BECCARIA, A CAUDA DA LAGARTIXA E A PERGUNTA: "E SE FOSSE COM VOCÊ?"

Capa do Livro "Leviatã" de Thomas Hobbes.
Capa do Livro "Leviatã" de Thomas Hobbes.

Direito

24/11/2014

A lagartixa tem um dos mecanismos de defesa mais intrigantes do Reino Animal. Quando se vê ameaçada diante de um predador, ela "rompe" sua cauda e foge, fazendo com que o inimigo fique distraído com aquela cauda, ali, que se debate ao chão, meio morta. A lagartixa não se preocupa se vai ficar sem cauda, pois ela tem o poder da autorregeneração. O importante é sair ilesa e distrair o inimigo.

Essa é a analogia que me veio à mente ao ler a obra "Dos Delitos e das Penas" (BECCARIA, Cesare. Edipro. São Paulo. 2003). Aliás, não a toa esse autor cita em seu texto "O Leviatã" Thomas Hobbes (p. 17). Para ele, Hobbes, o Estado é um dragão. Pra mim, está mais para lagartixa. Não no tamanho, mas na artimanha. Explico:

Beccaria é discípulo da escola rousseana, que pregava o contrato social, a renúncia parcial que cada um faz de quem se é e do que se tem para criar uma ficção jurídica denominada Estado, assim mesmo, com letra maiúscula. O Estado nada mais é que a personificação de frações de liberdades individuais agrupadas em um ente, no caso, ele. A sociedade, num lento processo, viu que só poderia ser chamada assim "sociedade" se criasse regras para a convivência pacífica entre seus integrantes. Então ela "terceirizou" essa prerrogativa de patrulha ao ente Estado, que desde então passou a ditar as tais regras para pacificar a sociedade. Até aí tudo bem, algo visionário e que realmente funciona!

Mas...o Estado, a despeito de ser uma ficção jurídica, é composto por pessoas que pensam que vivem uma ficção científica, e não poucas vezes usam do Estado para defenderem interesses alheios à coletividade. O Estado extrapola seus limites, ou seleciona os destinatários de suas regras. Aí que entram as leis.

Para que servem as leis? Ora, se o Estado detém a autoridade para a pacificação social, deveríamos supor que as leis servem para proteger o cidadão contra os exageros estatais, certo? Sim, deveria, mas o que ocorre é exatamente o contrário! Se não bastasse o Estado concentrar em si frações de liberdades individuais, ele, temendo o que pode ocorrer caso a sociedade perceba que ele é a lagartixa que foge, excluindo sua cauda, queira assumir o poder de novo, decidiu usar as leis para definir quem faz parte de sua cauda, quem será excluído, marginalizado, quem se debaterá ao chão enquanto os poderosos se distraem com essa agonia meio morta.

Vamos desenhar: o Estado é incompetente para gerir as satisfações sociais (e olha que sou Estadista!!), não consegue levar infraestrutura, saneamento, lazer, cultura de forma isonômica às regiões, então um grupo decide se rebelar, gritando: Alto lá, Estado!! Eu abri mão de quem sou e do que tenho para ter essa contrapartida sua, e você me abandona?! Quero minha liberdade de volta!! O que o Estado faz: criminaliza toda e qualquer reação social, apoiado, claro, pela opinião publicada, que é o inimigo que se distrai com a cauda convulsionante. Com que ferramenta a lagartixa solta sua cauda?

Com as leis, sobretudo com as leis penais. Um Estado punitivista atesta sua dificuldade em aceitar que a cauda faz parte de sua composição, e que estratégias de exclusão só distraem inimigos. Quem perde, na verdade, é a lagartixa como um todo.

Uma apressada lida na obra de Beccaria leva-nos a acreditar que o autor quase que faz um Ode à Impunidade, uma Lusíadas ao Conformismo, mas ao ruminarmos a obra, desarmados de conceitos engendrados pelo senso comum, nos faz refletir sobre algumas questões: O que é crime? Quem é O bandido?

Vez ou outra escuta-se, quando o assunto é Direitos Humanos: DEFENDE BANDIDO? E SE FOSSE COM VOCÊ?

Essa indagação peca pela ingenuidade e tergiversa pela desumanidade, porque, se o Estado excede, ele o faz com aquela parcela de liberdade que demos a ele, ou seja, cada um de nós excede. Se o Estado pune de forma excludente, meu martelo também está lá, sentenciando. Se o Estado peca pela omissão, eu também estou lá dando de ombros para os desassistidos. O Estado é a exata medida do que eu e você permitimos que ele seja! Isso não é uma visão romântica-esquerdista sobre o crime, bandido, pena etc, é uma constatação. Os poderosos não querem o fim do Estado (apesar de o neoliberalismo pregar a intervenção mínima, essa intervenção é na economia. Na segurança, querem a intervenção máxima!!). Os poderosos se contentam com a cauda solta, porque ELES NÃO FAZEM E NUNCA FARÃO PARTE DELA.

Por que digo que essa é uma constatação? Vejamos alguns dados:

Com a terceira maior população carcerária do mundo (CNJ, 06/2014), o Brasil tem-se mostrado eficiente em matéria de soltar sua cauda, porque outro dado caminha na mesma proporção: segundo o Sétimo Anuário de Segurança Pública, realizado em 2013, os crimes em geral só têm aumentado. Homicídios (7,6%), Estupro (18%) em relação a 2012. Alguma conta não está batendo: Quanto mais se prende, mais o crime aumenta?

Onde está a função pedagógica da pena? Será, e pergunto, será, que o crime especificamente no Brasil, não é mais fruto da exclusão social que de mera índole? Será que o bandido, ao cometer um crime, sabe que não tem nada a perder, por que ele, quando preso, só será legalmente excluído de uma sociedade que já o excluiu enquanto cidadão? Como podemos falar em REssocializar àqueles que nem SOcializados foram? Ninguém aqui DEFENDE BANDIDO, sei que você ao ler isto pode nadar mais fundo em questões sociais. Precisamos discutir o que o Estado tem feito daquela fração de nós que cedemos a ele, e não encontrarmos culpados entre os integrantes da cauda, enquanto a lagartixa escala as paredes da omissão.

E é isso que tem acontecido: enquanto houver a cauda que se debate para distração dos poderosos, haverá assunto para o noticiário das nove. O Leviatã é mais nocivo do que pensamos.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Marcio Costa Ruzon Xavier

por Marcio Costa Ruzon Xavier

Graduando em Ciências Jurídicas pela UNIP e Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense

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