Parentalidade Socioafetiva e Multiparentalidade

Autoras: Ana Paula dos Santos Prado. Isabela Batista Soares. Regina Maria de Souza
Autoras: Ana Paula dos Santos Prado. Isabela Batista Soares. Regina Maria de Souza

Direito

24/10/2015

Parentalidade Socioafetiva e Multiparentalidade: demandas no âmbito familiar e desdobramentos no meio jurídico

1 Introdução

O instituto da família é um fenômeno social que esteve inserido no processo de constituição da história da humanidade, tendo sido verificado em praticamente todos os modelos sociais até então conhecidos. Constitui-se núcleo fundamental da sociedade, e origina-se a partir de fenômenos biológicos e sociais, a exemplo de aspectos religiosos, costumes e morais, estando, por isso, presente nos mais importantes momentos da vida dos seres humanos. É através dos laços criados no ambiente familiar que o indivíduo tem moldada a sua personalidade e aperfeiçoadas as suas aptidões, sofrendo forte influência de fatores sociais e psíquicos, em sobreposição às determinações impingida pelo próprio vínculo biológico.

O surgimento de novos arranjos familiares promoveu um redimensionamento do conceito de família, ampliando o âmbito de direitos e deveres dos integrantes das famílias, e trazendo consigo um aumento do choque de interesses. Tal contexto, ao expandir seus efeitos à esfera jurídica, passou a exigir do magistrado que atue sempre buscando o melhor interesse da criança, além de exigir coerência de atitudes dos pais, tanto dos biológicos, quanto dos socioafetivos. Sem dúvida, o ideal é que se consiga manter a harmonia familiar, procurando-se evitar, ao máximo, a ocorrência de danos aos menores que a estas situações são submetidos, concedendo-lhes a segurança que uma família pressupõe. (CASSETTARI, 2014).

A regra que durante muito tempo prevaleceu, no âmbito do Direito de Família, era a de que mater semper certa est, ou seja, acreditava-se que a mãe sempre era certa. Com a evolução da medicina e o avanço das técnicas da reprodução assistida essa assertiva deixou de ser considerada plena, de tal sorte que, agora, nem sempre quem gera e “dá a luz” a uma criança, será, necessariamente, a sua mãe biológica. Tais fatores contribuíram para a mitigação dessa teoria, e serviram para justificar a existência de ação declaratória de maternidade. (CASSETTARI, 2014).

Após o advento da Lei do Divórcio, em 1977, o casamento deixou de ser aquele que em se aceitava que apenas a morte poderia separar os nubentes. Ao longo dos anos, a sociedade começou a aceitar o divorciado como se solteiro fosse, em substituição à exclusão deste, que antes se promovia. Por conseguinte, hoje em dia, se o primeiro casamento for um verdadeiro fracasso, as pessoas podem divorciar-se e unir-se novamente em outro matrimônio, se assim desejarem, bem como divorciarem-se mais uma vez e se enlaçarem em seguida novamente, tudo isso enquanto sentirem necessidade de assim proceder. (CASSETTARI, 2014).

Diante disso, incorporou-se na sociedade brasileira a ideia de que as pessoas podem se casar mais de uma vez, levando, com elas, os filhos provenientes dos enlaces anteriores, os quais acabam sendo criados também pelo novo cônjuge dos pais. Como regra, embora a criança tenha permanecido com apenas um dos genitores, não perde os vínculos estabelecidos com o outro, o que sugere, ainda assim, existir uma espécie de convivência entre eles. (CASSETTARI, 2014).

Excepcionalmente, é claro que existem aqueles filhos que foram “abandonados” por um dos pais biológicos, caso em que é comum a ocorrência de adoção afetiva por parte do companheiro do genitor que detém a sua guarda, podendo surgir, entre eles, verdadeiros laços afetivos e, como consequência, origina-se uma parentalidade socioafetiva entre ambos. (CASSETTARI, 2014).

Vale ressaltar, todavia, que não necessariamente deve-se haver o mencionado “abandono”, para que seja verificada a ocorrência da parentalidade socioafetiva. Com efeito, esta pode despontar, por exemplo, quando uma pessoa estéril casa-se com outra que trouxe filhos do antigo relacionamento, e com estes desenvolve laços afetivos, surgidos em decorrência da afinidade e convivência diária que com eles mantêm. Entende-se, pois, que, neste caso, constatando-se a existência da socioafetividade, a paternidade ou maternidade poderá ser incluída no assento de nascimento, sem a retirada do nome de algum dos pais biológicos. Verifica-se, portanto, na hipótese, um explícito caso de multiparentalidade. (CASSETTARI, 2014).

 

2 Os aspectos e conceitos gerais acerca da parentalidade e multiparentalidade socioafetiva

Cabe destacar inicialmente que os direitos humanos são inerentes a todo indivíduo, reconhecidos em instrumentos jurídicos, a partir da natureza das coisas e que garantem, legalmente, uma identidade, livre-arbítrio e devem possibilitar a todas as pessoas uma vida sem sofrimento imposto emotivamente. Com isso, a defesa contra eventuais violações, além da resistência, pode ser efetuada como apoio em mecanismos judiciais. (PAGLIUCA, 2010).

Maluf (2012) entende a afetividade como uma relação que se estabelece fundada em cuidado e também em carinho, direcionados a uma pessoa que se fez íntima ou querida. Ou seja, funciona como um estado psíquico que propicia ao ser humano externar os seus sentimentos e emoções.

O embasamento do princípio da afetividade é de ordem constitucional, ou seja, trata-se de fato que extrapola o âmbito sociológico e psicológico. Lôbo (2003) declara que a constante necessidade de readequação de valores, conforme os ditames sociais, fez com que a sociedade moderna, aos poucos, fosse superando os preconceitos criados em torno da filiação, o que, inevitavelmente, exigiu respaldo do direito, em razão de ser interesse público fundamental. Quatro dos fundamentos essenciais que representam a intensa evolução da família nas últimas décadas do século XXI, relacionados ao princípio da afetividade, encontram-se positivados na Constituição Federal de 1988, conforme Lôbo (2003):

A) todos os filhos são iguais independentemente de sua origem (art.227, §6º); b) a adoção, como escolha efetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família, constitucionalmente protegida (art. 226, §4º); d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, caput). (LÔBO, 2003, p. 42).

 

Dessa forma, o legislador acabou por promover a igualdade entre os filhos, abolindo as situações discriminatórias vigentes no regime jurídico-constitucional anterior. Em consequência, os filhos, havidos ou não no interior do casamento, ou por adoção, passaram ser titulares dos mesmos direitos e qualificações. (PÓVOAS, 2012).

As incessantes alterações sociais promoveram inevitáveis alterações na concepção de família, inovando em não aceitar como tal apenas aquele núcleo familiar composto por pai, mãe e filhos biológicos. Em atendimento à evolução da sociedade, como já dito, o sistema jurídico-constitucional teve de se readequar, aceitando os novos modelos de família. (RODRIGUES, 2011).

Em uma primeira análise, segundo Rodrigues (2011), admitia-se que família seria a junção de pessoas que, mesmo podendo não ter nenhum vínculo de parentesco entre si, estão reunidas em virtude da existência de uma relação de dependência entre elas. Trata-se de acepção em sentido amplíssimo do termo, cumprindo asseverar que é difícil de se imaginar que alguma família possa ser desprovida totalmente de qualquer elo de parentesco.

Ainda no entendimento do autor, procedendo-se a uma segunda análise do conceito, tem-se que ela é constituída justamente por aqueles que apresentam qualquer das relações de parentesco, ou seja, estão vinculados entre si em razão de aspectos genéticos, civis ou afins. É, pois, definição ampla ou lata, que, por esta razão, é utilizada na elucidação de vínculos de parentesco, nos termos dos artigos 1.591 a 1.595, do Código Civil brasileiro.

Em uma terceira hipótese, aceita-se, limitadamente, que a família irrompe a partir da ligação entre pessoas por meio do casamento e pela filiação, admitindo-se, em atendimento à disposição constitucional, que a união estável firmada entre o homem e a mulher também constitui entidade familiar, sendo incumbido à lei o dever de facilitar a sua transformação em casamento. Ao conceber que a união estável também está protegida pelo Estado, inegável modificação operou-se no direito de família, haja vista que o casamento deixou de ser elemento obrigatório para a instituição da família. Sob a égide da Constituição Federal de 1988, estatuiu-se também a chamada família monoparental, qual seja aquela entidade familiar cuja composição se dá pela união de qualquer um dos pais e sua prole. Com efeito, a proteção estatal incide sobre qualquer um desses tipos familiares. (RODRIGUES, 2011).

Rodrigues (2011) assevera, ainda, que a expansão progressiva da noção que se tem sobre família, possui a finalidade de garantir, à pessoa humana, proteção e a dignidade. É nessa linha de pensamento que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem se pautando, o que provocou o aumento do campo de proteção conferido ao bem de família, a fim de abranger as pessoas solteiras, viúvas e separadas, dentre outras, além das alterações legislativas para que se obtenha dita proteção legal.

Cabe destacar que, promovendo a devida alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei nº 12.010/2009 foi inovadora, ao instituir a família extensa ou ampliada, que pode ser entendida como aquela que ultrapassa a simples ideia de união entre pais e filhos, ou, então, da junção de um casal, para incorporar, também, os parentes próximos, por quem o menor, em razão da convivência, alimenta vínculos de afinidade e afetividade. Não obstante a doutrina já estivesse empenhada em definir essa acepção de família, a existência de legislação específica, além de incutir maior segurança no ordenamento jurídico, facilita o entendimento de que os vínculos familiares transcendem a estrutura diminuta de família, qual seja aquela constituída pelos pais e seus correspondentes descendentes. (RODRIGUES, 2011).

Assim sendo, as transformações operadas no modelo tradicional dos vínculos familiares estão promovendo a reinvenção da ideia de família. O ideal de liberdade, aliado à evolução sociológica que traz inovações, fomentou nas pessoas o interesse de lutar pela concretização da realização pessoal, em todas as esferas da vida privada. (CARVALHO, 2012).

A demonstração efetiva da relação de afeto tem se apresentado como sendo de primordial relevância para o deslinde de várias demandas litigiosas, uma vez que, partindo-se de uma análise jurídica, o afeto pode ser entendido como uma legítima ligação de carinho e cuidado havida entre pais e filhos, ou entre pessoas de sexos opostos, como ocorre, por exemplo, na união estável homoafetiva, em que a entidade familiar é reconhecida em decorrência do liame afetivo estabelecido entre os parceiros. (PÓVOAS, 2012).

Para Póvoas (2012), a afetividade tornou-se fundamento, também, para as relações filiais, de tal forma que, ainda que inexista elo biológico, pode ser reconhecido como filho aquele que é tratado com afeto pelo pai/mãe, consoante o seguinte posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a maternidade socioafetiva deve ser reconhecida, mesmo no caso em que a mãe tenha registrado filha de outra pessoa como sua. “Não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade daquele que, um dia, declarou perante a sociedade ser mãe da criança valendo-se da verdade socialmente construída com base no afeto”, afirmou em seu voto a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso [...] (CASSETTARI, 2014, p. 85-86).

Seguindo-se a linha de entendimento do STJ, que fora exposta acima, poderá haver violação da dignidade do filho afim, caso se estabeleça alguma demanda com vistas a excluir o nome do genitor afetivo do seu registro de nascimento. Por conseguinte, tem-se por pai afetivo aquele que cuidou do filho com extremo cuidado e dedicação, zelando por sua educação e sustento, mesmo sem manter com ele nenhum elo consanguíneo. O acolhimento de ação de investigação de paternidade/maternidade, no caso, conflitará diretamente com a verdade social que validamente foi construída, fundamentada no afeto. (PÓVOAS, 2012).

Situação diferente se verifica, contudo, quando, por exemplo, a namorada engravida do companheiro e dele omite este fato, assumindo sozinha a responsabilidade pelo filho. Mais tarde, une-se matrimonialmente a outrem, e este adota, por meio da adoção unilateral, o filho daquele primeiro relacionamento de sua esposa. Tempos depois, vindo o pai biológico ter ciência de que possui um filho, não parece justo que ele clame em seu favor princípio da dignidade da pessoa humana e requeira o reconhecimento da condição de pai da referida criança ou adolescente? É evidente que sim. (PÓVOAS, 2012).

Sobre esse caso, Póvoas (2012) discorre que é patente a inexistência de relacionamento afetivo entre o pai e o filho biológico. Todavia, como ao genitor foi retirada a oportunidade de construir uma relação afetiva com o seu rebento, em razão de a mãe ter escondido dele esse fato, infere-se que a afeição, indubitavelmente, poderá ser instituída ulteriormente.

Há que se considerar ainda, que o vínculo afetivo que surge entre padrastos e madrastas e seus enteados é perfeitamente justificável, visto que, na atualidade, cada vez mais aumenta o número de casais divorciados que acabam carregando seus filhos para as chamadas famílias reconstituídas. Em razão disso, muitos filhos sofrem abandono afetivo de seus genitores biológicos, de tal sorte que acabam sendo criados moral e afetivamente pelos novos companheiros de seu pai/mãe guardião, criando-se, ainda, entre eles, uma espécie de parentalidade, por conta dos fortes laços socioafetivos que os une. (CASSETTARI, 2014).

 Monteiro e Silva (2009) aduz que um bom exemplo de socioafetividade é aquele em que, mesmo se desfazendo o relacionamento amoroso que propiciou a instauração do elo afetivo com o enteado, permanece o sentimento filial que o padrasto/madrasta alimenta em relação a ele, porquanto foi justamente o novo companheiro quem criou e educou a criança ou adolescente em questão.

Para que ocorra a formação da parentalidade entre padrastos/madrastas e enteados, entretanto, de acordo com Cassettari (2014), não é requisito essencial o abandono afetivo anterior. É o que ocorre, por exemplo, quando o futuro cônjuge do genitor guardião não pode ter filhos e, por causa da convivência diária e da afinidade, surgem laços afetivos entre eles. Na hipótese trazida, é possível também o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, sendo exigido, contudo, que seja acrescentada a paternidade ou maternidade no registro de nascimento, sem a exclusão do nome do pai ou mãe biológico do assento, instituindo-se, pois, mais um caso de multiparentalidade.

Indispensável salientar que o reconhecimento da paternidade afetiva não configura uma “concessão” do direito do laço de afeto, mas uma verdadeira relação jurídica que tem por fundamento o vínculo afetivo, único, em muitos casos, capaz de permitir à criança e ao adolescente a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana e daqueles que lhes são próprios, a saber: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, assegurando-lhes, enfim, o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (BARBOZA, 1999, p. 140).

 

Consoante já fora amplamente discutido, a constante separação de casais propagou uma nova ideia de família, sem, contudo, alterar a essência dessa instituição milenar. Assim, passou-se, progressivamente, a atribuir cada vez mais importância aos pais socioafetivos. Um dos grandes problemas observados é que, muitas vezes, o pai biológico opõe-se à criação de sua prole pelo pai socioafetivo, o que requer a intervenção estatal, através do Poder Judiciário. Para a resolução do caso, necessária será a realização de um minucioso estudo multidisciplinar. (D’ANGELO, S. D’ANGELO, E. 2012).

O certo é que o status de pai afetivo atingiu a tamanha relevância no contexto sócio-politico-jurídico do Brasil, que o entendimento majoritário emanado das decisões judiciais, tanto nas de primeiro grau quanto nas de segundo, vem mostrando-se contrário ao acolhimento dos pleitos de desconstituição das relações filiais fundadas basicamente em vínculos socioafetivos. Na maioria das vezes, os pais socioafetivos ingressam na vida dos filhos de seus cônjuges ou companheiros sem serem consultados sobre o seu interesse em zelar pelos cuidados daqueles. Com isso, via de regras, a afetividade inicialmente exigida é aquela havida reciprocamente entre o casal recém-unido, para, posteriormente, instituir-se o contato com os descendentes uns dos outros, ou de ambos, assumindo amplas responsabilidades em relação a estes. (D’ANGELO, S. D’ANGELO, E. 2012).

No que diz respeito à impugnação do reconhecimento filial, intentado pelo filho que antes era menor de idade, e agora maior, D’Angelo, S. D’Angelo, E. (2012) defende que somente o caso concreto poderá determinar a procedência ou improcedência do pedido, visto que, caso seja verificada a insurgência de interesses espúrios por detrás do pleito, sobrepujará a paternidade socioafetiva. 

A demonstração de afeto é, pois, responsável pela fortificação dos relacionamentos, podendo ser verificadas, diversas vezes, na prática de atos singelos como é um beijo na testa, um abraço apertado ou uma conversa amigável, dentre tantos outros que revelam demonstração de carinho entre pessoas que se querem bem. (D’ANGELO, S.


3 As questões afetivas e a realidade da família reconstituída

A princípio, vale ressaltar que os conceitos de família e parentesco, apresentam muitas diferenças entre si. É compreensão do senso comum que a percepção de família dá a entender que se trata de um grupo socialmente constituído em que pessoas se reúnem, relacionando-se entre si e criando vínculos de convivência. Constitui-se, pois, pela existência de laços conjugais, ou de união estável, com o entrelaçamento entre pais e filhos. Em contrapartida, o parentesco pode ser tido como o vínculo jurídico que reúne as pessoas, podendo ser decorrente da consanguinidade, da afinidade ou da adoção. Sendo assim, o parentesco existirá ainda que não estejam os indivíduos em um mesmo núcleo familiar. É o que ocorre, por exemplo, com reconhecimento de filhos extraconjugais, em que o parentesco é incontestável, porém a ideia de família pode não estar presente. (CANOVA, 2011).

Hodiernamente, entretanto, vem sofrendo mitigação o distanciamento sustentado em torno desses termos, percebendo-se que, progressivamente, o conceito de parentesco começou a englobar a noção de família. Com efeito, o entendimento que se está desenvolvendo é o de que a família seria um conjunto de indivíduos interligados pela filiação (biológica ou afetiva) ou pelo enlace afetivo (legal ou informal), constituindo laços de afetividade duradouros e intensos, que são reconhecidos em função de direitos e deveres recíprocos, originados, precipuamente, pela presença de crianças nascidas ou criadas por eles. Assim, relacionamentos antes ignorados ou menosprezados, passaram, então, a ter significativo destaque, como as relações entre pais e filhos adotivos, entre parceiros homossexuais, entre padrastos e enteados. (CANOVA, 2011).

É inegável, na presente realidade, que família homoafetiva também possui caráter de natureza familiar, haja vista que suas relações de afetividades não se restringem mais ao cunho patrimonial, de tal sorte que conflitos decorrentes dessas relações poderão ser solucionados nas Varas de Família, já que estão fundamentados no direito de família constitucional. (D’ANGELO, S. D’ANGELO, E. 2012).

Por famílias recompostas podem ser entendidas aquelas em que um dos cônjuges ou companheiros, ou os dois, trazem consigo filhos oriundos de um relacionamento anterior. A doutrina reconhece como característica desta modalidade de família o estabelecimento de sólido relacionamento socioafetivo entre seus membros, haja vista que a construção do liame afetivo é pautada na complementaridade de papéis parentais que são exercidos pelos pais afetivos em detrimento do genitor biológico, cujo companheiro/cônjuge se separou. Canova (2011) continua asseverando que, em razão de o padrasto/madrasta desempenhar, diariamente, no ambiente familiar, funções típicas da parentalidade, o filho afetivo passa a enxergá-lo na condição de pai/mãe. Dias (2010) entende que também haverá filiação com o novo cônjuge ou companheiro de um dos pais, quando for constatada a existência da posse do estado de filho com relação a eles, não sendo excluído, contudo, o vínculo com o genitor.

É inevitável que o padrasto/madrasta assuma efetivamente funções inerentes à parentalidade, surgindo daí incertezas acerca de possíveis direitos e deveres emergentes. Nesse sentido:

[...] Pais genéticos e afetivos devem assumir, solidariamente, os mesmos direitos e deveres, inclusive a responsabilidade civil, sufragando, assim, repercussão jurídica às relações de parentesco biológico e sociafetiva, sem sobreposições, caminhando, inexoravelmente, ao encontro do absoluto interesse da Criança. [...] a posse de estado de filho, “interpretada de acordo com as diretrizes constitucionais, é prova bastante para afins de declaração da filiação, gerando parentesco “outra origem”, segundo o critério da sociafetividade”, cujos efeitos alcançam todos os parentes do pai sociafetivo. (CANOVA, 2011, p.123).

O modo mais expressivo de reconhecimento de um filho, sem dúvida, é quando o pai o trata como tal, demonstrando publicamente todo o seu carinho e desejo de cuidado para com o mesmo. O surgimento de novos laços de parentesco é, pois, característica fundamental das famílias reconstituídas, visto que há nelas a multiplicação das pessoas que exercem os papéis de pai, mãe, irmãos, tios e primos. Ademais, esses laços construídos são, também, um dos pilares da família reconstituída. (CANOVA, 2011).

Vale ressaltar, de acordo com Canova (2011), que essa estrutura familiar não surge em razão da simples recomposição afetiva, podendo, sim, se constituir a partir do exercício das responsabilidades parentais, consistentes em educar, assistir e criar os filhos, no decorrer da convivência familiar. É possível, então, considerar que houve a formação de um parentesco filial no relacionamento construído na família recomposta, que se erigiu a partir de circunstâncias de fato e socioafetivas, estruturadas entre o novo parceiro do genitor e o filho afim, levando-se em consideração os seguintes aspectos:

A) Carinho, o desvelo, ambiente tranquilo que possa propiciar à criança desenvolvimento sadio físico e moral, com segurança e equilíbrio emocional dos pais; b) a habitualidade de dar amor, social e psicológica, a busca da saúde mental ou a preservação da sua estrutura emocional; d) o tratamento respeitoso e digno; e) a idade, circunstâncias em que vive a criança o seu bem-estar e concepções educativas dos pais; f) examinar o grau de conflito entre as partes, promovendo diálogo entre os pais biológicos e afetivos; g) saúde, sentimentos do filho, necessidade de estabilidade, disponibilidade educativa e afetiva, equilíbrio psicológico, moralidade da vida, condições materiais, presença de avós, novo casamento ou união estável. (WELTER, 2004, p. 124-125).



Continua o autor, dizendo que apenas o “ser-em-família” pode assegurar que todos os direitos e deveres inerentes à condição humana tridimensional sejam obedecidos, havendo convivência integral e absoluta em família. Compete aos pais, genéticos e afetivos, solidariamente, o cumprimento dos mesmos deveres, bem como fazem jus aos mesmos direitos, de tal sorte que todos na família possuem poderes e deveres iguais, em consonância com o que dita o princípio republicano das relações democráticas.

Quando se trata de família, deve-se garantir, com prioridade absoluta, que seja sempre atendido o melhor interesse da criança e do adolescente, em razão de se encontrarem na posição de pessoas em desenvolvimento. Na família recomposta, a base estrutural dos direitos, cujos titulares são as crianças e os adolescentes, se consolida a partir do reconhecimento jurídico dos novos laços formados pelas relações entre pais e filhos afins, associado à conservação do relacionamento com os genitores biológicos após o rompimento conjugal. (CANOVA, 2011).

Havendo conflito entre as parentalidades biológica e afetiva, deve-se prezar, constantemente, pela prevalência da verdade social, da qual pode emergir a necessidade de se reconhecer juridicamente as duas filiações, na medida em que a Carta Magna e o ECA estatuem que é preciso velar pelo superior interesse da criança e do adolescente. Esse tipo de reconhecimento jurídico, que vem sendo chamado pela moderna doutrina brasileira de multiparentalidade, é tido como mais um mecanismo de efetivação dos direitos das crianças e adolescentes que se encontram em meio a famílias recompostas afetivamente. (CANOVA, 2011).

Tradicionalmente, a família biparental somente admitia o reconhecimento de um filho de outrem naqueles casos em que houvesse ausência, constatada judicialmente, do genitor biológico, situação que passou a ser verificada a partir do momento em que aceitou que a socioafetividade é fato gerador de (re)estruturação familiar e social, culminando com a formação de novos vínculos de parentesco. Em meio a esse contexto, surgiu a ideia de família reconstituída, que, contrapondo-se frontalmente com a teoria tradicional, trouxe importantes modificações sociológicas e, por isso, roga por atendimento diferenciado do judiciário, que deve adequar-se às suas especificidades e dar a tutela jurisdicional condizente. (CANOVA, 2011). 4 Multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro: filiação biológica e a filiação sociafetiva

Discutiu-se anteriormente que a invocação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade, com o intuito de se assegurar a manutenção ou o estabelecimento dos vínculos parentais, é garantida tanto aos pais biológicos quanto aos próprios filhos. (PÓVOAS, 2012).

No entendimento de Póvoas (2012), mais do que um mero direito, a necessidade de coexistência dos vínculos parentais, biológicos e socioafetivos, é dever constitucional, que deve ser atendido para serem preservados os direitos fundamentais dos envolvidos na relação. Tendo sido abarcados por proteção da Constituição Federal, a preservação da dignidade da pessoa humana e dos laços de afetividade impede que uma parentalidade se sobreponha à outra, realizando-se valoração do afeto.

O posicionamento aceito atualmente, em relação à verdadeira paternidade, está calcado na ideia da não exclusão do elo biológico da relação paterno-filial, e sim no reconhecimento da existência de uma nova figura que exerce papel primordial de pai. Surge, então, a partir da parentalidade socioafetiva, o denominado pai social, que é aquele que desempenha função similar a de um genitor, estabelecendo, contudo, relações paterno-filiais fundadas precipuamente no afeto. Constrói-se verdadeiro relacionamento com os filhos, ao dedicar-lhes, constantemente, amor e carinho, tal como, em regra, costuma fazer o pai biológico, que, na essência, também é afetivo. (PÓVOAS, 2012).

Verificando-se a existência simultânea de filiação socioafetiva e filiação biológica quanto a um mesmo filho, Póvoas (2012) aduz que a questão acerca do registro deste poderia ser facilmente resolvida com a incorporação dos nomes dos pais (ou mães) e de seus respectivos ascendentes no registro de nascimento. No entendimento do autor, essa seria, sem dúvida, a solução mais adequada para o caso, muito embora possa causar estranhamento em razão de seu caráter inovador.

Um dos primeiros efeitos gerados pelo reconhecimento da multiparentalidade é, indubitavelmente, a extensão do vínculo de parentesco a todos os demais parentes dos pais/mães. Assim, como bem pondera Cassettari (2014), ao ganhar um pai ou mãe socioafetivo, há a possibilidade desse filho adquirir também irmãos, bem como avós, tios, primos e sobrinhos socioafetivos. De maneira semelhante, esses parentes, em linha reta ou colaterais, bem como os pais afetivos, receberão os descendentes do filho socioafetivo como se parentes fossem, ou seja, serão tidos como netos/bisnetos, por exemplo.

O diploma civilista brasileiro, em seu artigo 1.593, dispõe que o parentesco poderá ser natural ou civil, conforme seja resultante de consanguinidade ou outra origem. Gonçalves (2012) bem pontuou que este artigo está servindo de fundamento legal para que a doutrina e a jurisprudência reconheçam a existência do parentesco socioafetivo. É que, fazendo-se uma interpretação mais ampla, vê-se que a lei é clara em permitir que haja parentesco de outra origem que não simples e puramente somente aquele advindo de laços de sangue.

Nessa perspectiva Cassettari (2014) afirma que, ao conceder essa permissão, o art. 1.593 autoriza o reconhecimento da parentalidade socioafetiva como uma das modalidades de parentesco, tal como é a biológica. O enunciado 256, do Conselho da Justiça Federal (CJF), corrobora com o entendimento de que o parentesco biológico não é o único admitido no ordenamento jurídico brasileiro, ao dispor que: “Enunciado 256 do CFJ – Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil” (CASSETTARI, 2014, p. 14). Logo, no sentido jurídico, o parentesco compreende todas as relações firmadas entre as pessoas, sejam advindas, ou não, da consanguinidade. (SILVA, 2004 apud CASSETTARI, 2014).

Ato contínuo, pontue-se que a filiação afetiva pode, inclusive, ser verificada naqueles casos em que não se identifica a existência de nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), hipóteses em que o filho é conhecido por ser filho de criação. Há, com efeito, a construção de uma família, composta pelos pais e o filho, na qual, por escolha própria, aqueles destinam cuidados a este, dedicando-lhe todo amor e carinho, que são os fundamentos da família alicerçada na afetividade. O único vínculo probatório desta modalidade de família é, indubitavelmente, o afeto que liga seus integrantes. (WELTER, 2004).

A verdade socioafetiva pode até nascer de indícios, mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento. Revela o pai que ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no ambiente social; o pai que ao dar de comer expõe o foro íntimo da paternidade, proclamada visceralmente em todos os momentos, inclusive naqueles em que toma conta do boletim e da lição de casa. É o pai de emoções e sentimentos, e é filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos. Outro pai, nova família. (FACHIN, 1996, p. 59).



No que tange à obrigação alimentar, o reconhecimento da multiparentalidade gera os mesmos efeitos que a estabelecida para os casos de biparentalidade, nos quais é observado o disposto no artigo 1.696, do Código Civil, que estabelece que é recíproco, entre pais e filhos, o direito à prestação de alimentos, bem como é extensivo a todos os ascendentes, recaindo, primeiramente, nos de grau mais próximo, sem prejuízo da substituição de uns, em falta de outros. Com isso, percebe-se que na multiparentalidade há obrigação alimentar para ambos os pais, ou seja, tanto para o biológico quanto para o afetivo. (PÓVOAS, 2012).

Sempre que a controvérsia for a fixação da guarda do menor, o entendimento é de que deverá ser observado o princípio do melhor interesse da criança, cujos parâmetros de melhor interesse somente serão identificados de acordo com cada caso concreto. Em verdade, compreende-se que os Tribunais deverão levar em consideração a preferência da criança, quando esta já for madura o suficiente para escolher.

É certo que, para a definição de guarda, necessária se faz a realização de estudos, feitos por equipe multidisciplinar, com vistas a se apurar com quem a criança deverá permanecer. Como os principais critérios analisados são os da afinidade e afetividade, o certo é que os pais afetivos são beneficiados na definição da guarda daquelas crianças que possuem mais de um pai ou mãe. (PÓVOAS, 2012).

No âmbito jurídico, a multiparentalidade funda-se em alguns parâmetros legais, de tal sorte que não possui nenhuma vedação ou impedimento que impossibilite o seu reconhecimento. Por estar albergada em na legislação brasileira, é admitida sua aplicação por analogia, em alguns casos. (PÓVOAS, 2012). 5 Análise de jurisprudências e os reflexos jurídicos referentes a multiparentalidade

A possibilidade de reconhecimento da dupla maternidade ou multiparentalidade, conforme pontualmente destaca Gonçalves (2015), está sendo amplamente acolhida pela doutrina brasileira e pelos tribunais. Apesar de ser recente, alguns juízes já prolataram decisões admitindo a coexistência de ambos os vínculos (socioafetivo e biológico), e, por conseguinte, ratificaram a possibilidade de se ter dois pais ou mães no registro civil de nascimento. Em certo caso, por exemplo, preservou-se os dois vínculos maternos, mantidos em relação a um mesmo filho, deferindo-se o pedido da madrasta, que agiu como mãe durante longos anos de criação do filho de seu companheiro, reconhecendo-se a dupla maternidade:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade – Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliada ao afeto e consideração mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. (TJSP, Ap. 0006422-26.2011.8.26.0286-Itu,1ª Câm. Dir. Priv., rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, j. 14-08-2012). (GONÇALVES, 2015, p. 515).

É possível se encontrar no julgado acima os elementos elencados na doutrina de Cassettari (2014) como sendo requisitos essenciais para caracterizar a parentalidade socioafetiva, quais sejam os laços de afetividade, bem como a existência de tempo de convivência apto a instituir um sólido vínculo afetivo. Para alguns estudiosos do tema, a reciprocidade no afeto seria um quarto requisito indispensável. O mencionado autor, entretanto, é adepto da ideia de que, se ela fosse exigível, conflituoso seria ao ter que se definir se ela deverá ser presente ou pode ser passado, o que, dependendo do critério utilizado, feriria os preceitos de irretratabilidade e a irrenunciabilidade da filiação, permitindo-se ao filho, ou ao pai, a possibilidade de dispor de um direito que, por sua natureza, é indisponível.

Urge destacar, também, que, diferentemente do caso acima, em que a dupla maternidade se deu estando a mãe biológica já falecida, os tribunais já conceberam a possibilidade de se reconhecer a parentalidade após a morte do referido pai ou mãe afetivo. Sobre isso, Cassettari (2014) dispõe que, quando o pretenso pai morre no curso da demanda para reconhecimento de parentalidade, ou, ainda que o processo não tenha se iniciado, já foram esposadas decisões em que se concedeu a adoção póstuma, em reconhecimento a uma filiação socioafetiva. Dessa forma, prestigiando-se os elos afetivos construídos após longos anos de convivência, há entendimento de que se é possível o reconhecimento post mortem da parentalidade socioafetiva, desde que haja inequívoca manifestação de vontade, ou fortes comprovações de que o pai tratava o filho afetivo como se seu legitimamente fosse.

Situação complicada surge, entretanto, quando a ação intentada pelo filho visa desconstituir vínculo afetivo, ou acrescentar o parentesco biológico, com o intuito de unicamente se valer da herança deixada pelo pai biológico. Via de regras, para Cassettari (2014), o entendimento que se deve sobrepor, é o de não acolhimento do pleito, porquanto, a verdade social é que se sobressai. Ato contínuo, tal situação deve ser assim considerada, sobretudo, se o solicitado reconhecimento se der após a morte do dito pai biológico, haja vista que o filho jamais poderá estabelecer vínculos de afinidade e afetividade com ele.

Um caso emblemático trazido pelo autor foi o denominado pelas mídias de Caso H. Stern, no qual houve conflito de parentalidade. H. Stern, fundador da rede de joalherias de mesmo nome, era detentor de uma grande fortuna, e eis que, após a sua morte em 2007, dois homens descobriram que a mãe havia omitido deles o fato de eram filhos biológicos do de cujus, motivo pelo qual ingressaram na justiça para obter o reconhecimento da paternidade biológica, visando o alcance do direito à herança do empresário. Os outros herdeiros, contudo, manifestaram-se contrários aos demandantes, invocando em favor de si a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica, mormente quando o intuito é se evitar o processamento de ações de cunho unicamente patrimonial. (CASSETTARI, 2014).

Diante de um caso como esse, evidentemente, o magistrado deve tomar mais cuidado antes de proclamar a parentalidade socioafetiva. Não é que seja errado um filho receber duas heranças se, de fato, ele conviveu com a dupla paternidade durante toda sua vida. O que se repele, pois, é a admissão meramente para gerar efeitos patrimoniais, nada se tendo contra a procedência de ação de investigação de paternidade, que, diga-se, é imprescritível e garantida aos filhos, diferentemente daquela ingressada para se adquirir herança, conforme prevê a Súmula nº 149 do Supremo Tribunal Federal. (CASSETTARI, 2014).

Os aspectos relativos à sucessão, em regra, possuem a mesma abrangência que o vínculo de parentesco prescreve, de tal sorte que todos os pais são herdeiros do filho, bem assim, o filho é herdeiro de todos os pais, além de se estender aos ascendentes e descendentes, e aos parentes colaterais de quarto grau. Quanto às sucessões dos pais, no entanto, não há interligação entre si, exceto para aqueles que são efetivamente cônjuges ou companheiros. (KIRCH; COPATTI, 2013).

Logo, nota-se que, em decorrência da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, consagraram-se todos os direitos sucessórios na parentalidade socioafetiva, promovendo-se à equiparação dos parentes socioafetivos e biológicos no que diz respeito a esses direitos. Entretanto, há diversas controvérsias doutrinárias sobre este assunto, motivo pelo qual se conclui que deverá ser analisado o interesse havido por detrás do reconhecimento, haja vista que, conforme já exposto anteriormente, interesses espúrios não podem levar a efeito a exclusão de uma parentalidade em favorecimento de outra.

Consigne-se, por outro lado, que não é impossível a desconstituição da filiação, desde que sejam verificados: erro ou falsidade no registro. Cassettarri (2014) trouxe um julgado em que o egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admitiu ser possível, pelo menos em tese, a anulação do registro civil, conforme se segue:



Apelação cível. Ação negatória de paternidade. Alegação de vício de consentimento no registro. Relação socioafetiva abalada. Sentença desconstituída para oportunizar instrução do feito. Admite-se, em tese, a anulação do registro civil, comprovado vício de consentimento no ato jurídico, assim como a inexistência de relação socioafetiva entre o pai registral e o menor. Diante de tal alegação, como causa de pedir, o processamento da ação, com regular instrução processual, se impõe a fim de oportunizar a produção das provas sobre o direito alegado. Apelação provida. Sentença desconstituída (TJRS; AC 653729-33.2010.8.21.7000; Santo Cristo; Sétima Câmara Cível; Rel. Des. André Luiz PlanellaVillarinho; j. 29.6.2011; DJERS 6.7.2011). (CASSETTARI, 2014, p. 141).

De acordo com Kirch e Copatti (2013), a multiparentalidade é uma modalidade de reconhecimento, no âmbito jurídico, dos acontecimentos que se desenvolvem na realidade fática. Busca reafirmar direitos assegurados às crianças e adolescentes, dentre os quais se encontra o de convivência familiar, exercido tanto pela paternidade biológica quanto pela socioafetiva, concomitantemente. Nesse sentido, o vínculo não se desfaz quando ausente o vício de consentimento, com vistas a não se ferir referido direito:



Direito civil. Família. Recurso Especial. Ação de anulação de registro de nascimento. Ausência de vício de consentimento. Maternidade socioafetiva. Situação consolidada. Preponderância da preservação da estabilidade familiar. (REsp 1.000.356/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; Terceira Turma; j. 25.5.2010). (CASSETTARI, 2014, p. 83).

Por fim, diga-se que o ideal, por óbvio, é que o parentesco registral coincida com o genético e socioafetivo. Não sendo isso possível, ou seja, havendo divergência entre o que consta no registro e o que de fato se vê, como o caso do filho registrado no nome de alguém (seja seu pai biológico, ou não) e com este não mantém laços de afetividade, tendo sido criado por outrem, indubitavelmente deverá o judiciário intervir para que sejam regularizados todos os pontos jurídicos daí decorrentes, compreendendo-se que a afetividade predomina, via de regras, sobre o parentesco biológico, bem como estes, afetivo e biológico, prevalecem sobre o registral, que deve ser corrigido, de modo que não se produzam efeitos jurídicos equivocados. Por conseguinte, no momento em que o magistrado constata e reconhece a existência da socioafetividade, seja pela ação própria (declaratória) ou pela via incidental, incumbe-lhe determinar a expedição de um mandado da averbação endereçado ao registro civil, para que conste o nome do novo pai no assento de nascimento. (CASSETTARI, 2014). 6 Considerações finais

Cabe destacar que, quando se trata de Direito de Família, a forte carga emocional que nele se verifica, faz com esse ramo do Direito seja mais subjetivo do que os demais, de tal sorte que passa a requerer dos operadores do direito maior cautela, exigindo, também, constante reavaliação dos conceitos e preconceitos atinentes à área. (PÓVOAS, 2012).

O fato de haver possibilidade de existir duas parentalidades, uma biológica e outra afetiva, sem que uma tenha sobreposição em relação à outra, faz com que surjam, por vezes, situações confrontantes entre si. (PÓVOAS, 2012).

Sobre o conceito de parentalidade socioafetiva, em síntese, expôs-se que o afeto é um de seus componentes essenciais, sendo o reconhecimento de um direito tanto do filho quanto dos pais, em atendimento aos preceitos fundamentais, que são constitucionalmente garantidos e que se aplicam também às relações privadas, com destaque ao princípio da isonomia. (CASSETTARI, 2014).

Além do laço de afetividade, é requisito da parentalidade socioafetiva a existência de convivência familiar harmoniosa e voluntária, consolidada a partir da existência de um afeto mútuo, sendo vedada, entretanto, a possibilidade de se dispor da condição parental, após ter esta se constituído, em razão de seu caráter irrevogável e irretratável. (CASSETTARI, 2014).

Estabelecendo-se as diferenciações entre as concepções de família e de parentesco, viu-se que este cada vez mais vem incorporando a ideia daquela e, à vista disso, discutiu-se que a afetividade pode gerar a parentalidade a partir de diversas ocorrências, como: a constatação da posse de estado de filho; as adoções, tanto a de fato quanto a “à brasileira”, em que o pai assume e registra o filho que não é seu; sem se esquecer, ainda, da possibilidade de “adoção” dos filhos havidos fora do casamento, daqueles decorrentes da reprodução assistida heteróloga, e do relacionamento de padrastioe madrastio. (CASSETTARI, 2014).

Não se pode esquecer, também, que a socioafetividade se faz presente nos relacionamentos homoafetivos, deixando-se de se proceder à adoção unilateral dos filhos do companheiro, quando, em verdade, referida prole é de fato criada conjuntamente pelos parceiros, caracterizando-se, por consequência, uma das possibilidades de multiparentalidade, através da admissão da dupla maternidade/paternidade. (CASSETTARI, 2014).

No que diz respeito às questões processuais do reconhecimento, já foi dito que, por ser direito de mão-dupla, a legitimidade ativa para demandá-lo é tanto do pai/mãe, quanto do filho, devendo-se somar a isso que, um terceiro, somente poderá requerê-lo se o titular do direito tiver falecido e não o tiver solicitado quando ainda em vida, sendo necessário constituir prova de que há a possibilidade de se estabelecer a convivência entre o requerente do vínculo de parentesco e a parte requerida, além ficar demonstrado que não se tem em vista apenas a obtenção de proveitos patrimoniais. É o caso, por exemplo, da mãe que, em nome do filho menor, pleiteia o reconhecimento do pai deste como filho de outrem, a fim de que ele tenha legalmente reconhecida sua origem, sem prejuízo de que ele crie relações com os seus avós e demais parentes paternos. (CASSETTARI, 2014).

Além disso, pontou-se que a maternidade socioafetiva também é recorrente nos dias atuais, razão pela qual utiliza-se o termo parentalidade socioafetiva não a paternidade. A invocação do termo parentalidade serve como forma de defesa, em ações que buscam a invalidação do assento de nascimento, ou como mecanismo de ataque, quando propostas ações declaratórias ou investigatórias. Se, porém, o reconhecimento não se der por meio do ingresso de ação própria, é admitido que ele ocorra pela via incidental, tornando-se consequência de outra demanda judicial cível (de família, ou não), ou, até mesmo, trabalhista ou eleitoral. Em qualquer desses casos, é indispensável que seja averbado no registro de nascimento. (CASSETTARI, 2014).

Não constando no assento de nascença o nome de nenhum pai, e tendo sido o filho criado afetivamente por outrem, voluntariamente poderá este reconhecer a parentalidade socioafetiva daquele, mediante comparecimento no oficial do registro civil, eventualidade que se constitui adoção de fato, porém não se confunde com a adoção à brasileira, que se constitui em crime. (CASSETTARI, 2014).

Não obstante seja tema recente no ordenamento jurídico, a sua recepção pelos tribunais estaduais e superiores (STJ) está se ampliando continuamente, prolatando-se, cada vez mais, decisões favoráveis à parentalidade socioafetiva. (CASSETTARI, 2014).

Dentre os efeitos identificados nessa modalidade de parentalidade, fundada no afeto, a irradiação do vínculo de parentesco para abranger todos os familiares (avós, irmãos e tios), é um dos mais importantes, de tal maneira que a dita extensão também se propaga para outros direitos, como o de alimentos, o de guarda e visita dos filhos menores, bem assim, possibilidade do exercício do poder familiar e de recebimento de benefícios previdenciários. No que tange à obrigação alimentar, tem-se que ambos os pais (o biológico e o afetivo) podem ser responsabilizados, havendo possibilidade, ainda, de ser a obrigação repartida solidariamente entre eles, respeitando-se o binômio necessidade e possibilidade financeira. Quanto aos demais efeitos da prestação de alimentos, observa-se o que se tem previsto para os casos de biparentalidade. (CASSETTARI, 2014).

É certo que inúmeras complicações jurídicas poderão advir da admissão da multiparentalidade, a qual se consubstancia na dupla maternidade/paternidade, no ordenamento. Todavia, há alguns mecanismos judiciais para a resolução de tais problemas, bem assim, deverá o legislador proceder à modificação de dispositivos legislativos, com vistas a albergar definitivamente a possibilidade de múltipla filiação nos dispositivos legais. Indispensável, pois, é adaptação do direito a essa realidade social, porquanto é recorrente sua verificação nos ambientes familistas atuais. (CASSETTARI, 2014).

Posto isso, diante do panorama social verificado contemporaneamente, em que, progressivamente estão aumentando os casos de recomposição familiar, é impossível abster-se do reconhecimento de que a multiparentalidade será o melhor mecanismo jurídico para a proteção dos interesses de todos os envolvidos na relação familiar, assegurando-lhes a concretização dos princípios constitucionais, mormente o da dignidade da pessoa humana e da afetividade, bem assim, observando-se o melhor interesse da criança. (CASSETTARI, 2014).



7 Referências

BARBOSA, H. H. Novas relações de filiação e paternidade. In: PEREIRA, R. C. (Coord). Repensando o direito de família. I CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Anais...Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. LEI N. 10.406, DE JANEIRO DE 2002. In: Vade Mecum Saraiva. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. LEI N. 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. In: Vade Mecum Saraiva. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

CANOVA, J. L. Em nome dos pais: a multiparentalidade nas famílias recompostas como efeito da parentalidade socioafetiva. 2011. 185 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público e Evolução Social) – Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2011.



CARVALHO, D. B. S. Direito de família e direitos humanos. São Paulo: Leme, 2012.

CASSETTARI, C. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014.

D’ ANGELO, S. D’ANGELO, E. Direito de família. 2. ed. Leme: Anhanguera, 2012.

DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FACHIN, L. E. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

GONÇALVES, R. G. Direito civil brasileiro: direito de família. v. 12. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, C. R; LENZA, P. (Coord.). Direito civil esquematizado. v. 3. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

KIRCH, A. T.; COPATTI, L. C. O reconhecimento da multiparentalidade e seus efeitos jurídicos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 112, mai. 2013. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12754&revista_caderno=14>. Acesso em: 18 fev. 2015.

LÔBO, P. L. N. Código civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003.

MALUF, A. C. R. F. D. Direito das famílias: amor e bioética. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

MONTEIRO, W. B.; SILVA, R. B. T. Curso de direito civil: direito de família. v. 2. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

PAGLIUCA, J. C. G. Direitos humanos. São Paulo: Rideel, 2010.



PÓVOAS, M. C. Multiparentalidade: a possibilidade de múltipla filiação registral e seus efeitos. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.

RODRIGUES, D. R. Direito civil: família e sucessões. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2011.

WELTER, B. P. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Ana Paula dos Santos Prado

por Ana Paula dos Santos Prado

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8287817H0

Portal Educação

UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93