O trabalho escravo, já fora erradicado do Brasil?

A CF garante a Dignidade da Pessoa Humana
A CF garante a Dignidade da Pessoa Humana

Direito

08/10/2014

O TRABALHO ESCRAVO, JÁ FORA ERRADICADO DO BRASIL?

Karina Ferreira da Rocha[1]



RESUMO: Este artigo tem como objetivo fazer uma explanação acerca da existência, ainda hoje, em pleno século XXI do Trabalho Escravo no Brasil, abordando como e o porquê de ainda existir “trabalho escravo”, e quais as sanções que o ordenamento jurídico brasileiro aplica para quem compactua com este tipo de atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana.



INTRODUÇÃO

Quando se fala em trabalho escravo, se verifica a afronta direta aos princípios e às garantias individuais previstos tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Constituição Federal Brasileira. É patente que, em pleno século XXI, ainda existir, no Brasil este tipo de desrespeito para com os indivíduos.


O trabalho escravo não é considerado apenas um problema trabalhista, mas também um crime de violação de direitos humanos, pois normalmente, quem se utiliza dessa prática também é flagrado por outros crimes e contravenções[2]. Destarte, o trabalho escravo torna-se um tema transversal[3], que está ligado a diversas áreas.


Nota-se também que nos locais em que há degradação das relações do trabalho há também uma degradação enorme ao meio ambiente, à fauna[4] e à flora[5], causando, assim, grandes problemas ambientais, suprimindo os Biomas[6] brasileiros.


A escravidão coisifica o homem. Transforma-o em força de trabalho pura, preterida de direitos. Nega ao trabalhador sua própria dignidade, atingindo profundamente sua integridade pessoal e o tecido social.


Ressalta-se ainda que, o trabalho escravo não é uma exclusividade de países em desenvolvimento, ou subdesenvolvidos, de países pobres, ele existe em todas as economias do mundo, em todas as regiões e é apresentando nas mais diversas formas.


1 BREVE PANORAMA HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO

Sabe-se que a primeira forma de trabalho no mundo foi a escravidão, onde esta, foi praticada por muitos povos, em diferentes regiões, desde as épocas mais remotas.


Os escravos, em princípio, não compreendiam uma determinada classe, eram geralmente prisioneiros de guerra, pessoas com dívidas, etc., no entanto, no decorrer do tempo, destacou-se a escravidão de negros e com o descobrimento da América, na Idade Moderna[7], houve um florescimento dessa escravidão. Desenvolvendo-se, destarte, um cruel e lucrativo comércio de homens, mulheres e crianças entre a África e as Américas.


A escravidão passou a ser justificada por razões morais e religiosas e baseada na crença da suposta superioridade racial e cultural dos europeus sobre os africanos.


No Brasil, enquanto este ainda era colônia de Portugal, a escravidão começou com os índios, mas por os índios serem “rebeldes”, “selvagens” e, por isso, não corresponderem às expectativas dos colonizadores, estes, foram trocados por negros que eram trazidos da África e vendidos para trabalharem nas fazendas dos grandes latifundiários brasileiros. Isso ocorreu, em tese, até 13 de maio de 1888, que foi quando a escravidão foi proibida por meio da Lei Áurea.


Entretanto, apesar da Escravidão ter findado no século IX no mundo, ainda se encontra em pleno século XXI situações que mantêm trabalhadores em estado de escravidão no Brasil, ou seja, o Trabalho Escravo ainda continua sendo, no mundo hodierno, um tema de sérios questionamentos para a Justiça Trabalhista Brasileira.

2 CONCEITO DE TRABALHO ESCRAVO E ESCRAVIDÃO

Segundo Sérgio Pinto Martins[8], a palavra trabalho vem do latim tripalium, que era uma espécie de instrumento de tortura de três paus ou uma canga que pesava sobre os animais. Hodiernamente, trabalho quer dizer exercício material ou intelectual para fazer conseguir alguma coisa; esforço, labutação, lida, luta, etc.


O Escravo é considerado posse, propriedade, bem alienável de alguém, ou seja, algo que pode ser comprado, vendido, alugado, dado, eliminado. E a escravidão era a forma em que o escravo era submetido, onde era considerado apenas como uma coisa, um objeto, não tendo qualquer direito, nem mesmo sobre si.


Antônio Azevedo[9] no seu Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos define escravidão como:

Instituição secular caracterizada pela situação de indivíduo juridicamente considerado um objeto, do qual outra pessoa pode dispor livremente exercendo direitos de propriedade. A escravidão conheceu extraordinária difusão no mundo antigo, originando-se, de modo geral, da guerra – celeiro inesgotável -, das dívidas e da hereditariedade (...).


As diversas modalidades de trabalho escravo no mundo hodierno têm características que lhe são inerentes, inatas, como o uso da coação e a negação da liberdade.


No Brasil não é diferente e o trabalho escravo configura-se pela existência de trabalho degradante[10] com a privação de liberdade, onde o trabalhador fica preso a uma dívida que nunca acaba, o seu local de trabalho é totalmente isolado, ficando a quilômetros de distância da cidade mais próxima.


Portanto, trabalho escravo se configura pelo trabalho feito em péssimas condições junto ao cerceamento da liberdade que nem sempre é visível, visto que, no mundo de hoje, não se utilizam mais correntes para prender o escravo, mas sim ameaças físicas ou terror psicológico.


Agora, faz-se mister, fazer uma análise do novo e antigo sistema de escravidão, comparando-os e citando os resquícios do velho sistema sob o atual.

3 A NOVA ESCRAVIDÃO E O ANTIGO SISTEMA

O trabalho semelhante ao escravo se manteve, no decorrer do tempo, apenas de outra maneira. A escravidão contemporânea é, a princípio, totalmente diferente da antiga, todavia rouba a dignidade do ser humano da mesma maneira.


No sistema antigo era permitido, lícito, se ter um escravo, hoje, não. Outro fato também é que era muito mais caro comprar e manter um escravo antigamente do que hoje. O negro africano era um investimento a que poucas pessoas tinham acesso, geralmente, na maioria, só os grandes latifundiários, hoje o custo é quase zero.


Na contemporaneidade, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são em geral pobres, miseráveis, sem distinção de cor ou raça, ou seja, as diferenças étnicas não são mais fundamentais para escolher a mão-de-obra. A seleção se dá pela capacidade da força física de trabalho.


Em relação, ainda, ao trabalho escravo contemporâneo, Marcelo Dias Varela[11] salienta que:
O trabalho escravo pode ser identificado de várias formas, como pelas más condições de trabalho, sem qualquer higiene ou segurança, sem registros e pagamentos dos direitos trabalhistas, a tal ponto que os direitos do trabalhador sejam tão ofendidos que a situação se assemelhe ao período de escravidão.


Diante, desta comparação, faz-se mister, agora, analisar como ocorre o trabalho escravo atualmente no Brasil.


4 COMO OCORRE O TRABALHO ESCRAVO ATUAL NO BRASIL

Os trabalhadores são aliciados pelos Gatos[12], para trabalharem em derrubadas de matas nativas para formação de pastos, produção de carvão para a indústria siderúrgica, preparação o solo para plantio de sementes, entre outras atividades agropecuárias.


Esses gatos recrutam pessoas em regiões distantes do local da prestação de serviços. Na primeira abordagem, mostram-se agradáveis, portadores de boas oportunidades de trabalho. Oferecem serviço em fazendas, com garantia de salário, de alojamento e comida.


O transporte é realizado por ônibus em péssimas condições de conservação ou por caminhões, os chamados paus de arara, improvisados sem qualquer segurança. Ao chegarem ao local do serviço, são surpreendidos com situações completamente diferentes das prometidas.


Vale lembrar que, por as fazendas estarem distantes dos locais de comércio mais próximos é praticamente impossível o trabalhador não se submeter totalmente a esse sistema, imposto pelo gato a mando do fazendeiro ou diretamente pelo fazendeiro.


Se o trabalhador pensar em ir embora, será impedido sob a alegação de que está endividado e de que não poderá sair enquanto não pagar o que deve e muitas vezes, aqueles que reclamam das condições ou tentam fugir são vítimas de surras e no extremo, podem até perderem a vida.


Vale ressaltar também a presença constante de humilhação pública e de ameaças, que o trabalhador sofre, levando-o a manter-se em um estado de medo constante.


Diante desse quadro, faz-se necessário agora mostrar como se comporta a legislação brasileira acerca do trabalho escravo contemporâneo.
5 O TRABALHO ESCRAVO E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Baseando-se na Constituição Federativa Brasileira, sabe-se que ela assegura diversos direitos individuais e sociais a todos os indivíduos. No seu artigo 5º, inciso III, por exemplo, a Constituição reza que: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Porém, essas leis não têm sido suficientes para resolver o problema, são muito brandas e por isso o número de propriedades reincidentes é enorme.


O Código Penal Brasileiro em seu artigo 149 trata do tema também, tipificando-o como crime:

Reduzir alguém as condições análogas à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.


Segundo Alice Barros[13] há acordos e convenções internacionais que tratam da escravidão contemporânea. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, que tem mostrado papel de extrema significância para erradicar este flagelo social que afronta ainda milhares de indivíduos em todo o mundo.


Vale ressaltar também que, segundo o art. 5º, inciso XXIII, da CF “a propriedade atenderá a sua função social”. E essa função social da propriedade será cumprida, quando a mesma atende simultaneamente seu aproveitamento racional e adequado, observando a preservação do meio ambiente, devendo ainda, serem observadas as disposições que regulam as relações de trabalho e que favoreçam o bem estar dos trabalhadores.


Desta forma, confirma-se, portanto, que há violação aos direitos elementares contidos em dispositivos legais nacionais e internacionais, inclusive de natureza penal, ferindo uma série de normas constitucionais, como as que estabelecem princípios basilares do Estado Democrático de Direito e, ainda, uma série de garantias individuais, como aquela contida no art. 5º, inciso III, da CF/88, já supracitado.


6 FATORES QUE CONTRIBUEM PARA A PRÁTICA DO TRABALHO ESCRAVO


Um dos principais fatores que contribuem para a prática do trabalho escravo é o fator chamado impunidade, pois a justiça é lenta e a lei é branda para com os infratores.


Sabe-se que a atuação dos fiscais[14] do Ministério do Trabalho é morosa e tardia. As denúncias feitas são atendidas dois, três dias ou até semanas depois, o que contribui para que os empregadores eliminem as provas que poderiam confirmar a degradação do trabalho.


Outro fator bastante importante é que estes locais, geralmente protegidos por guardas armados, dificultam o acesso e a atuação dos fiscais e juízes do trabalho diretamente ligados no combate ao trabalho escravo. Estes, muitas vezes são ameaçados ou até mortos, ficando limitados para exercer seu trabalho de maneira digna e eficaz.


É notório também que a maioria que têm seus direitos violados têm medo de denunciar a situação em que estavam submetidos e é aí que ratifica o problema, pois como enfatiza IHERING[15]: “Quando um indivíduo é lesado nos seus direitos, deve perguntar-se se ele os sustentará, se resistirá, ou se efetivamente, para escapar da luta, abandonará, covardemente, o seu direito”.


Por fim, enfatiza-se aqui o seguinte comentário de um BISPO do Mato Grosso sobre o porquê de ainda existir o trabalho escravo no Brasil:

O lucro, em todos os tempos e em todos os povos, quando se constitui em critério e justificativa, se alimenta sempre de sangue humano. A escravidão é uma decorrência da insaciável e inescrupulosa hegemonia do lucro. Ontem e hoje. Na escravidão clássica, na escravidão africana, nesta atual diluída escravidão, que pode ser o trabalho infantil degradante, ou as maquiladoras nos porões das cidades, ou a peonagem flutuante nas fazendas latifundiárias. Comprar, vender, roubar vidas humanas é um comércio conatural para quem faz da ganância razão da própria vida desumana. (Pedro Casaldáliga, Bispo em São Félix do Araguaia, Mato Grosso – MT, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se que todas as grandes conquistas exigem uma grande luta, pois como pontifica IHERING[16]:
(...) Todas as grandes conquistas que a história do direito registra: - abolição da escravatura, da servidão pessoal, liberdade da propriedade predial, da indústria, das crenças, etc., foram alcançadas assim à custa das lutas ardentes, na maior parte das vezes continuadas através de séculos; por vezes são torrentes de sangue, mas sempre são direitos aniquilados que marcam o caminho seguido pelo direito (...).


Então, pode-se aplicar a ideia de Ihering na atual problemática, deixando claro que só se conquista algo através de uma luta. Ao cuidar do problema da escravidão contemporânea, não se deve dar ênfase apenas ao resgate de direitos sociais e econômicos no âmbito da relação de trabalho, pois não há como negar que esta prática atinge profundamente a própria condição de ‘pessoa’ das vítimas. É, em si, uma grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição Cidadã e pelos principais tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos.


A erradicação do instituto trabalhista em questão passa pelo cumprimento das leis existentes, porém isso não tem sido suficiente para acabar com esse flagelo social.


Portanto, deve-se continuar criando metas e lutando para tentar erradicar o trabalho escravo e degradante neste país, pois como salienta IHERING[17]: “Sem luta não há direito (...)”. “A luta é o trabalho eterno do direito”. E “Só na luta encontrarás teu direito”.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 6ª edição. Editora LTR, São Paulo – SP, 2010.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

BRASIL. CÓDIGO PENAL de 1940

IHERING, Rudolf Von. A Luta Pelo Direito: Texto Integral. Traduzido por Mário de Méroe. Editora Centauro, São Paulo – SP, 2003.

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24ª edição. Editora Atlas S.A., São Paulo – SP, 2008.

VARELA, Marcelo Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária: o direito face aos novos conflitos sociais, São Paulo: LED, 1998.
[1] Advogada formada pela Universidade Estadual da Bahia.
[2] Infração; transgressão de regras.
[3] Que corta ou atravessa; que passa.
[4] Conjunto de animais de uma região.
[5] Conjunto de plantas de uma região.
[6] Referente a fauna brasileira.
[7] Período que se estende desde a Idade Média até a Revolução Francesa na França.
[8] MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 24ª edição. Editora Atlas S.A., São Paulo – SP, 2008, p. 4
[9] AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 157.
[10] Aquilo que é indigno, desprezível.
[11] VARELA, Marcelo Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária: o direito face aos novos conflitos sociais (São Paulo: LED, 1998, p. 451.
[12] Expressão usada para denominar os contratadores da empreitada, na verdade ele é considerado um ‘falso’ empreiteiro, que são usados pelo fazendeiros.
[13] BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 6ª edição. Editora LTR, São Paulo – SP, 2010, p. 641
[14] São responsáveis por fiscalizar as condições de trabalho nas fazendas e visa também regularizar os vínculos empregatícios dos trabalhadores encontrados e demais consectários e libertá-los da condição de escravidão se estas condições estão de acordo com o que prega a Constituição.
[15] IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito: Texto Integral. Traduzido por Mário de Méroe. Editora Centauro, São Paulo – SP, 2003, p. 26
[16] IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito: Texto Integral. Traduzido por Mário de Méroe. Editora Centauro, São Paulo – SP, 2003, p. 26
[17] IHERING, Rudolf Von. A Luta Pelo Direito: Texto Integral. Traduzido por Mário de Méroe. Editora Centauro, São Paulo – SP, 2003, p. 96.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Karina Ferreira da Rocha

por Karina Ferreira da Rocha

Advogada formada em 2014.1 na Universidade Estadual da Bahia - UNEB, Campus VIII, Paulo Afonso/BA. Tenho experiência em Monitoria de Ensino pela UNEB. Estagiei em Paulo Afonso/BA no Juizado Especial Federal, Defensoria Pública e no Ministério Público Federal. Participei de Mutirões de Conciliação dos Juizados Especiais e da Justiça Federal. Trabalhei 2,5 anos no UPT como docente.

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