fato de que embora existam regras claras sobre como serão punidos os que cometerem violência doméstica contra a mulher, o mesmo não se pode dizer quanto a punições aos perpetradores da violência institucional.
Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS[9], a desigualdade em razão do gênero aumenta o risco de violência dos homens contra as mulheres e, por consequência, inibe nelas a capacidade de buscar a desrepressão e saúde integral.
O que resta então a essas mulheres?
Nesse sentido, é relevante refletir sobre quem é essa mulher trabalhadora rural e em qual contexto histórico-social ela se insere.
Em sua maioria são nascidas e crescidas no interior, possuem vários irmãos, e são filhas de pobres casais analfabetos e trabalhadores da roça.
Por questões sociais e culturais, desde a infância foram adestradas para o árduo trabalho braçal da roça, aprendendo a capinar, roçar, plantar, colher, fabricar artesanalmente produtos agropecuários, queijos, ordenhar vacas, além de acumular o trabalho doméstico, afinal, “a cozinha é da mulher” e não do homem.
Em um mundo machista, o contexto da área rural é de ainda maior limitação para as mulheres. Estudar para que? Às mulheres não era (e em algumas regiões ainda não é) prioridade o estudar, afinal, “ninguém vive de comer papel” e as funções da mulher são as de trabalhar na roça, cuidar da casa, do marido, dos filhos, sem falar, sem reclamar.
Portanto, muitas dessas mulheres não tiveram acesso a sequer concluir o ensino fundamental, não tiveram o que se entende por infância, pois, dentro dessa construção social, vieram ao mundo para trabalhar pesado, sem receber remuneração, pois o trabalho rural é uma obrigação. Qualquer semelhança com a percepção e tratamento que a nossa sociedade confere aos animais não humanos de carga não é mera coincidência.
A título de exemplo, FRITZEN[10] relata que, quando criança, nascida na área rural de Joaçaba/SC, e filha de trabalhadores da roça, sentia-se desintegrada da família e se questionava: por que preciso crescer, casar, ter filhos e trabalhar na roça? Somente havia duas possibilidades para as meninas: a opção acima ou o convento. Ela descreve, também, que seu pai teve a oportunidade de estudar em escola comunitária rural, porém, sua mãe era analfabeta e aprendeu a ler e escrever um pouco por vontade própria e com a ajuda dos filhos, embora realizasse todas as tarefas da casa e ainda acompanhasse o marido nos trabalhos da roça e no trato dos animais.
Além disso, bem como de não terem qualificação profissional, muitas dessas mulheres trabalhadoras rurais são desdentadas desde tenra idade. Afinal, ter dentes é um luxo desnecessário quando se é mulher, analfabeta funcional, adestrada para o trabalho pesado.
O casamento pode ser considerado como uma mudança de “senhorio”, afinal, em uma sociedade onde o machismo impera e quem detém o poder é o homem, não resta opção à mulher a não ser obedecer incondicionalmente ao pai e, após casar-se, ao marido.
Como se verificou a partir da pesquisa estatística realizada pelo IPEA sobre a tolerância da sociedade brasileira à violência contra as mulheres, ainda subsiste na ideação brasileira o entendimento de que há mulheres para o casamento, e, portanto, predomina o modelo de família e casamento patriarcal como forma de controle das esposas.
Cumpre ressaltar que muitas dessas trabalhadoras rurais não se casam com homens independentes financeiramente, mas, por vezes, são igualmente pobres e analfabetos funcionais, oriundos da mesma região rural, porém, “homens trabalhadores” e livres para intentar labores urbanos como, por exemplo, o de servente de pedreiro, nos períodos em que não há possibilidade de rendimento advindo do campo.
Nesse contexto, estudar? Exercer trabalho urbano? Ser alguém? Jamais! A mulher querer avançar, melhorar não é permitido, afinal, às mulheres não é autorizado querer uma posição igual, muito menos mais elevada que a do homem. A mulher tem que obedecer e vir atrás, mesmo que implique todos viverem com maiores restrições.
Não raramente, o trabalho autorizado a essas mulheres é o único que aprenderam: ser trabalhadora rural.
Porém, será que essa mulher, em sã consciência, escolhe trabalho tão extenuante e pesado, nada agradável, que sojiga a carne? A resposta é óbvia: não. Elas não possuem opção. Não raro, são mulheres que foram adestradas como animais de carga para trabalhar sem reclamar. Por serem mulheres, sequer tiveram a mínima posição de destaque que é dada aos homens, mesmo aos pobres: ser quem manda, ser quem “toma conta do dinheiro”.
Portanto, se quiserem alguma liberdade, aqui significando o auferir uma mínima renda para sua subsistência, elas precisam trabalhar no único trabalho que conhecem e possuem autorização dos maridos para exercer: o trabalho rural.
Nesse sentido, valendo-se da inteligência contextual, há mais condições para que o magistrado possa julgar compreendendo a magnitude e o mais profundo alcance da lei, notadamente a Lei n.º 8.213/1991 que, ao trazer o direito à aposentadoria especial, veio tratar desiguais na medida em que se desigualam a fim de tentar corrigir históricas injustiças sociais e coibir a violência contra a mulher.
Porém, ainda nesse contexto, não se pode ignorar a desigualdade em razão do gênero que ocorre entre os trabalhadores no meio rural.
O texto “O idoso e a previdência rural no Brasil: a experiência recente da universalização”[11], produzido pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, traz na tabela 5, na página 19, dado estatístico sobre a exclusão dos idosos, acentuando que a exclusão no meio rural é quase três vezes maior entre as mulheres se comparada aos homens.
Atenta a essa desigualdade, a ONU – Organização das Nações Unidas, por meio da Oficina Regional da FAO para a América Latina e Caribe, publicou uma nota, em 9 de agosto de 2013, alertando sobre a necessidade urgente de políticas públicas específicas para as mulheres trabalhadoras rurais, notadamente as não remuneradas[12].
Segundo a FAO, 82% das mulheres agrícolas não remuneradas vivem em residências cuja renda provêm exclusivamente da atividade agrícola, 14% em domicílios de renda mista, 3% vive em locais de renda não agrícola e o 1% restante em domicílios que dependem de transferências do Estado. Os censos dos anos de 2006 e 2007 mostram que as mulheres não remuneradas representam de uma a duas vezes o número de mulheres chefiando as atividades agrícolas.
Apesar disso, elas são, na maioria, trabalhadoras invisíveis para as estatísticas oficiais, já que são classificadas como inativas, apesar de efetivamente trabalharem. Em média, 56% das mulheres rurais com mais de 15 anos de idade são registradas na região (América Latina e Caribe) como população inativa.
Sobre os efeitos da desigualdade de gênero discorre Rolf Madaleno ao evidenciar que de nada serve projetar paridades se à esposa (...) continuam faltando oportunidades no mercado de trabalho. A falta de recursos, o medo de represálias, o temor de não ter onde morar, (...) de não ter comida à mesa, o receio de uma odiosa dependência econômico-financeira continuam neutralizando a posição ativa dessas pessoas que ainda são cotadas como verdadeiras minorias sociais[13].
Nesse sentido, a Turma Nacional de Uniformização – TNU, ao julgar o PEDILEF (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal) n.º 200672590017077, manifestou o real alcance da lei, em uma tentativa de corrigir as distorções de interpretação que lesionam e oprimem os mais fracos (como no caso das trabalhadoras rurais) além de colidir com importantes princípios e direitos fundamentais constitucionais, senão vejamos:
E M E N T A PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO. CONTRARIEDADE À JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA CARACTERIZADA. SEGURADO ESPECIAL. EXERCÍCIO DE ATIVIDADES URBANAS POR MEMBRO DO GRUPO FAMILIAR. IRRELEVÂNCIA. Caracterizada a contrariedade à jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, conhece-se do pedido de uniformização. O fato de um dos membros do grupo familiar exercer atividades urbanas retira-lhe a condição de segurado especial, mas não a retira dos demais membros desse grupo, que exerçam atividades rurícolas, nem os impede, portanto, de obterem suas aposentadorias rurais por idade.
(...)Penso que o posicionamento assumido no presente feito não pode prosperar, diante da referida jurisprudência, que, aliás, já respaldou decisões desta Turma Nacional, na apreciação de incidentes de uniformização ofertados diante de casos similares. A ilustre Ministra LAURITA VAZ, da 5ª (Quinta) Turma, do aludido Tribunal, ao atuar como Relatora, no julgamento do Recurso Especial nº 675.892/ RS, ensinou que “o recebimento de proventos pelo marido da parte autora não constitui óbice à concessão do pleiteado benefício, pois a postulante, no período de carência, não trabalhou na atividade agrícola em regime de economia familiar, mas sim, individualmente, o que não a impede de adquirir sua aposentadoria, decorrente de seu próprio trabalho, pois, conforme a legislação previdenciária já citada (art. 11, inciso VII), também é segurado especial quem exercer atividade agrícola individualmente”. O eminente Ministro GILSON DIPP, também integrando a 5ª (Quinta) Turma, na ementa do aresto proferido quando da apreciação do Recurso Especial nº 289.949/ SC, destacou que “o fato do marido da autora ser aposentado e seu filho pedreiro não afasta a qualidade de segurada especial da mesma, para obtenção da aposentadoria rural por idade”.
(...) Como visto, a aludida norma - que, a meu sentir, tem caráter interpretativo - adota a política de excluir da condição de segurado especial aquele que exerce atividades urbanas, mas não a de excluir da condição de segurado especial aquele que exerce atividades rurícolas. Vale referir que, antes mesmo do advento da Lei n.º 11.718, de 2008, a própria regulamentação da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei n.º 8.213;91), baixada pelo Decreto n.º 3.048/99, com a alteração introduzida pelo Decreto n.º 4.729, de 2003.
(...) Ante o exposto, não havendo controvérsia quanto ao exercício de atividades rurícolas pela parte autora, durante o período correspondente à carência da aposentadoria rural por idade, tendo ficado comprovado o implemento do requisito etário, e tendo sido afastado o óbice à concessão do benefício, deve ele ser concedido desde logo. Fica o INSS condenado, pois, a conceder à parte autora a aposentadoria rural por idade, no valor de um salário mínimo, desde a data do protocolo do requerimento administrativo, e a pagar as respectivas prestações atrasadas, com correção monetária e juros de mora, estes de 12% ao ano, a partir da citação. Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao pedido de uniformização. É o voto.[14]
Na mesma convergência ideológica, a título de informação, foi aprovado no Senado Federal, em 11/9/13, o PLS 263/2013 “para estabelecer que cônjuge ou companheiro não perde a condição de segurado especial mesmo quando o outro cônjuge ou companheiro ou qualquer um dos filhos maiores de 16 (dezesseis) anos exercer atividade remunerada permanente ou por período superior a cento e vinte dias”.
A Senadora Ana Amélia (PP-RS), na exposição de motivos da PLS 263/2013, argumenta que têm recebido inúmeros relatos de indeferimentos do direito à aposentadoria rural a mulheres agricultoras por seus maridos ou companheiros exercerem atividade remunerada, o que é incorreto, pois as mulheres agricultoras não podem ser penalizadas com a perda da condição de seguradas especiais pelo simples fato de seus maridos ou companheiros exercerem outra atividade remunerada. E, destaca:
Ressalte-se, por outro lado, que o § 9º do art. 11 da Lei nº 8.213, de 1991, estabelece que não é segurado especial o membro de grupo familiar que possuir outra fonte de rendimento. Por este raciocínio, a eventual desvinculação de um dos cônjuges da condição de segurado especial não teria o condão de atingir o outro cônjuge ou companheiro, mas infelizmente não é esta a interpretação adotada pelo INSS, razão pela qual se faz necessária a presente adequação legislativa.
Finalmente, a posição que vem sendo adotada pelo INSS não se sustenta até porque o § 6º do art. 11, da Lei nº 8.213, de 1991, não fala em “ambos os cônjuges ou companheiros” e a alegada “participação ativa”, referida no texto legal, não impediria o eventual exercício de outra atividade remunerada.
Dessa forma, evidencia a Senadora Federal que a própria Lei 8.213/1991 possui a previsão legal para concessão de aposentadoria para essas mulheres agricultoras, porém, em razão da equivocada interpretação que tem sido feita, é preciso reforçar, redizer, de forma bem didática, o que já está escrito.
Infelizmente, apesar de todo o exposto, também o Poder Judiciário, notadamente o de primeiro grau, tem, juntamente ao INSS, cometido essa violência institucional contra a mulher trabalhadora rural, negando-lhes direitos fundamentais e limitando-as a uma condição de inferioridade perante os homens de suas famílias, o que fomenta e aumenta o risco de outras formas de violência contra a mulher, notadamente a violência doméstica.
CONCLUSÃO
A partir de todas as reflexões feitas, verifica-se que o Brasil ainda possui grandes desafios a serem vencidos no que diz respeito à prevenção à violência contra a mulher trabalhadora rural.
Nesse sentido, quando as instituições públicas responsáveis concederem, sem nenhuma violência, o direito à aposentadoria especial à trabalhadora rural, haverá o reconhecimento e valorização do trabalho dessas mulheres, atuando, também, como instrumento para a prevenção da violência doméstica contra a mulher. REFERÊNCIAS
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<http://www.onu.org.br/fao-40-das-mulheres-agricultoras-na-america-latina-e-caribe-nao-recebem-pagamento/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+ONUBr+%28ONU+Brasil%29> Acesso em 17/8/2013.
< http://www.onumulheres.org.br/?noticias=07-04-2014-para-o-brasil-ha-mulheres-e-mulheres-e-todas-devem-ser-controladas > acesso em 21/4/2014.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.213 de 24/7/1991. Lei dos Planos de Benefícios da Previdência Social.
BRASIL. Lei nº Lei n.º 11.340 de 7/8/2006. LEI MARIA DA PENHA.
FRITZEN, Reinalda. Caminhos de autossuperação: relatos de maxidissidência ideológica.Foz do Iguaçu. Editares, 2013.
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WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Gender Gap Report 2013.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Violence prevention: the evidence. 2013.
________________________________________
[1] Artigo apresentado como requisito à participação no Programa de Inclusão e Educação Previdenciária da Faculdade de Direito Milton Campos - PIEP.
[2] Bacharel em Direito. Especialista em Direito Administrativo e Direito Ambiental. Membro do Programa de Inclusão e Educação Previdenciária da Faculdade de Direito Milton Campos – PIEP. Oficiala do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
[3] Estes valores estão expressos no Preâmbulo da Constituição da República Brasileira de 1988.
[4]< http://www.onumulheres.org.br/?noticias=07-04-2014-para-o-brasil-ha-mulheres-e-mulheres-e-todas-devem-ser-controladas > acesso em 21/4/2014.
[5] WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Gender Gap Report 2013, p.147.
[6] ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 197, p. 128
[7] GIRARD, René. A violência e sagrado. Paz e Terra, 1988.
[8] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. As boas práticas brasileiras em seguridade social, volume 1. Brasília: OIT, 2012, p. 37.
[9] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Violence prevention: the evidence. 2013, p. 81.
[10] FRITZEN, Reinalda. Caminhos de autossuperação: relatos de maxidissidência ideológica.Foz do Iguaçu. Editares, 2013, páginas 35,40 e 46.
[11]<http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_0688.pdf> Acesso em 17/8/13.
[12]<http://www.onu.org.br/fao-40-das-mulheres-agricultoras-na-america-latina-e-caribe-nao-recebem-pagamento/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+ONUBr+%28ONU+Brasil%29> Acesso em 17/8/2013.
[13]MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. RJ. Editora Forense. 2008, p. 27.
[14] TNU. PEDILEF 200672590017077 . DJ 9/9/2009. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Juízes da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, por unanimidade, em dar provimento ao pedido de uniformização. Brasília, 3⁄4 de agosto de 2009. Relator, Juiz Federal Dr. Sebastião Ogê Muniz.
Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.
por Flavia Cristina
Flávia Cristina Ancelmo.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos.
Especialista em Direito Ambiental e em Direito Administrativo.
Membro do PIEP - Programa de Inclusão e Educação Previdenciária da Faculdade de Direito Milton Campos
UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93