Pensando: A voz na cena teatral contemporânea

A voz na cena teatral contemporânea
A voz na cena teatral contemporânea

Fonoaudiologia

16/04/2014

Ao se refletir a partir da perspectiva metafísica da palavra é possível conjecturar a voz com outras funções na dramaturgia da cena, funções que vão além das características semânticas que ela assumiu por longos anos.


Assim, baseando-se nos comportamentos ritualísticos do teatro, na filosofia de estudiosos, como Antonin Artaud, criador de “Teatro da Crueldade”, e no hibridismo de linguagens, que operam de forma independente na cena contemporânea, é possível pensar a voz como um corpo sonoro performático, que age sobre o sensível e se materializa como elemento de construção cênica, fazendo-se entendida, mesmo que, sem a literalidade das palavras.


Não é de hoje que a voz recebe atenção por parte dos investigadores das artes cênicas. É possível percorrer a história e encontrar muitos estudiosos do teatro que se atentaram para a voz em cena, como por exemplo, Grotowski, Stanislaviski, Barba, Artaud, entre outros. Todos se preocupavam com a estética da voz em cena e buscavam meios técnicos para alcançar, também pela voz, seus objetivos artísticos.


É comum, quando se pensa sobre voz no teatro, relacionar seu uso, imediatamente a sua eficácia semântica para com o texto dramático, ou seja, uma voz que acentua as condições psicológicas, emocionais e sociais do personagem teatral, servido como amparo para as intenções do texto escrito.


Porém, como ator, fonoaudiólogo, estudante de teatro e acima de tudo um interessado pela voz e suas possibilidades dentro do que chamamos de teatro contemporâneo, comecei a ficar intrigado sobre como a voz vem sendo tratada dentro do teatro, sobretudo dentro da formação dos atores.


Os caminhos percorridos pela cena contemporânea, não estão apenas ligados ao fato de uma reformulação da escrita, mas sim à ressignificação dos elementos teatrais, que exigi muito mais presença do atuante, do que sua representação. Esse é o lugar onde as manifestações, os impulsos de energia, a experiência partilhada são mais valiosas que as significações e as informações (LEHMANN, 2007).


Deste modo, como descrito por Lehmann, a partir do momento que, o teatro, não se preocupa mais com a representação, rompendo com as convenções do teatro ortodoxo, permite-se, então, uma incorporação extrema de outras áreas. A magia, os rituais, as estéticas vanguardistas, etc., são absorvidas, sem limites, para o processo de atuação (COHEN,2011).


As influências desses processos, acima citados, possibilita um exercício de desestabilização de conceitos e referências, tornando viável a extração de impulsos criadores. Um bom exemplo seria a pesquisa a partir do ritual, que segundo Schechner, é um grande transgressor dos formatos cotidianos.


Assim, com as constantes mudanças ocorridas no fazer teatral, a voz assume um papel que vai além da função de dar coerência para o diálogo. Ela se torna, no teatro contemporâneo, ação performática, ou seja, se materializa em expressão cênica, onde os timbres, melodias e sonoridades podem ser reconhecidos como uma linguagem independente que age sobre a cena.


Nesse lugar, onde o teatro não é mais “textocentrista” (Segundo Godoy & Souza, em finais do século XIX e início do XX, o teatro passou a sofrer uma crescente recusa ao textocentrismo enquanto pilar da arte dramática.) e as linguagens se convergem em uma polifonia significante, a voz assume sua expressividade para além da palavra e sua escritura.


Imerso nesse universo, o ator precisa pesquisar seus movimentos vocais, de tal forma, como pesquisa seus movimentos corporais. É permitido, a ele, criar novas melodias, encontrar suas variações de frequência (graves e agudos) e criar partituras vocais capazes, até mesmo, de serem catalogas para futuras utilizações.


Parafraseando Artaud, é preciso tirar as amarras que enfurnaram as palavras em seus significados. É preciso explorar a voz, enquanto som, para atingir o outro pelo sensível, falando direto ao inconsciente.


"É fazer com que a linguagem sirva para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo, excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividi-la e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta absoluta e devolver-lhe o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poder-se-ia dizer alimentares, contra suas origens de animal acuado, é, enfim, considerar a linguagem sob a forma do encantamento." (ARTAUD, 2006: p. 47).


Portanto, vivemos um momento, no teatro, de ampliação da pesquisa vocal. Observando como a cena contemporânea se configura de forma mais aberta à experimentação, é permitido e necessário um mergulho nos processos de construção de uma voz que se materialize como linguagem na dramaturgia cênica.


“No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos, antes de tudo, de um teatro que nos desperte: nervos e coração.” (ARTAUD, 2006).



Referências Bibliográficas:

ARTAUD, A. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 173 p.

ARTAUD, A. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2004. 290 p.

COHEN, R. Performance como Linguagem. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. 219 p.

FERNANDES, E. A voz e o corpo: linguagem, estética e complexidade para uma reflexão no Teatro de AntoninArtaud.
EccoS Rev. Cient., UNINOVE, São Paulo: (n. 2, v. 3): 2001; 63-81.

GODOY, D. M. A. SOUZA, D. T. Do Ator ao Espectador: A voz que toca. Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume4/numero1/cenicas/doatoraoespectador.pdf acesso em 10 de junho de 2013

LEHMANN, H. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac &Naify, 2007.

LIGEIRO, Z. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad, 2012.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Junio Machado Duarte

por Junio Machado Duarte

Mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes - UFF - onde desenvolve uma pesquisa sobre a performance vocal na cena teatral contemporânea, também formado em Artes Dramáticas pela Estadual de Teatro Martins Pena/RJ (DRT - 46124/RJ) e fonoaudiólogo graduado pela Faculdade Redentor (CRFa1 - 13800/RJ). Membro do Núcleo Arte da Voz, na cidade do Rio de Janeiro.

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