Uma abordagem fonoaudiológica da Dislexia

A dislexia foi considerada como constitucional ou genética
A dislexia foi considerada como constitucional ou genética

Educação e Pedagogia

14/01/2013

Apesar de ser o dia-a-dia da clínica fonoaudiológica, o tratamento dos distúrbios do aprendizado da leitura e escrita implica num grande desafio.

A escrita é uma das formas mais elevadas da linguagem, que vai além da decodificação gráfica, tarefa por si só extremamente complexa. Implica na compreensão de que conjuntos de traços visuais possuem valores simbólicos. Discorrer sobre suas alterações, talvez seja a tarefa mais árdua no campo da Fonoaudiologia, considerando as controvérsias terminológicas e os diferentes princípios das linhas de tratamento. Sem mencionar, ainda, a grande dificuldade no estabelecimento dos terrenos das áreas afins: pedagogia, psicologia, psicopedagogia e fonoaudiologia, papéis que muitas vezes se confundem, dependendo da concepção que se tem do problema.

Partindo destas colocações, seria pretensioso demais desejar que esta abordagem no curso de extensão em dislexia fosse decisiva para o estabelecimento de verdades imutáveis sobre o assunto. Gostaríamos, contudo, que, a partir da discussão de alguns conceitos, pudéssemos possibilitar uma reflexão crítica sobre os critérios de diagnóstico e tratamento dos distúrbios de leitura e escrita.

Em relação ao aprendizado da leitura e da escrita, a necessidade de um processo diagnóstico é determinada pela existência de sintomas e sinais de alterações que comprometam, num sentido estrito, a forma, e, num sentido amplo, a funcionalidade da comunicação gráfica.

O rumo deste diagnóstico será determinado a partir da concepção que se tem de distúrbio.

Assim, de maneira simplista, pode restringir-se a comprovação da presença de trocas grafêmicas, tão conhecidas e freqüentes, e da posterior determinação da causa e da natureza das mesmas. Entretanto, sem ignorar a presença destes sintomas clássicos, a partir da consideração das dimensões biológica, cognitiva e social da aprendizagem, o diagnóstico pode seguir caminhos mais reflexivos, ocupando-se em verificar o real valor simbólico da leitura e da escrita. Assumem no momento em que afloram as alterações que motivaram o processo.

As controvérsias diagnósticas foram geradas a partir das diferentes concepções de distúrbio de leitura e escrita. Os primeiros relatos literários sobre o assunto tiveram seu início em meados do século XIX, época em que os transtornos da linguagem foram relacionados aos comprometimentos do hemisfério cerebral esquerdo. Nesta época, em função das inúmeras descrições das alterações da linguagem em afásicos, as dificuldades de leitura e escrita apareciam vinculadas à presença de alterações orgânicas, sendo encontradas em diversos trabalhos literários com a denominação de alexia, dislexia e cegueira verbal.

No início do século XX, umas séries de estudos fazem referências a um novo quadro clínico, dissociado dos quadros afásicos, que a princípio denominou-se cegueira verbal congênita.

Somente após a 1ª Grande Guerra, surgia a convicção da existência de perturbações do aprendizado acadêmico. Sob o ponto de vista tradicional, estes distúrbios específicos de aprendizagem foram rotulados como dislexias, disgrafias e discalculias.

Posteriormente, a dislexia foi considerada como constitucional ou genética, sendo denominada dislexia específica de evolução.

A dislexia também esteve relacionada a algumas das chamadas síndromes psicomotoras, pelo fato de muitas vezes encontrar-se associada a alterações comportamentais como hiperatividade e outros similares.

Na tentativa de descaracterizar um quadro sindrômico, partindo ainda de uma visão organicista, muitos autores convencidos da complexidade do problema adotaram um termo mais amplo – distúrbio de aprendizagem – no qual a dislexia pode ser incluída.

Dentro deste prisma, JOHNSON & MYKLEBUST observaram diferenças nas manifestações do distúrbio, encontrando crianças com deficiências no aprendizado da leitura ou no uso da linguagem escrita, que revelavam outras alterações como hiperatividade, deficiências na aquisição da palavra falada, em soletração. Também no cálculo, julgamento de distância, tamanho, altura e comprimento, sem que pudessem, entretanto, determinar sintomas comuns que caracterizassem uma única síndrome.

Pouco depois, QUIRÓS & SCHRAGER, que anteriormente adotavam o termo dislexia, passaram a valorizar os propósitos práticos do prognóstico e do tratamento dos distúrbios de aprendizagem, classificando-os clinicamente como primários e secundários.

Nos distúrbios primários estariam comprometidas as aquisições especificamente humanas: língua, linguagem, leitura, escrita e cálculo matemático. Os distúrbios primários de aprendizagem seriam resultados de compensações de disfunções cerebrais e de deficiências perceptuais (especialmente auditivas e visuais) ou de deficiências nas aferências posturais (especialmente vestibulares e proprioceptivas).

Nos distúrbios secundários de aprendizagem, os aspectos específicos seriam consequências de anormalidades sensoriais, neurológicas, psíquicas e circunstanciais (quadros anteriormente descritos como: danos cerebrais, paralisias cerebrais, retardos mentais, desajustes sociais, etc.).

Paralelamente à visão organicista dos autores clássicos, a teoria linguística de Chomsky veio dar origem aos princípios da psicolinguística contemporânea, interferindo na visão que até então se tinha da aprendizagem humana. Tais princípios começaram a promover mudanças no entendimento dos processos de aquisição da linguagem oral na criança e consequentemente nos processos do aprendizado da leitura e escrita. Dentro desta concepção, vários autores passam a levar em conta não somente as condições internas de aprendizagem, representadas pela integridade anatomofuncional e pelas condições cognitivas, mas também a valorizar as condições externas, representadas pelo campo de estímulos recebidos. Desta forma, o aspecto social da aprendizagem passa a ser a tônica da mudança de postura frente ao diagnóstico do que, até então, era tido, indiscutivelmente, como uma patologia da linguagem.

A partir de então, foi estabelecida a divergência entre as diferentes linhas diagnósticas, sendo que, cada qual, dentro de sua concepção, passou a valorizar aspectos individuais para a determinação do distúrbio ou não-distúrbio.

Considerando que na análise de uma população, os achados mais freqüentes determinam à normalidade, e, tendo em vista os atuais padrões sócio-econômico-culturais da população brasileira, poderíamos afirmar que, dentro da concepção tradicional de distúrbio do aprendizado, no nosso país o normal é apresentar alterações de leitura e escrita. Por esta razão, a visão do aprendizado não pode ser genérica para uma população. Apesar de fazer uso de uma mesma língua e de representá-la por meio de um mesmo código gráfico, apresenta particularidades quando se levam em conta expectativas, costumes e necessidades individuais, dependendo das comunidades nas quais se integra.

A decisão do que denominar distúrbio do aprendizado da leitura e da escrita, portanto, deveria partir do conhecimento real das condições individuais de aprendizagem.

A crítica aos atuais modelos diagnósticos reside no fato de que, os conhecimentos adquiridos sobre os distúrbios do aprendizado da leitura e da escrita no decorrer do século foram sendo substituídos a partir da consciência de novos caminhos. A somatória de tais conhecimentos deve servir como fundamento para uma pesquisa que leve em conta todos os aspectos da aprendizagem, para que não se corra o risco de mais uma vez determinarmos uma “síndrome”, seja ela orgânica ou social, para a qual não tenhamos respostas eficientes.

O aprendizado da leitura e da escrita está vinculado a um conjunto de fatores, adotando como princípios o domínio da linguagem e a capacidade de simbolização. A análise pormenorizada das manifestações de um suposto distúrbio deve pautar-se pelas condições internas e externas necessárias ao desenvolvimento deste aprendizado.

Podemos dizer que as condições internas de aprendizagem definem o sujeito como um organismo, cuja integridade anatomofuncional possibilita a percepção dos estímulos e um comportamento adequado frente aos mesmos, de acordo com as situações em que se apresentam.

Por outro lado, as condições externas definem o campo de estímulos recebidos, onde o meio ambiente representa um papel fundamental no fornecimento destes estímulos, de forma que os mesmos sejam suficientes para garantir respostas ativas por parte do sujeito.

A análise da combinação dos fenômenos biológicos e ambientais fornece subsídios para uma investigação das variáveis originárias do distúrbio. Considerando que de início o diagnóstico é sempre uma hipótese, levantamos alguns fatores prováveis deste distúrbio, relacionando-os às condições internas e externas de aprendizagem, podendo evidenciar desde uma simples alteração na qualidade do aprendizado específico da leitura e da escrita, ou, de maneira genérica, revelar desvios nos processos de aprendizagem. Dentre suas manifestações secundárias, revelariam um distúrbio no aprendizado da leitura e da escrita.

A) Integridade motora – A integridade do movimento é determinada por um processo seqüencial e seriado de ações neuromusculares que levam a uma mudança progressiva e gradual de posturas, posições e atitudes no espaço e no tempo. Lesões, desordens corticais de origem genética, neonatal, traumática ou pós-encefálica podem determinar o aparecimento de alterações motoras táxicas ou práxicas ou perceptuais gnósicas, que por vezes comprometem os processos cognitivos em diferentes graus, interferindo no desenvolvimento e abrangência da linguagem e conseqüentemente nos processos de leitura e escrita.

B) Integridade sensorioperceptual – Por meio da integração sensorial a informação do meio ambiente é organizada e interpretada para o planejamento e execução da integração do indivíduo com este meio. Toda a integração passa de aferências sensoriais gerais para o específico indo dos mecanismos somestésicos e vestibulares, responsáveis pela regulação integrativa postural e sensorial, aos mecanismos reguladores da audição e visão.

Desta forma, distúrbios vestibulares ou distúrbios auditivos e visuais periféricos ou centrais podem comprometer essa integridade. Dentro deste aspecto, maior destaque tem sido dado à audição, vista como o canal principal de recepção de informações linguísticas. A audiologia tem reconhecido que não somente as alterações condutivas e neurossensoriais determinam distúrbios de linguagem e aprendizagem, valorizando também o processamento das informações no decorrer da via auditiva. As alterações do processamento auditivo central têm sido amplamente estudadas, visto que caracterizam muitas crianças que manifestam distúrbios de linguagem e do aprendizado da leitura e da escrita.

Estas alterações têm sido essencialmente caracterizadas por um rendimento pobre em atividades que implicam em atenção, discriminação, identificação figura-fundo, memória, análise-síntese, seqüências temporais e generalizações auditivas. Os exames audiológicos são imprescindíveis nas alterações de linguagem, assim como os testes específicos do processamento auditivo vêm sendo desenvolvidos e aplicados em maior escala nas alterações do aprendizado.

C) Integridade sócio-emocional – Possibilidades reais que o meio oferece em termos de quantidade, qualidade, frequência dos estímulos. Interessam nesse aspecto as características do ambiente, moradia, relações familiares, a escola e demais comunidades que o indivíduo freqüenta e o acesso aos canais de informação e ao lazer.

A integridade sócio-emocional será estabelecida a partir das expectativas do indivíduo frente às relações travadas nos diferentes grupos sociais, procurando verificar o que o meio oferece no que concerne a suas ideologias e valores, não somente relacionados à sua classe social, mas a seu grau de consciência e participação.

Para a análise da aprendizagem e do aprendizado específico da leitura e da escrita importam, portanto, não somente os aspectos individuais de cada um dos ambientes, porém suas inter-relações em termos de adequação com as expectativas e costumes primários do sujeito. Incidem sobre a análise do aprendizado a motivação do indivíduo e os meios utilizados para sua estimulação.

Nesse sentido, as alterações do aprendizado relacionam-se à não-identificação do indivíduo com o meio e com a forma que este lhe transmite informações.

Levando-se em conta as condições internas e externas de aprendizagem e a partir das considerações iniciais do que devemos conceber como distúrbio, a análise pormenorizada das manifestações do mesmo torna-se indispensável para um diagnóstico seguro. O aprendizado da leitura e da escrita está vinculado a um conjunto de fatores, adotando como princípios o domínio da linguagem e a capacidade de simbolização.

A aquisição de cada sistema de símbolos pressupõe uma capacidade para integrar experiências e perceber suas representações não-verbais de maneira a diferenciá-las por meio de um ou outro símbolo, e a partir de então atribuir-lhes significado e memorizá-los.

Uma reflexão sobre a complexidade deste processo possibilita a compreensão da aquisição de um código gráfico pela criança. Justifica inclusive a determinação de sintomas comuns que caracterizam os quadros sindrômicos anteriormente descritos.

Já que o desenvolvimento da linguagem é o ponto de partida para a simbolização, qualquer interferência em seu caminho poderá representar uma ameaça para o aprendizado do código gráfico, por essa razão que as manifestações de alterações nos aspectos cognitivos da linguagem têm sido tão valorizadas.

Para determinarmos “o quê”, “quando” e “quanto” tem de distúrbio, precisamos entender que as frequentes alterações de esquema corporal, localização espacial, temporal e lateralidade citada na literatura especializada no assunto são manifestações de alterações no processo de desenvolvimento da linguagem e como consequência, no aprendizado específico da leitura e da escrita. Sem perder de vista que estes aspectos da linguagem são de fundamental importância na avaliação. Muitas vezes, o ponto de partida para tratamento, não podemos ignorar que a suspeita de um distúrbio do aprendizado baseia-se nos parâmetros de uma leitura-escrita ideal, cuja organização seja determinada pela perfeição da forma e do conteúdo gráfico.

No que concerne à leitura, o respeito à forma estará representado por uma adequada decodificação dos símbolos gráficos em seqüência, respeitando-se o ritmo determinado pelos sinais de pontuação. A compreensão do significado do conjunto dos elementos decodificados determina a adequação do conteúdo.

Já em relação à escrita, a adequação da forma diz respeito à emissão gráfica de palavras, respeitando-se a relação entre os fonemas da língua e sua representação grafêmica de acordo com as regras ortográficas. Além disso, implica numa organização no espaço-papel, determinada tanto por sua sequência de acordo com a estrutura gramatical, quanto pela adequação da forma e tamanho dos grafemas, da distância entre os mesmos e da direção e sentido de seu traçado. A coerência na elaboração gráfica indica a adequação do conteúdo.

Considerando que o avaliador deve levar em conta os diferentes momentos do aprendizado da leitura e escrita, elencamos a importância das principais manifestações, citadas no início do curso, que devem ser valorizadas para a pesquisa de um possível distúrbio.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


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