Reforma da justiça (estudo de caso)*

Direito

11/12/2009

RESUMO

Uma etnografia dos serviços de justiça nos Centros de Integração da Cidadania permitiu analisar rituais informais e formais de resolução de conflitos praticados por Polícia Civil, Ministério Público e Judiciário, no âmbito de um programa de integração de serviços. A análise permitiu uma sociologia política da gestão estatal dos conflitos, caracterizada como campo fragmentado e plural em que lógicas de resolução de conflitos e agências disputam o significado da expansão do direito e da justiça à população pobre. A pluralidade de lógicas de resolução de conflitos, de um lado, dá liberdade de opção das partes na defesa de seus interesses, de outro, reproduz desigualdades entre as partes e os operadores jurídicos, minando a eficácia do direito estatal. Rituais do campo jurídico contribuem ainda para hierarquizar corpos circunscritos e corpos vulneráveis.

Reforma da justiça (estudo de caso)*

AUTORA:

Jacqueline Sinhoretto*

* Doutora e mestre em Sociologia pela USP e professora da Fundação Armando Álvares Penteado e da Faculdade Integral Cantareira.


A reforma do sistema de justiça tem sido importante tema do debate sobre democracia e cidadania no Brasil atual, presente também na discussão sobre o enfrentamento da violência. Uma das iniciativas propostas foi a criação dos Centros de Integração da Cidadania _ CIC _, um programa do governo estadual paulista, cuja criação e implantação foi objeto do estudo aqui relatado.

O primeiro posto do CIC implantado, em 1996, no bairro do Itaim Paulista (a quarenta quilômetros do centro de São Paulo), reunia no mesmo edifício de construção simples, encravado no meio de um grande conjunto habitacional, um juiz, um promotor de justiça, um delegado de polícia, um advogado público e um serviço de assistência social e psicológica, com o objetivo de resolver conflitos de forma rápida, informal e acessível, disseminar conhecimentos sobre leis e direitos e incentivar a organização popular _ numa iniciativa realmente inédita para as instituições de justiça paulistas.

A criação do CIC pode ser compreendida no contexto de lutas travadas na transição entre a ordem autoritária da ditadura militar (1964-1984) e a construção de uma ordem democrática iniciada com a eleição de governos civis (1982 e 1989), a produção da nova Constituição (1988) e a renovação de algumas legislações, trazendo esperança democrática na consolidação de um Estado de direito, com sua extensão e abrangência sendo disputadas entre as forças políticas.

A proposta desse novo modelo de prestação de serviços de justiça e segurança para a população pobre dos bairros de periferia emergiu de um grupo de operadores do direito liderado por juízes atuantes na 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, nos primeiros anos da década de 1980. Assim, é parte de um movimento interno da magistratura paulista, com o apoio de membros de outras instituições da justiça, que buscava formular teórica e politicamente estratégias de democratização institucional.

Na visão de seus criadores, a descentralização máxima dos serviços judiciais _ até então concentrados e centralizados (ou "encastelados", como diziam), a produzir distanciamentos físicos e simbólicos em relação ao "homem do povo" _ e a integração com a instância policial representavam um projeto de expansão do Estado de direito, ampliando o acesso aos serviços de justiça à grande maioria da população até então excluída das relações de cidadania e desprotegida pela ordem jurídica. O deslocamento dos operadores jurídicos e a fixação de postos de trabalho nos bairros pobres, por meio da dialética de novas relações a serem estabelecidas com o "homem comum", formariam um poderoso mecanismo de transformação da "mentalidade" de delegados, juízes e promotores _ sem a qual não se poderia democratizar o sistema judicial nem consolidar a democracia.

A história do CIC, de suas apropriações, mudanças de rumo, adaptações e resultados, pode então ser lida como uma história de lutas em torno do significado da expansão do Estado de direito _ conseqüentemente, sobre o que e como reformar ou conservar nos serviços de justiça _ no período recente da sociedade brasileira, embora a pesquisa tenha se concentrado em São Paulo, a maior metrópole do país, hoje com 19 milhões de habitantes. A partir de 2001, o Ministério da Justiça passou a financiar programas de implantação dos Centros Integrados de Cidadania em estados e municípios, no âmbito da política de prevenção da violência. Na Grande São Paulo há nove postos1 implantados pelo programa estadual, e um em Campinas; outro posto foi implantado pela prefeitura de Santo André em parceria com o governo federal, sem ligação com o programa estadual.

Para este estudo, um exercício de sociologia política, o CIC é como uma janela pela qual observar as relações de poder constituindo e sendo constituídas por práticas concretas de manutenção e inovação das instituições de justiça e da gestão estatal dos conflitos. Trata-se de observar o sistema de justiça pelas suas franjas, pelos postos de trabalho de pouco prestígio, distantes geográfica e simbolicamente das chefias e dos postos de decisão. Pelo discurso de criação do CIC, a franja transformaria o centro. Para a pesquisa, trata-se de uma oportunidade de observar o conjunto de instituições operando no mesmo campo, e realizar uma investigação que transcende as fronteiras institucionais, tomando-as como construção e não como um dado acabado de realidade.

No debate das ciências sociais brasileiras sobre o sistema de justiça, este estudo deparou-se com um tipo de divisão de trabalho que acarreta silenciamentos e ocultamentos entre as principais tendências de análise e os principais autores do campo quanto aos diagnósticos de rupturas e continuidades de concepções e práticas autoritárias nas instituições judiciais e policiais no processo de democratização brasileiro. De um lado, há os estudos que tematizam o sistema de justiça no contexto da democratização e das reformas normativas e institucionais, privilegiando o tratamento dos conflitos cíveis e, em geral, diagnosticando importantes rupturas na configuração institucional, na prestação dos serviços e nas conquistas da cidadania nas últimas duas décadas, com destaque para autores como Maria Tereza Sadek (2002) e Luís Werneck Vianna (cf. Vianna et al., 1999). De outro, os estudos sobre a justiça criminal tematizam, grosso modo, as dificuldades de democratização, a persistência de padrões hierárquicos e os obstáculos de atualização das instituições para o enfrentamento do crescimento da criminalidade no período democrático, em linhas seguidas por Sérgio Adorno (1994, 1996, 1998), Antonio Luis Paixão (1982) e Roberto Kant de Lima (1989, 1995, 1997, 2004). Mesmo aqueles dedicados a investigar o efeito de reformas, como os Juizados Especiais Criminais, apontam padrões persistentes nas culturas jurídicas e organizacionais dos operadores jurídicos, resistentes aos temas relevantes para a democratização da justiça (cf. Amorim et al., 2002; Azevedo, 2000; Izumino, 2002).

Não por acaso, na primeira tendência predomina a perspectiva macrossociológica, correlacionando processos políticos e econômicos a adaptações das instituições de justiça. Os recursos de pesquisa mais utilizados são sondagens de opinião e de perfil social e ideológico das corporações, privilegiando a visão dos agentes institucionais sobre os processos de mudança. Na outra tendência, verifica-se a preferência por análises de microcontextos, que privilegiam a observação do cotidiano e os efeitos concretos das práticas, mais do que a intenção e a avaliação dos agentes; os marcos normativos são menos importantes do que o descortinamento de interações sociais permeadas por significados implícitos, construção de identidades clandestinas, processos informais de socialização, os quais operam para permitir o aprisionamento de inovações por antigas culturas jurídicas.

A presente investigação, de certa forma, situa-se no cruzamento dessas duas correntes, tendo que localizar seu objeto num contexto de mudanças institucionais que sugerem a hipótese da efetiva ampliação do acesso à justiça; não obstante, os próprios caminhos de implantação da reforma proposta pelo CIC corroboram a hipótese de não serem poucos os obstáculos de mudança e os riscos de aprisionamento da novidade a padrões persistentes de pensamento e práticas tradicionais elitistas ou autoritárias.

 O ideário de criação do CIC

No contexto da transição entre a ordem autoritária e a nova ordem constitucional de 1988, as lutas e as disputas internas da magistratura paulista definiam grupos com opções diversas não apenas político-eleitorais como também de formulação e aplicação de saberes jurídicos. Em torno dos juízes da mencionada 5ª Câmara reunia-se uma minoria entre os operadores jurídicos disposta a produzir uma nova jurisprudência, pautada no diagnóstico de que grande parte da legislação ordinária havia sido criada durante períodos de exceção, sendo sua estrita aplicação produtora de vieses classistas, elitistas e discriminatórios na distribuição da justiça. Fazia a crítica ao formalismo dos juízes e ao desempenho da magistratura como mera aplicação das leis a casos específicos. Propugnava um saber jurídico crítico que, além dos princípios do liberalismo político importante num período autoritário), incorporasse também princípios de democracia social, exigindo do juiz discernimento para interpretar a lei de forma a garantir a igualdade de tratamento jurídico numa sociedade desigual. À lei ordinária, considerada classista e autoritária, opunha o respeito à Constituição, entendida como a carta de direitos individuais e de cidadania. Nos anos de 1980, no Brasil, essa carta de direitos era ainda limitada, mas esses operadores jurídicos estavam em diálogo direto com doutrinadores internacionais do novo constitucionalismo2 e do garantismo penal3.

O discurso dos garantistas, crítico à função de repressão das classes populares pelo Estado penal, manifestava preocupação com a justiça social, além da justiça formal, e com a arbitrariedade exercida por agentes do Estado na persecução e execução criminal, sobretudo contra as classes populares. Realizavam a defesa de um direito que fosse "sensível" aos problemas do "homem comum", do "homem do povo". E essa orientação os colocava em proximidade a grupos políticos externos ao campo jurídico, como a esquerda católica e defensores de direitos humanos, de quem incorporaram conteúdos importantes para definir a reforma da justiça contida no projeto do CIC.

Já desligados da instituição judiciária, alguns expoentes do grupo envolveram-se com a formulação de um projeto de governo para a área de segurança e justiça. E com essa tarefa desenharam as linhas principais de um programa de descentralização máxima e integração dos serviços, com funcionamento diuturno, nos bairros mais pobres da capital. Pretendiam, com o deslocamento dos operadores jurídicos para os bairros, conferir agilidade ao processamento dos conflitos, ampliar o acesso dos pobres à justiça e produzir uma mudança de mentalidade na cultura jurídica de juízes, promotores, delegados e advogados, os quais incorporariam novos valores com a vivência cotidiana das condições de vida das periferias urbanas.

À proximidade dos operadores judiciais entre si e deles com "o homem comum" atribuía-se o potencial de melhorar o controle mútuo de arbitrariedades, incluindo aí violência policial, tortura e maus-tratos no cárcere, e distorções na aplicação da lei penal. Dessa proximidade emergiria também o controle social das instituições, cujos canais de diálogo com as demandas populares e cuja transparência eram praticamente inexistentes, pois a presença física e a acessibilidade dos serviços fariam dos agentes da justiça pessoas conhecidas e referências da sociabilidade local.

O projeto de criação do CIC evidenciava a premissa de que o conhecimento dos agentes da justiça e de suas funções, do funcionamento dos órgãos judiciais, da condução dos procedimentos, e a utilização dos serviços judiciais na defesa de direitos sociais e interesses individuais teriam um potencial pedagógico de transmitir aos cidadãos, até então excluídos dessa experiência, as virtudes do Estado de direito social e democrático, despertando-os a reivindicar a efetividade da cidadania e das leis. E quanto mais conscientes os cidadãos, mais pressão haveria sobre as instituições para corresponder às demandas populares, num processo que chega a ser imaginado pelos mais idealistas como um impulso para uma revolução popular.

A proposta integrou o programa do candidato a governador Mário Covas (PSDB), em 1990, como uma grande inovação para as políticas de justiça e segurança. O candidato não venceu aquela eleição e candidatou-se em 1994, saindo vitorioso. O projeto do CIC integrava o programa de governo, sem o destaque dado anteriormente. Sua execução ficou a cargo da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, sendo um de seus programas prioritários, ao lado da implantação do Plano Estadual de Direitos Humanos e dos programas de proteção a testemunhas e vítimas de violência.

Implantação dos postos e dos serviços de justiça

Uma das inovações do CIC é ser um programa do Poder Executivo para a melhoria do acesso e da prestação dos serviços de justiça. Contudo, como a Secretaria de Justiça não administrava nenhum dos serviços importantes para o sucesso do programa, ele foi implantado sob sua coordenação, mas depende de parcerias e convênios que envolvem as diversas secretarias estaduais, o Poder Judiciário, o Ministério Público e autarquias e fundações públicas, cada qual com autonomia sobre suas diretrizes, prioridades e orçamentos. A necessidade de integração, contida no título do programa, é reflexo de uma estrutura estatal fragmentada, em que há agências concorrendo por recursos, visibilidade, independência, cada qual envolvida em disputas políticas internas e afetada por disputas dentro das corporações profissionais que as compõem.

Embora imaginada com intenção reformadora _ quiçá revolucionária _, a implantação do CIC ganhou as feições que as disputas próprias de um campo estatal complexo possibilitaram. Sob a coordenação da Secretaria de Justiça, tornou-se um espaço de exacerbação da crítica ao formalismo da justiça, propondo a informalização dos procedimentos e das técnicas inovadoras de mediação de conflitos. Acrescentou-se o encorajamento à participação popular em conselhos, reuniões, comissões, e na relação direta entre líderes locais e os agentes públicos, caracterizando a "participação da comunidade". As diretrizes de informalização e integração com a comunidade eram sempre contrastadas no discurso dos gestores do CIC com uma prática judicial excessivamente formalista, mais preocupada com a técnica jurídica do que com os conflitos sociais, de linguagem incompreensível e rituais sem eficácia, elitista, seletiva e discriminatória.

A crítica ao formalismo excessivo propunha a informalização dos rituais judiciais para aproximar a linguagem e os valores dos operadores jurídicos, oriundos das classes altas, à realidade dos conflitos vividos pelos cidadãos das classes populares, e permitir um acesso à justiça rápido, fácil, satisfatório para as partes. Acreditava-se que, ao desfocar o ritual de resolução de conflitos das preocupações formais, criavam-se as condições para o exercício pedagógico do acesso à justiça como aprendizado das regras democráticas de convivência e, ao focar as questões substantivas do conflito, garantir-se-ia a efetivação dos direitos humanos.

O privilégio de formas alternativas de resolução de conflitos por parte dos gestores do CIC seria absorvido nas instituições parceiras segundo as lógicas organizacionais e corporativas, no contexto da redefinição de alguns papéis institucionais dos anos de 1990. No caso do Judiciário, a "atuação desformalizada" propugnada pelo ideário do CIC foi absorvida e equacionada como correspondente aos princípios da recente Lei 9.099/95 que criou os Juizados Especiais, a mais importante reforma dos serviços judiciários das últimas décadas (cf. Vianna et al., 1999; Azevedo, 2000; Amorim et al., 2002). O Tribunal de Justiça paulista, com dificuldades de expansão, compreendeu que a instalação de um Juizado Informal de Conciliação no CIC, nos termos da nova lei, era boa solução. Posteriormente, foram implantados Juizados Especiais Cíveis. Isso significou uma redução das competências atribuídas ao juiz pelo projeto de criação do CIC, uma vez que esse juizado atende a um rol restrito de causas.

No Ministério Público, o contexto de criação do CIC coincidiu com a redefinição de papéis institucionais que propugnava deslocar a identidade organizacional de sua função exclusivamente penal para atribuições na defesa de direitos coletivos e difusos, direitos de cidadania e fiscalização do Executivo (cf. Arantes, 1999; Silva, 2001). Assim, e pela ausência de juizado criminal, o papel do promotor de justiça no CIC definiu-se pela vocação na defesa de direitos metaindividuais. Porém, dado o apelo do programa à informalidade, alguns promotores assumiram funções de resolução alternativa de conflitos e de atuação na área de família, realizando acordos relativos à guarda de filhos, separação de bens e direitos individuais.

Para a Polícia Civil, o programa propôs uma atuação totalmente diferente das atribuições da polícia judiciária definidas em lei, descartando o registro de boletins de ocorrência, a abertura de inquéritos e os procedimentos da investigação criminal. O papel dos policiais no CIC é definido como "preventivo" e dedicado à resolução alternativa de conflitos. Como proposição, parecia ousado por investir na construção de um perfil policial inovador; todavia, como a inovação não foi codificada, a prática costumeira da polícia no ajustamento informal de conflitos passou a dar a tônica da atuação no CIC. As funções policiais de mediação extrajudicial de conflitos já foram estudadas em diversos períodos da história brasileira e têm permanecido nos diferentes contextos normativos e organizacionais, mostrando ser uma prática tradicional nas relações entre a polícia e seu público (cf. Bretas, 1996; Oliveira, 2004).

No tangente aos serviços de orientação e assistência judiciária, foi realizado um convênio entre o CIC e a Procuradoria da Assistência Judiciária _órgão atuante antes da criação da Defensoria Pública _ que possibilitou a participação de um advogado público em tempo parcial. Porém, pela ausência de varas judiciais no CIC e a escassez de profissionais no órgão, o atendimento acabou extinto, permanecendo apenas a assistência por advogados dativos nas audiências do Juizado Especial; a orientação jurídica ficou a cargo de estagiários de direito aportados por convênios diversos. É curioso notar que, se o interesse institucional minguou, permaneceu o entusiasmo de um grupo de procuradores envolvidos com reformas na política de assistência judiciária, cuja contribuição foi decisiva para a criação da Defensoria, em cujo modelo organizacional o CIC tem algum destaque.

A análise da alocação dos serviços de justiça nos demais postos indica o afastamento dos objetivos iniciais do programa. Houve claro declínio da participação de serviços judiciais, clássicos ou informais, e o deslocamento do enfoque para serviços de documentação. Em razão de dificuldades na criação de postos de trabalho e alocação de profissionais, os órgãos não estão presentes em todos os postos, ocasionando a inauguração de novos prédios sem a presença dos serviços de justiça4. É evidente a irrelevância das políticas internas de descentralização do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Procuradoria de Assistência Judiciária, os quais não ampliaram _ ou, antes, reduziram _ sua participação no programa após 2001. Os serviços existentes não se extinguem e os convênios não são rompidos em razão de a utopia reformadora do CIC ainda possuir algum sentido nas dinâmicas internas das instituições, embora consista num projeto absolutamente minoritário. A implantação do CIC pode ser lida como história de resistências a reformas institucionais no campo da justiça suportadas por agentes externos, como o Executivo, partidos políticos ou movimentos sociais. Entretanto, também pode ser contada como disputa pela construção de novos perfis profissionais e modelos organizacionais da justiça no contexto da democratização, ainda que não se tenham tornado hegemônicos.

É difícil, contudo, não corroborar o diagnóstico de que, na companhia de alguns outros projetos de inovação (cf. Amorim et al., 2002; Azevedo, 2000; Debert, 2006; Izumino, 2002), o CIC _ a despeito da discursividade transformadora que o cerca _ acaba colonizado por estratégias organizacionais e culturas jurídicas persistentes e poderosas diante das forças que impelem à democratização da justiça e à expansão do Estado de direito às classes populares e aos bairros mais pobres e distantes.

A descrição e a interpretação dos rituais de resolução de conflitos observados nos serviços de justiça dos postos do CIC poderão contribuir para a qualificação dessas culturas jurídicas e organizacionais em disputa no campo da gestão estatal dos conflitos.

A gestão estatal dos conflitos

Empiricamente, a pesquisa sobre a gestão estatal dos conflitos nos Centros de Integração da Cidadania está amparada no estudo dos rituais de resolução informal de conflitos, administrados legal ou extralegalmente por agentes e instâncias estatais _ no juizado o acordo entre as partes é previsto em lei como procedimento informal de resolução do processo; os demais atendimentos são dedicados à resolução extrajudicial de conflitos, em que o promotor, o delegado ou o policial civil tentam conduzir as partes a acordo, posteriormente homologado em juízo ou não. A observação etnográfica de audiências e atendimentos dos serviços foi realizada nos três postos que contavam com Juizados Especiais Cíveis, atendimento do promotor de justiça ao público e atividades preventivas da Polícia Civil, ou seja, CIC Leste _ Itaim Paulista, CIC Oeste _ Jardim Panamericano e CIC Sul _ Jardim São Luiz, entre 2002 e 2005, com ao menos duas incursões de um mês em cada serviço, constituindo uma coleção de mais de uma centena de casos observados.

Adotou-se como método a análise do ritual de resolução de conflitos mobilizado pelos serviços de justiça, tomando como parâmetro de comparação a teorização do ritual judiciário oferecida por Antoine Garapon (1997). Para ele, o ritual judiciário encarna valores da república e da democracia e os representa na cena, no espaço, no tempo, nas vestimentas, na linguagem, nos papéis assumidos pelos atores, de modo a tornar eficiente a sua comunicação não racional. É uma análise que privilegia os papéis e as posições assumidos por quem dirige o ritual e pelos seus participantes, buscando conhecer as relações estabelecidas entre eles, as eqüidades e hierarquias produzidas, a produção e a circulação de verdades, a referência a leis, normas, valores e direitos. Procurou-se interrogar os rituais de resolução no modo como encarnam valores e criam efeitos de produção, reprodução e modificação de relações de poder; procurou-se ainda confrontar o desempenho e os efeitos do ritual à hipótese do papel pedagógico da expansão dos serviços de justiça no aprendizado da democracia e da cidadania e na consolidação de culturas jurídicas que rechaçam a violência como mecanismo de resolução de conflitos.

No caso da Polícia Civil, contempladas as diferenças observadas no modo de condução do ritual entre os operadores, a gestão informal de conflitos assenta-se numa prática costumeira da polícia, não prevista em lei, mas incorporada como sua função desde as origens dessa instituição no país. O ritual de resolução de conflitos é amparado nesses antigos costumes e numa ordem jurídica que não corresponde à ordem normativa constitucional. Por esse ritual, a polícia _ uma agência penal _ resolve disputas do campo cível utilizando métodos tipicamente policiais. Sua especificidade reside na possibilidade de manipulação do poder coercitivo do Estado, em expedientes típicos da repressão penal (como levantamento da ficha de antecedentes, condução coercitiva), para a resolução de conflitos econômicos e familiares, produzindo soluções impossíveis para o ritual judicial formal. Trata-se do exercício de um poder ambíguo, que permite a transição da negociação de uma regra do jogo tipicamente liberal _ em que as partes se representam como indivíduos livres e iguais negociando interesses pautados em direitos fundamentais _ para uma regra em que o Estado pode impor-se sobre o indivíduo limitando suas garantias de defesa e possibilidades de escolha. O jogo ambíguo pode desde sugerir o envolvimento da parte em pequenos delitos até efetivamente envolvê-la numa persecução criminal com privação de liberdade ou perda de outros direitos.

O trabalho da polícia preventiva não ocorre apenas devido à ausência de outras instâncias de acesso à justiça. O ritual policial de resolução informal de conflitos é peculiar, diferente dos rituais judiciários, por isso preferido por uma parcela de indivíduos e empresas na negociação de seus interesses. O referencial normativo que orienta a regulação policial dos conflitos também é específico, tendo sido constatado que a referência à lei e ao direito é raríssima _ e quando mobilizada, em geral, é no sentido de convencer as partes das vantagens do acordo informal. Trata-se de uma cultura jurídica específica, privilegiada para tratar, o mais freqüentemente, de conflitos da economia informal e da regulação de relações conjugais hierárquicas.

Observou-se que comerciantes, mesmo lidando com quantias altas, preferiram a ação da polícia à do Judiciário. Mesmo quando o conflito cível poderia ser reconhecido pela justiça, com um acordo entre iguais, a solução policial parece interessar a alguns litigantes, pois ela possibilita acionar o poder do Estado penal contra seus opositores, sem os riscos a que eles próprios estariam sujeitos ao situar-se também à margem da lei. Assim, os negócios firmados à margem da lei são resolvidos por negociações à margem da lei, de maneira que mesmo a intervenção do agente estatal na resolução do conflito não assegura a formalização dessa economia.

Mesmo para aqueles que não estão fora da legalidade, o poder ambíguo da polícia também pode ser interessante ao permitir expedientes de resolução proibidos à justiça formal, como a condução coercitiva do oponente. A justiça formal não tem o poder de mandar buscar o reclamado e trazê-lo à presença do juiz imediatamente, como pode fazer o delegado do CIC com auxílio da viatura. Daí a ambigüidade da polícia na resolução dos conflitos corresponder aos usos que a população faz desse serviço. As pessoas procuram a polícia preventiva porque vêem nela um espaço de resolução de conflitos melhor do que outros. Verifica-se o que Marcos Bretas (1996) já havia detectado a respeito da expectativa popular quanto ao poder ambíguo da polícia: as pessoas a procuram porque vêem a eficácia da sua atuação e porque desejam atrair seu poder na defesa de interesses particulares. Significa que o trabalho preventivo da polícia, de característica ambígua, se desenvolve ao largo das normas positivadas e não contribui para o reforço dessa ordem jurídica, não contribui para a comunicação das virtudes de um Estado de direito (ou de um direito liberal). Mas corresponde à expectativa dos que a procuram para a resolução de seus conflitos.

A polícia do CIC também é bastante procurada em conflitos nas relações conjugais e familiares, porém o tratamento parece ser diferente daquele descrito em relação às Delegacias de Defesa da Mulher (cf. Debert, 2006; Izumino, 2002). Nesses casos, a ocorrência ou a iminência de violência não é valorizada e sua repressão não é o principal objetivo do atendimento. Antes, têm relevo as questões patrimoniais envolvidas na dissolução do vínculo conjugal e o ajustamento das condutas a papéis de gênero hierárquicos _ em que o masculino é associado ao provimento material da casa e dos filhos, com a contrapartida do controle da vida sexual das ex-parceiras. Sendo mais um entre diversos canais de resolução possíveis, o ritual informal de resolução da polícia pode servir até mesmo como instância de renegociação de acordos já homologados pelo Judiciário. Houve casos de ex-maridos à procura da polícia para "denunciar" condutas inadequadas das ex-esposas no cuidado dos filhos, no momento em que elas iniciam novos relacionamentos. Podem ser acusações de negligência das mães ou de ameaça dos novos parceiros à integridade das crianças, às quais, em vez de procedimentos de investigação de crimes, a polícia preventiva propõe acordos de ajustamento de conduta por parte das mulheres, em geral, sugerindo a incompatibilidade entre a função maternal e a liberdade sexual, portanto a limitação dos direitos individuais.

Embora o trabalho preventivo da Polícia Civil seja preconizado como descriminalizador ou despenalizante, ele de fato amplia o escopo da ordem penal para a resolução de conflitos não tipificados nas leis penais, chamados no vocabulário policial de "menos sérios", "menos graves" ou "menores", representando uma modalidade de informalização da ordem penal. A ampliação da regulação penal recobre preferencialmente conflitos da economia informal e relações conjugais hierárquicas, as quais são normalizadas e reguladas. No que tange ao tratamento da violência física, especialmente a doméstica, não se verifica o mesmo interesse regulador. Essas relações violentas permanecem desregulamentadas, sendo o ritual preventivo da polícia nesses casos, além de desinteressado, quase ineficaz. Verifica-se um processo de dupla direção: máxima penalização das desordens econômicas e desregulamentação das relações de paternidade e do uso da violência física. O poder regulatório estatal parece muito pouco interessado em disciplinar essas desordens, abdicando mesmo de exercer-se.

Essas observações fazem constatar a existência de um pluralismo jurídico, isto é, várias instâncias de resolução de conflitos concorrendo entre si, com lógicas de negociação de interesses distintas, produzindo resultados de justiça diversos, em que os indivíduos com mais conhecimento, recursos e posições de apropriação de poder mais favoráveis _ capital social (cf. Bourdieu, 1989) _ usufruem melhor da liberdade de escolha num campo plural. O oposto ocorre com os que têm conhecimentos, recursos e possibilidades de intervenção mais restritas, com menores possibilidades de resistência à inversão da regra do jogo no decorrer da negociação.

Significa que, em vez de um campo de recomposição do equilíbrio em relações de poder, o ritual policial de resolução de conflitos tende mais a reforçar ou até a produzir o desequilíbrio, não sendo, portanto, um espaço privilegiado de construção de relações democráticas e igualitárias, nem tampouco um espaço de reforço das normas legais e constitucionais ou de disseminação da linguagem dos direitos.

O atendimento do Ministério Público também pode ser um espaço de resolução extrajudicial de conflitos entre ex-cônjuges, uma de suas principais demandas. Um circuito de instâncias de regulação vai se tornando necessário à medida que a regulação informal produz acordos precários que precisam ser constantemente renegociados. A diversificação dos canais, com a criação de serviços especiais, como delegacias da mulher, mediação alternativa, Juizados Especiais e os atendimentos do CIC, amplia as possibilidades de negociação de acordos entre os indivíduos; porém, como essas instâncias não são completamente hierarquizadas, sempre haverá a possibilidade de busca de outras instâncias para a renegociação de interesses insatisfeitos, não sendo interditada a rediscussão de uma decisão judicial na polícia ou no atendimento do promotor. Ainda que isso possa, de um lado, representar democracia no acesso à justiça, pode também, de outro, significar a ineficácia da fixação desses acordos informais.

Se na Polícia Civil a afirmação de relações de gênero hierárquicas reforça a submissão das mulheres aos referenciais de honra masculina, no Ministério Público a afirmação das hierarquias de gênero valoriza a autoridade materna e a obrigação masculina de cessão dos bens e proteção da prole. Como acordos fixados diante do promotor são também recorríveis, não é raro o seu descumprimento e a necessidade de renegociação na mesma ou em outra instância.

A precariedade dos acordos fixados é perturbadora para as partes, que muito freqüentemente reclamam a fixação de limites e direitos individuais, seja para si seja para os filhos, na dissolução dos casais. Mas o acesso à justiça pelos rituais informais conduzidos por promotores não representa a circunscrição individual de direitos universais e, via de regra, não esclarece a fronteira do direito, de maneira que interesses assegurados numa instância podem ser desconsiderados em outra. Raramente, durante os rituais de composição, são enunciados o conteúdo das leis e as justificativas legais das obrigações e dos direitos atribuídos aos indivíduos.

Aponta-se, assim, para um modelo de governança na distribuição da justiça no interior do campo estatal que não se vale do monopólio de circulação de normas jurídicas, mas da gestão de ordens jurídicas plurais, em que não há direitos universais, apenas arranjos particulares, válidos para situações concretas e temporárias. Esse modelo de governança, antes de esvaziar o sistema de justiça e interpor barreiras a seu acesso, opera para diversificar os canais e os rituais de composição de conflitos, repondo o circuito inesgotável de busca por novas negociações e novas técnicas de composição. Nesse modelo, alcança os melhores resultados o indivíduo que pode movimentar-se entre as diversas instâncias fragmentárias da justiça estatal, apto a recusar um tipo de solução e persistir na busca de seu melhor interesse. Ocorre que a vivência dos conflitos se dá em relações hierárquicas, seja de gênero ou do mercado, e nem todos os indivíduos litigam em posições equivalentes, com os mesmos conhecimentos e os mesmos recursos, e, dessa forma, a fragmentação da esfera jurídica estatal pode significar barreiras de acesso à efetividade dos direitos e reprodução das hierarquias.

As hipóteses de explosão de litigiosidade e aumento da judicialização dos conflitos cotidianos, sempre analisadas sob a ótica da demanda, podem ser discutidas também em função da oferta de justiça e dos percursos necessários quando os canais de acesso à justiça são plurais e fragmentados.

O Ministério Público também realiza atuações formais no atendimento do CIC, quando lhe cabe propor ações de defesa de direitos individuais, freqüentemente na área de família. Foi comum observar cenas em que, em vez de assumir a persecução do melhor interesse do indivíduo tal como caberia ao advogado, o promotor contrapõe-se ao pedido do cidadão, negando a existência do direito reivindicado. Na confusão de papéis entre fiscal da lei e defensor da sociedade, o promotor pode operar um obstáculo de acesso a direitos individuais, quando sua identidade profissional e jurídica se constrói na persecução dos abstratos interesses "da sociedade", e em nome deles o faz negar o acesso à apreciação judicial de uma série de demandas. Dessa forma, o atendimento ao público, sempre representado no discurso como uma forma de ampliação do acesso dos "hipossuficientes" à justiça, pode converter-se numa instância de decisão _ a menos que o cidadão demandante esteja bem informado sobre as leis e as funções dos operadores jurídicos no sistema judicial e conheça canais alternativos de acesso (situação na qual nem bem caberia considerá-lo hipossuficiente). Desenha-se mais uma vez o perigo de que a multiplicidade de canais de acesso num campo de gestão estatal de conflitos fragmentado possa estar a serviço da manutenção das assimetrias e das desigualdades, em vez de compensá-las.

No que tange ao acesso ao Poder Judiciário no CIC, interrogou-se a capacidade de o ritual de resolução do Juizado Especial Cível orientar-se exclusivamente pelo primado do direito estatal no campo plural de gestão de conflitos, diferenciando-se da fragmentação constatada nos rituais desempenhados pelos outros agentes jurídicos. Foi observado, no entanto, o desempenho de rituais diferenciados para conflitos envolvendo relações interpessoais ou entre indivíduos e empresas.

O desempenho do ritual informal dos juizados não é homogêneo e mostrou-se permeável à impregnação de categorias, lógicas e resoluções estranhas ao primado do direito e ao campo da cidadania. Desempenhado como um ritual judicial imperfeito, ele não pode assegurar o equilíbrio entre as partes em cenas judiciais desequilibradas, seja pela desigualdade de condições de litigação entre as partes (em razão de desigualdade na representação profissional, desigualdade de conhecimento, desigualdade de capital simbólico e produção de provas válidas), seja pela desigualdade entre a parte e o operador que dirige o ritual (quando este força uma solução, assume a tutela da parte, argumenta pela limitação do acesso à justiça).

Nos conflitos opondo indivíduos e empresas, não é incomum haver na audiência um cidadão que se confronta com um preposto especializado e dois ou mais advogados a assisti-lo. Não é raro ver nesses casos o juiz ou o conciliador propor à parte mais fraca a desistência da litigação em razão da desigualdade entre os indivíduos pobres e as grandes empresas; por meio da denúncia da desigualdade, abertamente forçam os indivíduos desassistidos de advogados à aceitação de acordos, utilizando argumentos de que a justiça é lenta, cara e suscetível à influência do poder econômico. O reconhecimento da desigualdade, assim, não leva a instância judicial a compensar as diferenças entre as partes, mas a reforçá-la.

Quando os conflitos envolvem o consumo de serviços essenciais, como energia, telefonia e educação, o ritual informal cível, por meio da individualização das causas, impede o reconhecimento de demandas coletivas: mesmo tendo o acesso à justiça ampliado para as suas reclamações, os usuários que não conseguem saldar suas contas não encontram no Judiciário um espaço para discutir a regulação social da economia, mas apenas mais um canal de negociação individual com as empresas, mais poderosas economicamente, melhor assessoradas juridicamente e com a prerrogativa de produzir provas técnicas _ já que o indivíduo não pode auditar os sistemas que geram as contas de consumo.

Ainda quando desempenha equilíbrio formal, o ritual cível privilegia a resolução de questões econômicas nos conflitos interpessoais, silenciando, ignorando ou negando a possibilidade de emergência da violência como desdobramento do conflito, contrariando as expectativas do discurso preventivo que legitima a existência do juizado cível como espaço de entendimento, consenso e racionalidade. No ritual cível não se trata de processar simbolicamente a violência a fim de impor sobre ela a racionalidade ou a docilização; trata-se apenas de postular sua inexistência e de, com isso, desresponsabilizar-se por ela. No tocante à polícia, agência penal, também se verificou a ignorância da violência e o predomínio da gestão da economia informal. Assim, se há coerência na gestão dos conflitos observada no CIC, ela está no máximo interesse pela regulação econômica e desinteresse pela proteção física dos cidadãos, uma vez que a agência penal pode tratar de problemas cíveis e o ritual cível é blindado às questões do uso da violência.

Nos juizados, o ritual é orientado pela lógica patrimonial própria das grandes corporações, isto é, a negociação para o ressarcimento do valor monetário com baixo custo judicial. Essa lógica, quando aplicada aos conflitos individuais ou entre indivíduos e empresas, silencia a porção moral do conflito e da aplicação da justiça. Reduz a litigação à discussão de uma quantia, silenciando as questões éticas e valorativas. A cena restringe-se a dois indivíduos deliberando pela escolha racional. Daí limitar-se a efetivação da hipótese ético-pedagógica, ligada à transmissão de valores da lei, da moralidade cívica embutida no primado do direito, do balizamento da resolução de conflitos, por uma ética pública e democrática. A ética predominante é a da racionalidade econômica, transmitida também pela disciplina do consumo. Ao individualizar demandas, o ritual informal judiciário interdita a discussão de regras de regulação social da economia, fazendo recair exclusivamente sobre o indivíduo a responsabilidade pelo consumo, mesmo de serviços essenciais. Ao vedar a discussão dos méritos, isto é, das motivações morais da inadimplência de contas de consumo, impede-se o reconhecimento da desigualdade expressa no desemprego ou na pobreza.

O ritual judiciário informal tem dificuldades para assegurar o equilíbrio, a igualdade e o primado do direito na resolução de conflitos, principalmente quando há desigualdade entre as partes. Todavia, quanto mais se aproxima de um ritual judicial clássico _ o que geralmente é favorecido pela presença de advogados assistindo as duas partes _, o ritual informal responde melhor às expectativas de igualdade e legalidade. Constituída tanto pelo direito como pelo ritual, a justiça, clássica ou informal, pode sacralizar a desigualdade entre os indivíduos e os grupos quando se afasta das exigências de eqüidistância entre partes. Dessa forma, apenas recusar o ritual judicial clássico em razão dos vieses que produz e das desigualdades que pode perpetuar não é suficiente para assegurar a democratização do acesso à justiça e a efetivação da igualdade jurídica. Os rituais informais, disseminados num campo de gestão de conflitos fragmentado, no qual circulam ordens jurídicas diferentes, disputadas entre culturas político-jurídicas contraditórias (o que chamamos de pluralismo jurídico), facilmente convertem-se em espaços de reprodução da desigualdade, afastando-se da referência universal e igualitária contida na construção da cidadania e em seus corolários legais.

A análise da gestão dos conflitos pelos serviços de justiça nos postos do CIC revelou a pluralidade dos rituais de resolução mobilizados e das juridicidades por eles reforçadas. A nova organização da oferta de serviços de justiça na periferia, pretendida pelos juízes reformadores e seus interlocutores _ que ramificaria pela cidade o primado do direito, dos direitos humanos e da cidadania, o tratamento igualitário diante das leis e da justiça e o primado da liberdade civil, contrariando a lógica do mercado e do uso privado da violência _, não parece estar plenamente materializada nos rituais plurais observados ao longo dos últimos anos. Estaria a luta pela expansão do primado do direito fadada ao fracasso? Seria ela anacrônica numa sociedade que anseia por métodos alternativos de resolução de conflitos e neles deposita expectativa de democracia e liberdade? Ou seria anacrônica num cenário histórico em que a informalização dos ritos e dos procedimentos se impõe como medida necessária da expansão dos serviços? Seria ela elitista numa sociedade que desenvolve nichos plurais de ordens jurídicas paralelas, preferidas pelas partes, oferecendo soluções rápidas, baratas e próximas do senso comum?

O pluralismo de rituais e ordens jurídicas pode indicar uma forma de democracia no acesso à justiça, com rituais e regulações para todos os gostos e com os mais diversos efeitos, liberando os indivíduos para o trânsito pelas instâncias de regulação em busca do melhor resultado. Mas a liberdade de escolha é efetivamente limitada por desigualdades de poder nas relações e diferenças de conhecimento do complexo campo jurídico, as quais impedem que todos possam manipular igualmente os múltiplos canais de acesso segundo seus interesses e convicções. Desse ponto de vista, a reivindicação de um primado do direito e de uma ordem jurídica centralizada não parece anacrônica ou conservadora, mas uma luta política entre universalidade e particularismos, numa sociedade em que os rituais de igualdade são escassos e os de diferenciação abundantes (cf. DaMatta, 1979).

Outro aspecto a se considerar na análise dos rituais de resolução de conflitos refere-se à produção de diferenças que se marcam no corpo dos participantes, diferenciando-os entre autoridades e sujeitos de suas decisões. Múltiplos elementos produzem essa diferenciação, considerada indispensável para a sua eficácia simbólica. Mas não é simplesmente a produção da diferença entre operadores jurídicos e moradores da periferia que importa analisar, mas as barreiras para a dissolução dessa diferença na vida cotidiana e a maneira como as hierarquias do próprio campo jurídico ficam marcadas nos corpos de seus operadores, criando efeitos de legitimação diferenciados nos rituais que conduzem, cujas eficácias são disputadas no campo de gestão estatal dos conflitos.

Constata-se a forte constituição de uma corporalidade dos operadores da justiça, que é tanto mais rígida como maior a posição ocupada na hierarquia das profissões e funções jurídicas, em que a construção corporal de juízes é mais demarcada do que a de advogados ou de delegados. A essa corporalidade corresponde um código de vestimenta, de linguagem, de postura, que demarca uma identidade de classe, de gênero e racial (o que quer dizer que os juízes se identificam a um estrato social de elite, no qual as mulheres são minoria e estão em posições subalternas, e a diversidade racial é reduzidíssima).

Em razão dessas hierarquias e dos efeitos que produzem sobre o ritual, pode-se compreender que os juízes utilizem uma linguagem muito mais formal e especializada, repleta de categorias com significados jurídicos peculiares, e que policiais civis conduzam rituais com linguagem mais próxima do uso comum, o que afeta diretamente a qualidade jurídica das soluções produzidas nos diferentes rituais. Como a codificação do ritual judiciário é muito mais precisa, incluindo a vigilância da vestimenta e da postura, e o ritual policial é mais informal e diversificado, compreende-se que a presença das armas dos policiais à cena seja considerada importante para assegurar sua eficácia, enquanto os juízes, mais protegidos pelo ritual, prescindam desse tipo de demonstração de força.

As críticas dos reformadores ao formalismo da justiça tangenciavam a construção dessas diferenças quando se falava em "aproximar" o juiz da realidade do "homem comum". Por isso a pesquisa procurou rupturas na construção dessas diferenças entre os operadores que vão à periferia para lidar com as classes populares. Se essas rupturas existem, são muito sutis e seus efeitos sobre as disputas do campo jurídico são lentos, pois esses postos de trabalho continuam os menos prestigiados _ e há vinte anos eles sequer existiam. Os cuidados de separação e diferenciação entre os agentes públicos e os cidadãos comuns, abundantemente produzidos pelos procedimentos, ritos, vestimentas, linguagem, armamento, viaturas, são constantes e rigidamente observados, conforme a hierarquia das profissões jurídicas, também no espaço do CIC. E repercutem na reprodução da diferença entre os corpos circunscritos dos operadores jurídicos, constantemente protegidos pelos ritos de separação, e os corpos vulneráveis, incircunscritos (cf. Caldeira, 2000), dos cidadãos comuns da periferia, por meio da negação sistemática da gestão estatal da violência privada, característica da gestão dos conflitos encontrada no CIC.

Por isso, conclui-se que a ampliação da oferta de serviços de justiça diversificados, informais, sob o modelo da governança pelo pluralismo jurídico, expande o escopo da gestão estatal dos conflitos, mas não necessariamente significa a expansão do Estado de direito (como haviam proposto os reformadores) ou a expansão de rituais de resolução pautados na igualdade de tratamento diante das leis. O que repõe em outros termos o debate sobre reforma da justiça e democracia.

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