Direito humanitário: estudo de casos

Direito

30/04/2017

A Convenção de Genebra é o tratado que codifica as leis da guerra. Foi estabelecida em 1949. O referido tratado traz a cláusula de Violação Grave, que exige a acusação de quem comete os piores tipos de atrocidades. Portanto, os culpados de matar intencionalmente, torturar ou praticar tratamentos desumanos, incluindo experiências biológicas, devem ser processados com base na referida Convenção.

Artigo 5 - Crimes sob a jurisdição do Tribunal

A jurisdição do Tribunal se limitará aos crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional em seu conjunto. O Tribunal terá jurisdição, em conformidade com o presente Estatuto, sobre os seguintes crimes:

O crime de genocídio;

Os crimes contra a humanidade;

Os crimes de guerra;

O crime de agressão.

Ressaltamos que toda vez que um civil é morto durante uma guerra não é uma violação grave. As leis da guerra dizem que pode ter baixas civis, e isso não será considerado uma violação grave ou um crime de guerra, desde que suas mortes não sejam desproporcionais ao objetivo militar. Ademais, os soldados não têm permissão para atacar hospitais, estruturas religiosas ou culturais, caso contrário será processado com base nas Convenções de Genebra.

Quanto as infrações graves, previstas na Convenção de Genebra, só se aplicam em conflitos armados internacionais. Não se aplicam nas próprias fronteiras de um país durante uma guerra civil. Para as guerras civis, adota-se a jurisdição universal, isto é, qualquer país pode processar um ofensor se estiver no seu território, se o país desejar. Mas os Estados não são obrigados a fazê-lo, podendo conceder anistia ou acordo de paz.

Artigo 8 - Crimes de guerra

O Tribunal terá jurisdição sobre os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte de um plano ou política ou como parte da prática em grande escala de tais crimes.

Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”:

a) Violações graves das Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, a saber, quaisquer dos seguintes atos praticados contra indivíduos ou bens protegidos pelas disposições da Convenção de Genebra pertinente:

Homicídio doloso;

Submeter à tortura ou a outros tratamentos desumanos, incluídas as experiências biológicas;

Infligir de forma deliberada grandes sofrimentos ou atentar gravemente contra a integridade física ou a saúde;

Destruir bens e apropriar-se deles de forma não justificada por necessidades militares,  em grande escala,  ilícita e arbitrariamente;

Obrigar um prisioneiro de guerra ou outro indivíduo protegido a prestar serviços nas forças de uma Potência inimiga;

Privar de forma deliberada um prisioneiro de guerra ou outro indivíduo do seu direito a um processo justo e imparcial;

Submeter à deportação, transferência ou confinamento ilegais;

Tomar reféns;

Outras violações graves das leis e usos aplicados aos conflitos armados internacionais no marco do direito internacional, a saber, qualquer dos seguintes atos:

Já a Convenção do Genocídio da ONU cria o dever de processar. A referida convenção codificou as atrocidades cometidas pelos nazistas. No entanto, quando a Convenção foi negociada durante a Guerra Fria, Joseph Stalin estava cometendo os mesmos tipos de atrocidades matando 20.000.000 russos. Por isso, Stalin inseriu a cláusula, neste tratado, afirmando que Genocídio ocorre apenas quando há assassinato de grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, e não quando um líder matar opositores políticos. A morte desses grupos ocorre por morte direta, esterilização ou outras formas de destruição do grupo. A Convenção sobre o Genocídio exige que as pessoas e os governos processem o genocídio quando o mesmo ocorre em suas próprias fronteiras. Mas para outros países ao redor do mundo, não há um dever de processar aqueles que cometeram genocídio. No entanto, outros advogam a tese de que ao crime de genocídio aplica-se a jurisdição universal, isto é, qualquer país pode processar o outro pela prática de genocídio.  

Artigo 6 - Genocídio

Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “genocídio” qualquer um dos atos mencionados a seguir, praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal:

Matar membros do grupo;

Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial;

Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Um exemplo que marcou a história ocorreu em 1988, durante a guerra entre o Iraque e o Irã. Saddam Hussein decidiu matar os curdos que viviam na fronteira norte perto do Irã. Para isso, usou armas químicas. Saddam encarregou de matar os curdos, não porque odiassem os curdos, mas sim porque pensavam que os curdos estavam alinhados com os iranianos durante a guerra. E em segundo lugar, porque os curdos viviam em áreas ricas em petróleo. E deram aos curdos a opção de sair antes que jogassem as armas químicas. Então, nessas circunstâncias, o julgamento de Saddam e de seu primo, que era o responsável pelo uso das armas químicas, considerou que eles cometeram genocídio, mesmo a Convenção não prevendo que quando um líder matar opositores não será considerado genocídio.

Agora, podemos falar do Crime contra a Humanidade. É definido no estatuto do Tribunal Penal Internacional como sendo o alvo a população civil de forma generalizada e sistemática. Esse crime é mais amplo do que o genocídio, uma vez que no genocídio precisa da intenção de matar um grupo racial, nacional ou religioso. Enquanto no Crime contra a Humanidade basta a prática de atrocidades contra a população. O problema dos crimes contra a humanidade, entretanto, é que não há o dever de processar, a menos que o indivíduo tenha sido indiciado pelo Tribunal Penal Internacional.

Artigo 7 - Crimes contra a Humanidade

Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade” qualquer um dos seguintes ats quando praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque:

Homicídio;

Extermínio;

Escravidão;

Deportação ou transferência forçada de populações;

Encarceramento ou outra privação grave da liberdade física, em violação às normas fundamentais do direito internacional;

Tortura;

Estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou outros abusos sexuais de gravidade comparável;

Perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, fundada em motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gênero, como definido no parágrafo 3º, ou outros motivos universalmente reconhecidos como inaceitáveis conforme o direito internacional, em conexão com qualquer ato mencionado no presente parágrafo ou com qualquer crime da jurisdição deste Tribunal;

Desaparecimento forçado de pessoas;

O crime de “apartheid”;

Outros atos desumanos de caráter similar que causem intencionalmente grande sofrimento ou atentem gravemente contra a integridade física ou a saúde mental ou física;

Finalmente, o Crime de Tortura, prevista na Convenção de 1994. A tortura é um meio de causar dor ou sofrimento severos. Pode ser física ou mental. Sob a convenção de tortura, você não pode reivindicar quaisquer circunstâncias excepcionais que permitam torturas. Assim, a prática de tortura de um terrorista para descobrir onde está localizado a bomba relógio, por exemplo, não é admitida. Ademais, a convenção determina o dever de extraditar ou processar qualquer torturador encontrado em seu território. Agora, a Convenção sobre Tortura estabelece uma distinção importante entre a tortura e o crime de tratamento cruel e humano degradante. É interessante notar que aquele caso em que uma mulher no Irã que foi chicoteada pelo crime de adultério, a Comissão de Direitos Humanos considerou como prática de tortura. No entanto, a prática de tortura ou tratamento degradante causado pelos agentes dos Estados Unidos em Guantanamo, com o objetivo de extrair dos suspeitos o paradeiro de Osama Bin Laden ou o local onde a próxima bomba iria explodir, não foi considerado tortura ou tratamento degradante pela Casa Branca, uma vez que afirmavam que era legítimo fazer este tipo de coisas. E, por isso, a Casa Branca afirmou que não iriam processar tais agentes. No entanto, como a tortura é um crime de jurisdição universal, a Espanha e Alemanha processou Obama pela prática de tais atos. A consequência disso é que os agentes que perpetraram tais atos se sair dos Estados Unidos e adentrarem o território da Espanha ou Alemanha, esses países acusaram aqueles, perante o TPI, pela prática de tortura e tratamento desumano ou degradante.  

Segundo o Estatuto do TPI, em seu artigo 17, o Tribunal Penal Internacional não vai processar se a pessoa foi investigada ou processada no nível local.

Artigo 17 Questões de admissibilidade - O Tribunal, levando em consideração o parágrafo 10 do preâmbulo e o artigo 1º, decidirá pela inadmissibilidade de um caso quando: O caso estiver sendo objeto de investigação ou processo em Estado que tem jurisdição sobre o mesmo, a menos que tal Estado genuinamente não seja capaz ou não esteja disposto a levar a cabo a investigação ou o processo;

O artigo 16 afirma que o Conselho de Segurança pode pedir ao Tribunal Penal Internacional que pare, sob fundamento do interesse da paz e da justiça.

Artigo 16 Suspensão da investigação ou do processo: Nenhuma investigação ou processo poderá ser iniciado ou continuado, sob este Estatuto, por um período de doze meses após a adoção pelo Conselho de Segurança de resolução, em conformidade com o disposto no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que solicite ao Tribunal medida nesse sentido; tal solicitação poderá ser renovada pelo Conselho de Segurança nas mesmas condições.

No entanto, a Corte Internacional, o promotor e os juízes não devem pensar em política, mas sim em justiça. Cabe ao Conselho de Segurança, o ramo político da ONU, esse poder político.

 

1º Caso - Haiti, em 1994, o regime militar toma o poder. O presidente haitiano fugiu para Nova York e as Nações Unidas tentaram negociar um acordo.

Havia uma violação grave às convenções de Genebra? Não, pois era um conflito armado interno.

Houve outros crimes de guerra no Haiti? Provavelmente não. Era um conflito unilateral. O general Cedras e seus subordinados cometeram atrocidades contra opositores políticos.

Foi genocídio? Não. O general Cedras não estava matando pessoas por causa de sua etnia, nacionalidade ou raça. Ele estava matando-os porque eram adversários políticos.

Foi um crime contra a humanidade? Sim. Provavelmente 3.000 pessoas morreram durante um período de meses. Era sistemático, era generalizado.

Era uma tortura? O Haiti não era parte da Convenção contra a Tortura, pelo que não se aplicava.

Sendo assim, eles poderiam fazer um acordo com os líderes militares? Sim.

Portanto, o único crime que foi praticado foi crimes contra a humanidade. Não houve uma acusação pelo Tribunal Penal Internacional, nem sequer existia na época. E assim, como resultado, o acordo foi feito, os líderes militares haitianos foram para o exílio e a justiça foi trocada pela paz.

 

2º Caso - África do Sul e o regime do Apartheid.

Houve Violações Graves? O Apartheid matou muitas pessoas, mas não houve um conflito armado, e se houve em alguns casos, não foi internacional.

Portanto, não há nenhum dever de processar sob as Convenções de Genebra.

Foi genocídio? As pessoas estavam sendo subjugadas. Eles estavam sendo abusados, mas eles não estavam sendo mortos em números de massa, mesmo por causa de sua raça.

Foi um crime contra a humanidade? Sim. A ONU afirmou que o apartheid era um crime contra a humanidade.

Seria uma tortura? Foi, mas a África do Sul não era signatária da Convenção contra a tortura e outro tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

Qual a consequência? O mesmo do Haiti. Na África do Sul houve um acordo onde havia uma comissão de verdade. Concedeu anistia. Não houve acusações de muitos dos líderes do regime do apartheid.

 

3º -  Caso Camboja.

Houve violações graves? Não. Pois, não foi um conflito armado internacional.

Outros crimes de guerra? Sim, em alguns casos houve luta quando Pol Pot estava assumindo o país.

Era genocídio? Não temos certeza. Depende se os casos de assassinato dos deslocados da cidade para o campo é genocídio.

Foi um crime contra a humanidade? Sim.

E foi tortura, de novo? O Camboja não foi parte da convenção de tortura.

Então, onde isso nos deixa? Poderia haver um acordo de paz no Camboja. Quase ocorreu isso. Mas a comunidade internacional decidiu, no entanto, criar um tribunal do Camboja para a acusação. Isso concretizou após 30 anos.

 

4º Caso – Bósnia, 1995, o massacre de Srebrenica.

Foi uma violação grave das Convenções de Genebra? Sim. Havia tropas apoiadas e controladas pela Sérvia que cometeram atrocidades na Bósnia. Portanto, há um dever de processar.

Houve outros crimes de guerra?  Sim. Genocídio, uma vez que mais de 7.000 pessoas que eram bósnios foram mortas pelos sérvios por causa de sua etnia. Houve crime contra a humanidade. E tortura também.

A Bósnia havia ratificado a convenção de tortura em 1993. Por isso, não poderia haver uma troca de justiça para a paz. Por isso, criou o Tribunal Penal para a Iugoslávia.

A Convenção contra a Tortura é muito forte, mas não há muitos países onde a tortura tem tido a temeridade de ratificar a convenção. Sabendo muito bem que algum dia, seus líderes poderiam ser processados sob ele.

 

5º Caso – Primavera Árabe - Síria em 2013

Houve graves violações neste momento? Não, é um conflito armado interno, e violações graves só se aplicam em um conflito armado internacional.

Existem outros crimes de guerra? Sim, o comitê internacional da Cruz Vermelha diz que os combates em ambos os lados são atacados.

Como é uma guerra civil, e, mesmo assim, os crimes de guerra estão sendo praticados, permite a jurisdição universal. Mas, não o dever de processar.

Genocídio? Até o presente momento não temos certeza, uma vez que é o governo, que é composto de vários grupos matando a oposição, que é composta por vários grupos. E não parece ser por causa de sua etnia, raça ou religião ou nacionalidade.

Crimes contra a humanidade? Sim. Pois, até 2013 60000 pessoas foram mortas.

Há tortura? A Síria não é parte da convenção de tortura.

A questão é que a comunidade internacional sugere que o Presidente Assad simplesmente desistisse do poder. Isto é uma situação em que eles poderiam trocar justiça pela paz.

No entanto, só porque é legal trocar o processo judicial pelo acordo de paz não significa que seja uma boa ideia fazê-lo, pois, pode estar semeando as sementes para o futuro conflito.

 

 

REFERÊNCIAS:

ESTATUTO do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/tpi/esttpi.htm . Acesso em: 30 de abril. 2017

SCHARF, Michael P. Introduction To International Criminal Law. Disponível em: < https://d396qusza40orc.cloudfront.net/intlcriminallaw%2FReading_Assignment%2FM2%20Reading.pdf>. Acesso em: 30 de abril de 2017

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Bárbara Thaís Pinheiro Silva

por Bárbara Thaís Pinheiro Silva

Presidente do Núcleo Acadêmico de Pesquisa, na Faculdade Mineira de Direito / PUC Minas - Coração Eucarístico. Foi Monitora de Teoria da Constituição, Direito Constitucional I e II. Foi Pesquisadora Científica Bolsista da FAPEMIG na área de Direito Constitucional e Internacional.

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