27/11/2015
RESENHA DO LIVRO “JUSTIÇA: O QUE É FAZER A COISA CERTA”, DE MICHAEL SANDEL.
Um bonde desgovernado e a difícil decisão entre não fazer nada, deixar o bonde seguir seu percurso e cinco pessoas morrerem ou agir e mudar a rota do bonde e assim fazer com que morra apenas uma. É certo o casamento entre pessoas do mesmo sexo? E o aborto? Quais os limites do livre mercado, se é que existem? São essas e muitas outras questões que o livro “JUSTIÇA” de Michael J. Sandel[1] trazem à tona para colocar em discussão vários pontos de vista de filósofos de diferentes épocas e que apresentam contrastantes maneiras de observar tais questões.
Aristóteles, Kant, Jeremy Bentham, John Rawls, são alguns dos pensadores que têm suas obras explicitadas e colocadas em análise por Sandel em seu livro. E um dos grandes méritos do autor é apresentar obras tão complexas, muitas vezes extensas, de forma simples e acessível. Kant, por exemplo, conhecido pela dificuldade e complexidade de seus textos é facilmente compreendido neste livro.
Outro fator importante são as objeções que cada linha de pensamento recebe no decorrer dos capítulos, que fazem com que o leitor analise de maneira crítica cada uma delas, pois mostra a complexidade dos dilemas sociais, e que as maneiras de os pensar, por sua vez, são da mesma maneira complicadas.
São apresentadas três concepções de justiça na obra: a utilitarista, a ideia de que justiça começa pela liberdade e a de justiça associada à virtude.
O utilitarismo parte da premissa de que nossas vidas são regidas por duas grandes áreas, uma associada à felicidade e ao prazer e outra associada à dor e ao sofrimento. E nós gostamos e sempre procuramos a felicidade enquanto, por outro lado, evitamos o sofrimento, desta maneira a coisa certa a se fazer é aquilo que proporcione a máxima felicidade para o maior número de pessoas. Este é o conceito de utilidade em Jeremy Bentham (1748 – 1832), a hegemonia do prazer sobre a dor.
Bentham é o fundador da doutrina utilitarista e ele acredita que os legisladores devem levar sua filosofia em conta quando forem formular as leis, que o objetivo principal das normas e do governo deve ser de perseguir a felicidade dos cidadãos, desta maneira ele discorda completamente da ideia de uma existência de direitos naturais, que sejam inerentes às pessoas.
As objeções ao pensamento de Benthan apontadas por Sandel dizem que ele não leva em conta os direitos individuais e que trata os valores como uma moeda comum, sendo resultado de uma subtração do sofrimento pela felicidade, onde um resultado aceitável seria aquele que proporcione mais felicidade que sofrimento. Para ilustrar, Sandel utiliza alguns exemplos, um deles discute sobre os cristãos que eram jogados aos leões na antiga Roma. Qualquer pessoa sã diria que isto é uma coisa injusta, no entanto, se analisado apenas do ponto de vista utilitarista, como proposto por Benthan, não seria tanto assim, pois a vã luta pela sobrevivência daquelas pessoas frente aos leões e seus sofrimentos, eram fonte de grande prazer e felicidade para milhares de romanos daquela época, que lotavam o coliseu, logo a relação entre dor e felicidade era maior para a felicidade.
Um outro exemplo foi o estudo que uma empresa fabricante de cigarros fez, que mostrava que o câncer de pulmão, que o cigarro causa aos fumantes é mais vantajoso para o governo, pois por um lado, é verdade que em vida os fumantes causam mais prejuízo aos cofres públicos, por conta da necessidade do tratamento de doenças, no entanto eles morrem cedo, e isso gera uma economia ao tesouro nacional em casas para idosos, previdência, entre outros gastos. De maneira que analisando assim, friamente, os fumantes causavam mais felicidade para a maioria da população, pois o governo, teoricamente, usaria o saldo causado por suas mortes precoce, em benefícios para a maioria das pessoas.
Uma geração após a de Benthan, outro pensador tenta “amenizar” sua teoria, considerando sua essência, porém, se aproximando mais da defesa dos direitos individuais e propondo também que o utilitarismo não necessariamente reduz os valores a uma única escala, este sujeito é John Stuart Mill (1806 – 1873).
Mill defende que os cidadãos devem ser livres para fazerem o que bem entenderem, e o governo não deve interferir nas decisões individuais, desde que não façam mal para outras pessoas. Mas neste caso a liberdade não se justifica em si mesmo, ela é defendida como meio. Os argumentos são no sentido de que com o tempo, o respeito à liberdade individual levará à máxima felicidade humana. Ele analisa a utilidade à longo prazo e não apenas caso a caso.
Para isto, é necessário levar em conta outro argumento, o de que existem alguns prazeres que são mais elevados que outros, que há uma distinção qualitativa entre eles. Para exemplificar Sandel nos remete outra vez ao exemplo dos cristãos jogados aos leões. Aquele macabro espetáculo causava grande prazer para os romanos, no entanto, podemos considerar que este tipo de prazer é perverso e ruim, que não leva a sociedade para um futuro bom e feliz, logo é melhor mudar este tipo de felicidade ao invés de satisfazê-lo.
Mesmo o “reformado” utilitarismo de Mill é sujeito a objeções, principalmente por tratar o não respeito aos direitos individuais como problemas da sociedade em geral, e não uma injustiça em si aos que tem suas liberdades negadas. Como no caso de uma minoria religiosa que é perseguida. Nesta situação, a perseguição merece ser combatida por ir contra a liberdade dos indivíduos de ter qualquer religião, e não por um suposto benefício geral para a sociedade.
A outra grande linha de pensamento apresentada no livro é a ideologia libertária, que supõe que justiça sempre deve estar associada à liberdade.
Os libertários defendem um Estado mínimo, que tenha influência nas decisões individuais apenas no indispensável, que mantenha a paz, que faça com que os contratos sejam cumpridos e que proteja a propriedade privada, ou seja, o necessário para manter e sustentar uma sociedade de livre mercado. Eles são contra qualquer tipo de paternalismo estatal, ou alguma legislação sobre a moral e principalmente são contra qualquer tipo de redistribuição de renda. Argumentam que não cabe ao Estado obrigar alguém a ajudar outras pessoas, nem que seja por meio de impostos com a finalidade de redistribuição da riqueza, que isto deve ser facultativo e não uma obrigação, pois cada um deve fazer o que bem entender com o que possui.
Robert Nozick (1938 – 2002) é um dos defensores das ideias libertárias, para ele não há nada de errado na desigualdade econômica, basta que exista justiça na aquisição da riqueza e na sua transferência. Na sua concepção, qualquer Estado que intervenha nos direitos individuais mais do que o necessário (que proteja as pessoas contra a força, contra o roubo e contra a fraude) não se justifica. Para ele, se apropriar do dinheiro que é resultado do trabalho de alguém é o mesmo que se apropriar desse trabalho e do tempo gasto em função daquele dinheiro, assim, obrigar pessoas a pagarem impostos para uma redistribuição de renda pode ser comparado à escravidão, ao trabalho forçado. A essência do argumento se resume em: “se sou dono de mim mesmo, devo ser dono dos frutos do meu trabalho”.
Exemplos como serviço militar não compulsório e barrigas de aluguel, são utilizados para discutir essa concepção de justiça. Ambos os casos são defendidos pelos libertários, pois para eles o serviço militar não deve ser obrigatório, pois cada um deve decidir se pretende ou não se alistar ou servir nas forças armadas de seu país, e da mesma maneira a mulher que decide se quer ou não engravidar do filho de outras pessoas. No entanto diferentes situações podem influenciar essas decisões, tornando-as nem sempre justas. Pois, em um período de guerra, por exemplo, muito provavelmente alguém que não tenha necessidade do dinheiro pago pelo exército não arriscara a vida em função do seu país, e esta hipótese é representada em números do exército americano, onde a maioria dos soldados são oriundos das classes mais pobres. Em proporções maiores esta lógica se aplica ao caso das mulheres que se submetem a um acorde de gravidez de aluguel. Desta maneira, a liberdade de escolha é ilusória, pois a realidade material muitas vezes é tão coercitiva quanto uma norma jurídica.
Outro defensor da ideia de que justiça começa pela liberdade é Immanuel Kant (1724 – 1804), no entanto ele diz que a liberdade vai além da livre escolha de mercado, da liberdade de comprar e vender. Para ele, muitos de nossas vontades nos são impostas, seja pela natureza, seja pela sociedade. A fome, por exemplo, é algo imposto biologicamente, comemos por sentirmos fome, mas não escolhemos ter fome. Ter o carro do ano é um desejo imposto pela sociedade, seja pela propagando, ou por outro meio, mas é algo que não existiria caso não houvesse imposição. Quando procuramos satisfazer esses desejos, argumenta Kant, não agimos livremente. A liberdade é verdadeira quando agimos de acordo com leis que nós mesmo nos impomos, através da nossa racionalidade.
Kant parte da premissa de que somos seres racionais, merecedores de dignidade e respeito. Desta forma não somos meios para a felicidade, algo não deve ser bom por ser melhor para a sociedade, a finalidade sempre deve ser o indivíduo em si. Quando agimos livremente fazemos algo por fazer algo e não como uma maneira para alcançar outra coisa. Esta capacidade de agir autonomamente, pela racionalidade, para Kant, é o que confere a vida humana sua dignidade especial. Ela diferencia pessoas de coisas.
É colocado em contraposição a ideia de imperativo categórico e a de imperativo hipotético. Sendo este último uma ação que visa atingir outra determinada coisa, e o imperativo categórico uma ação que é boa em si. Categórico aqui é algo que seja incondicional, que possa ser usado sempre, ele é uma lei moral. Desta maneira, o imperativo categórico é uma máxima universalizada.
Em Kant a razão está nas pessoas, diferente de outros que acreditam que a razão está no Estado, na sociedade, em objetivos além da existência humana. E o imperativo categórico é formulado racionalmente por cada um, mas que tem uma tendência de se universalizar, pois trata as pessoas como fins e não como meios. Para Kant, a moralidade não diz respeito às consequências e sim aos princípios.
John Rawls (1921 – 2002é outro que propõe que justiça está ligada a liberdade, e sua noção de liberdade também se distingue dos demais apresentados até agora. A sua questão principal é a equidade. Ele acredita que para decidirmos se algo é justo devemos nos despir de nossos conceitos, preferencias, parcialidades e imaginarmos que estamos sujeitos à um “véu da ignorância”, que faria com que não nos lembrássemos a qual categoria social pertencemos e sob essas condições, onde não saberíamos nossas vantagens e desvantagens é que poderíamos escolher nossos princípios de maneira justa, através de um contrato hipotético.
Sua conclusão foi de que neste caso não optaríamos pelo utilitarismo, pois poderíamos pertencer a uma minoria oprimida que poderia ser extinguida para a felicidade da maioria. Não optaríamos também por uma sociedade regulada quase que exclusivamente pelo mercado, pois poderíamos ser Silvio Santos, mas também poderíamos ser um sem-terra, e ninguém arriscaria. Para ele, sairia deste contrato hipotético dois princípios fundamentais, que seria por um lado, assegurar liberdades básicas para todos, por ninguém querer ser oprimido por suas escolhas, e por outro, que permitiria que as desigualdades econômicas existissem somente na medida em que os mais pobres também fossem beneficiados por elas, este último é chamado de princípio da diferença.
Nesta perspectiva altos salários, e altos ganhos em geral só existiriam caso se justificassem socialmente. Se um melhor salário para médicos fizesse com que as regiões mais pobres tivessem um bom atendimento na saúde pública, seria justificável a diferença salarial. No entanto, seria mais difícil justificar tal diferença se os médicos ganhassem melhor para fazer somente cirurgias plásticas.
Essa distinção é feita por Rawls para esclarecer que sua proposta não é de uma sociedade igualitária, mas sim equânime. Pois objeções a sua teoria partem de que, colocadas em pratica suas ideias as pessoas não teriam incentivos para produzirem mais e por isso não se esforçariam tanto. No entanto ele diz essa diferença permitida é exatamente a nível de incentivo, mas apenas na medida em que isso beneficie as demais pessoas, e não da maneira quase sem limites de uma sociedade mercadológica.
A outra concepção de justiça, contida no livro é a de que ela está associada à virtude. O mais ilustre representante dessas ideias é Aristóteles. E o principal conceito que devemos apreender para entendermos as ideias aristotélicas é o de teleologia. Para Aristóteles todas as coisas têm uma finalidade, um objetivo a cumprir, isto é teleologia, que vem do grego, telos, que significa, proposito, finalidade ou objetivo.
E as discussões à luz desta concepção passam pela questão da honra, da virtude e do mérito moral, inevitavelmente. Para Aristóteles à cada um deve ser dado aquilo que merece, aí está a justiça. Suponhamos que uma biblioteca esteja doando seus livros de física quântica e está pensando em uma maneira justa para distribui-los, Aristóteles estaria certo de que o justo seria doa-los para os físicos ou estudantes de física, pois esta é a finalidade desses livros, servir como meio de estudo aos interessados nesta área do conhecimento. Logo, os físicos são os que mais merecem recebe-los. Vale notar que, doar esses livros para estudiosos da área pode até proporcionar um bem-estar para a sociedade em geral, com o conhecimento adquirido eles podem dar aula para outras pessoas, podem produzir pesquisas cujo resultado beneficiaram mais gente, entre outras coisas, no entanto os motivos para tal escolha não são esses, mas estão relacionados simplesmente com a finalidade dos livros.
Dentre outras várias coisas Aristóteles vai pensar qual a finalidade da política. Sua conclusão é que o propósito da política é cultivar as virtudes dos cidadãos, fazendo-os aprender a viver uma vida boa, permitindo que as pessoas desenvolvam suas capacidades e virtudes humanas peculiares. Para ele, a boa lei é a que torna os que estão sujeitos a ela bons e justos.
A lógica teleológica levou Aristóteles a defender a escravidão em seu tempo, para justificar o trabalho escravo este deveria ser necessário e natural. Necessário era mais aceitável que fosse, pois os cidadãos precisavam de alguém que cuidasse dos serviços domésticos enquanto eles cuidavam e discutiam os problemas da pólis, no entanto ele também conclui que existiam pessoas que eram naturalmente suscetíveis à escravidão, logo era essa a finalidade destas.
Nos últimos capítulos o autor se posiciona e diz que está mais de acordo com essa última noção de justiça, a que entende que o justo passa pela análise da virtude, no entanto este fato não interferiu de modo algum na sua exposição no decorrer dos capítulos anteriores, pode-se dizer que durante a dissecação dos autores e de suas correntes de pensamentos houve imparcialidade.
Ao terminar o livro o leitor tem mais dúvidas do que respostas, no entanto isto não é algo negativo, pois acredito ser este o télos da filosofia, o de levantar questionamentos, e não certezas. E se durante milênios as ideias de justiça, de moralidade, as soluções para dilemas sociais, são pensadas, e exaustivamente discutidas, por geniosos pensadores e não se chegou a um consenso, não é na leitura de um livro que um estudante vai chegar, seria no mínimo presunçoso da parte de quem pretendesse tal feita.
Bibliografia:
SANDEL, Michael J. Justiça o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro, RJ: 13° Edição CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2013
[1] Professor de filosofia política da universidade de Harvard, onde ministra o curso “Justiça” o qual o livro resenhado é resultado.
Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.
Licenciado em História pela Universidade Federal do Acre e Estudante de Direito na mesma instituição.
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