Afinal, por que insistimos nessa audiência criminal?

Audiência Criminal.
Audiência Criminal.

Direito

29/10/2015

Aqueles que atuam na área criminal, seja lá em que “lado” se encontrem (advogado, juiz, promotor…), já devem ter percebido como são repetitivas as audiências criminais.

Salvo uma ou outra exceção, quase todas são iguais.

Os argumentos dos réus são quase sempre parecidos
(não sabia que a moto era roubada; sou usuário; não pratiquei o roubo; fui agredido para confessar perante o delegado…).

Os policiais falam praticamente a mesma coisa (o réu estava em “atitude suspeita”; fomos autorizados, pelo réu, a entrar na sua residência; a droga foi apreendida próxima do réu; não me recordo muito dos fatos, pelo decurso de tempo e pela quantidade de abordagens).

As petições
(tanto da Defesa quanto do MPE) e as decisões, em muitos casos, são praticamente idênticas, com os mesmos fundamentos.

Além do mais, a maioria das testemunhas de acusação (quiçá de todo o processo) é formada pelos mesmos policiais que atuaram na prisão do (s) acusado (s), os quais, provavelmente, já atuaram em centenas de situações parecidas, após aquela que desencadeou um processo criminal específico.

Assim, quando esses policiais (que prendem, que estabelecem inicialmente qual foi a infração penal cometida, que são praticamente os únicos que testemunham contra o réu e que, como sabemos, suas declarações são revestidas de grande força probatória) são ouvidos em Juízo, eles já não se recordam com exatidão dos fatos ou, quando lembram, se recordam de poucas coisas, seja pelo decurso temporal ou pela grande quantidade de abordagens semelhantes.

Vejam só um caso interessante que presenciei e demonstra bem a falência e a fragilidade da audiência criminal:

Era uma audiência de um processo que apurava a prática de um roubo, com dois réus, um que estava preso em decorrência de um mandado de prisão preventiva expedido em sede de inquérito policial (e que, consequentemente, não havia sido preso em flagrante); e outro que tinha sido preso em flagrante, mas não foi conduzido pela Secretaria de Segurança Pública para a audiência, por falta de efetivo.

A única testemunha presente ao ato era um policial militar
que atuou na prisão em flagrante, tendo em vista que a vítima, aparentemente, tinha se mudado e não havia notícia do seu novo endereço e que os outros policiais estavam em uma operação e não poderiam comparecer.

Destarte, estavam presentes na audiência: o juiz, o promotor, o advogado de defesa, um dos réus e um dos policiais militares.

Quando a testemunha começou a prestar suas declarações, sendo indagada sobre os fatos que originaram aqueles autos, o motivo pelo qual aquela pessoa era acusada de praticar um crime e outras coisas relacionadas, ela passou a narrar os fatos, afirmando que teria prendido aquele réu (o que estava presente na audiência) em flagrante delito, pois teria, na companhia de outro indivíduo, subtraído um veículo da vítima. Ela foi indagada por diversas vezes se tinha certeza de que realmente efetuou a prisão (em flagrante) daquela pessoa, sendo lembrada, inclusive, do compromisso em dizer a verdade, e, demonstrando toda certeza do mundo, respondia que sim, que aquele réu tinha sido preso por ele naquela abordagem.

Todavia, esse depoimento só tem um pequeno problema, aquele réu não tinha sido preso em flagrante, logo, tinha algo de errado com as declarações daquele policial.

No fim das contas, a audiência foi redesignada, os réus foram soltos e foi expedido ofício à Corregedoria da PM e para o MPE, com o fim de apuração da prática, pelo policial, de eventual irregularidade.

E eu, ao ver tudo isso, fiquei me questionando sobre até quando continuaremos com essa farsa teatral que não tem nenhum sentido?

Será que realmente acreditamos que o nosso processo criminal possibilita que o magistrado tenha certeza sobre a presença da materialidade e da autoria delitiva e profira uma sentença realmente “justa”?

Não acredito que a responsabilidade disso é só da polícia, a qual, sem dúvidas, tem a sua responsabilidade, mas de todo o sistema.

É inegável que as audiências ocorrem em prazos muito superiores aos previstos em lei; que os policiais atuam em diversas abordagens iguais, em bairros parecidos, em “suspeitos” quase sempre semelhantes (tanto nas vestes, quanto no modo de agir, corte de cabelo, cor da pele...); e que os crimes são cometidos da mesma forma.

Sei que existem várias formas para mudar esse quadro, como aumentar o quadro de servidores na Justiça, bem como a estrutura das instalações dos Fóruns, melhorar o efetivo policial e os seus equipamentos, até mesmo investir em educação, saúde, cultura…, para formar pessoas melhores e diminuir o índice de criminalidade, etc.

Dentre várias outras hipóteses, fico me questionando por qual razão, já que estamos implementando a audiência de custódia, não mudamos o CPP e antecipamos a instrução processual para logo após o momento da prisão (ocasião em que as memórias estão mais afloradas, as declarações são mais “verdadeiras”)?

Após a prisão o preso é encaminhado diretamente para um juiz, promotor e defesa (seja pública ou privada) e, naquele momento, ouve as testemunhas e o réu e, se possível, já profere decisão/sentença.

Seria muita utopia?


Com certeza não será possível fazer isso com 100% dos processos, pois existem situações que demandam maior dilação probatória, mas acredito que conseguiríamos reduzir muito a quantidade de processos demorados e desnecessários. Ademais, tal fato contribuirá para uma correta e devida atuação da polícia civil, a qual poderia se dedicar às investigações criminais; sem falar da drástica redução do número de presos provisórios.

Enfim, não estou nada satisfeito com nosso processo criminal e acredito que devemos começar a pensar em novas alternativas para mudar esse cenário.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Pedro Magalhães Ganem

por Pedro Magalhães Ganem

Graduado em Direito, pós-graduado em Processo Civil (com artigo científico publicado pelo CONPEDI) e pós-graduando em Ciências Criminais. Inscrito na OAB/ES. Atualmente, exerce a função de assessor de juiz de primeiro grau. Possui um blog predominantemente jurídico (http://pedromaganem.jusbrasil.com.br/artigos), onde expõe suas idéias.

Portal Educação

UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93