O pior cego é aquele que não quer ver e compactua com a cegueira social

História de superação
História de superação

Educação e Pedagogia

19/08/2013

1 Introdução
Conheci Ivani em setembro de 2005 quando assumi a gestão de uma escola para pessoas com deficiência. Ivani tinha uma salinha muito apertada onde transcrevia textos científicos para o Código Braille para a secretaria de educação e atuava também como massoterapeuta. Mesmo assim, a maioria dos profissionais demonstravam desdém quanto a Ivani. Era como se todos, inclusive a própria prefeitura estivessem fazendo um favor para “a coitada da ceguinha”. Ivani ganhava menos de um salário mínimo por mês porque fazia parte de um programa social desenvolvido pelo município para pessoas desempregadas. Ivani não participava das atividades realizadas na escola antes da minha chegada. Com o passar dos dias fui aproximando-me. Ela ensinou-me o Braille e em troca eu lhe ensinava inglês. Fazíamos isso na salinha dela sempre “roubando um tempinho do almoço”. De repente, parecia que nos conhecíamos há anos! E a cada dia, juntas, íamos aprendendo mais, porém, a maioria das pessoas que conviviam com ela há muito mais tempo do que eu não conseguiam ou não queriam enxergar o quanto Ivani poderia contribuir para o trabalho de todos. Alguns, demonstravam não querer assumir o potencial de Ivani, como se isso, os “ameaçasse” de alguma maneira.




2 Objetivo
Este trabalho busca tornar público a trajetória repleta de persistência e teimosia de uma pessoa cega para realizar seu grande sonho: concluir os estudos e inserir-se no mercado de trabalho. Desvelar a luta para ser reconhecida enquanto um ser da espécie humana, ou seja, protagonista de sua própria história, capaz de contribuir para a transformação social. Além disso, dar visibilidade e voz a uma pessoa que se recusa a fazer parte das estatísticas dos excluídos da história.


3 Justificativa
Percebi que Ivani tinha muito para ensinar e aprender e prometi a mim mesma que na primeira oportunidade que eu tivesse contaria ao mundo sobre suas potencialidades! Ivani e eu não iremos enriquecer e nem ganhar fama (também não é esse nosso intuito), mas mostrar para a sociedade que existem pessoas cegas e que “se viram”, vivem e não atrapalham a vida de ninguém, tampouco, fazem-se de vítima do sistema. Ivani iniciou os estudos na educação básica em 1971 e o concluiu em 2003. Atualmente cursa o ensino superior. As dificuldades impostas pela família, pelo sistema educacional e pela sociedade conjuntamente com o não cumprimento das legislações vigentes acerca do direito à educação de qualidade e sem discriminação, quase permitiram que o ser humano em questão desistisse de algo que é seu por direito: o acesso a educação escolar de qualidade e ao trabalho digno. Até hoje (2009) as instituições de ensino, sejam elas públicas ou privadas, de nível básico ou superior, não contemplam as necessidades dos alunos, principalmente quando este apresenta alguma limitação; seja física, cognitiva ou sensorial.


4 Revisão Bibliográfica

Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente em lugares públicos (GOFFMAN, 1975). Percebe-se então, que pessoas com deficiência sempre existiram na história da humanidade. No caso de pessoas cegas e com deficiência visual, no Brasil, inicia-se um movimento especificamente durante os anos de 1854 e 1857, com a fundação do Instituto dos Meninos Cegos, atual Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro (LEAL, 2008), que proporciona maior visibilidade a estas pessoas. Inúmeras leis garantem os direitos da pessoa cega e com deficiência visual mas na prática a legislação se encontra num lento processo de efetivação. Porém, além dos princípios legais, ocorre que a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais (GOFFMAN, 1975). Quem não se enquadra é recriminado, excluído. Ao elaborar critérios para a “normalidade” a própria sociedade revela que o difícil, quando nos relacionamos com uma pessoa com deficiência, é a deficiência em nós, não nela (MACEDO, 2005). Sem dúvida alguma, a pior sociedade é aquela que não quer enxergar as contribuições oriundas das diferenças.

5 Metodologia
Analisar os sentimentos da pessoa estigmatizada por si e pelos outros. É isto o que objetiva o sociólogo Goffman em sua obra Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1975). Para Goffmann estigma “é na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, embora proponha a modificação desse conceito, em parte porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito” (p.13). O autor aborda diversas estratégias que os estigmatizados utilizam diariamente para lidar com a informação que passa para o outro sobre si mesmo, a rejeição social, o descrédito devido a deficiência e a luta incessante na construção da identidade social própria. Não omite também as relações sociais estabelecidas entre “normais e anormais” na vida cotidiana. Nessas relações permite-se um novo olhar para o estigmatizado porque uma vez este sendo aceito pela sociedade – e querendo isto também - inicia-se um processo de desconstrução histórica do imaginário acerca da pessoa com deficiência ou “defeito” por parte do indivíduo que até então se considerava “normal”. Para melhor sentir a teoria nada como vivenciar, logo, uma história de vida inspirou uma maior reflexão sobre o estigmatizado.


IVANI: o pior cego é aquele que não quer ver e compactua com a cegueira social.
Ivani, filha dos pernambucanos Edgar Francisco e Ivonete Bonfim, nasceu numa gelada e chuvosa manhã de segunda-feira paulistana em 08 de julho de 1963.


Primeiro ano escolar (1971)
Ivani inicia sua vida escolar aos sete anos e meio de idade na escola estadual "Ataulfo Alves", no bairro de São Miguel Paulista. A escola exigia uniforme: camiseta branca com o emblema da escola no bolso e uma saia ou calça de um xadrez branco e cinza, meias brancas e sapatos pretos. O horário de entrada era às 10h e o de saída às 13h30'.

O primeiro ano não foi tão difícil para Ivani porque possuía um resíduo visual que ainda permitia ver cores, objetos grandes ou com forte contraste. Os colegas também compreendiam-na (ninguém percebia a deficiência). A professora era Dona *Margarida (*nome fictício): loira e sempre usava uma fita vermelha nos cabelos. Além disso, era profissional dedicada e carinhosa e Ivani, aluna muito esforçada. O lugar dessa garotinha era na terceira carteira da segunda fileira e a maior dificuldade era quando o lápis ou a borracha caía no chão - sempre pedia para que alguém pegasse pois não conseguia enxergar.

Até então pode-se dizer que Ivani era “uma aluna normal” porque conseguia acompanhar o ritmo da maioria. Ritmo este exigido pela sociedade.


A hora do recreio

O momento predileto da maioria das crianças era também legal para a pequena Ivani. O lanche era sempre o mesmo: bolacha, café com leite, vitamina de banana, ovos, suco de laranja, pão-de-mel, variando apenas os dias. Todos brincavam de roda, lenço atrás, boca de forno. Quanto aos colegas, Ivani lembra da fisionomia mas não dos nomes.



Segundo ano escolar (1972)

Continuava na mesma escola, mas a professora era outra. Dona *Marlene era morena e tinha cabelos lisos pretos que viviam amarrados num rabo de cavalo. Esta professora chamava Ivani de "Pequenina Polegar", pois era a menor da turma e a garota não se importava.

Algo que Ivani gostou nessa nova etapa escolar foi do uso de canetinhas - o que tornava mais fácil a visualização dos desenhos depois de contornados.
Terceiro ano escolar (1973)
Ivani entrava às 7h e saía às 11h30'. Além do novo horário o uniforme também mudara: camiseta branca com o símbolo da escola no bolso e calça azul marinho.

Professora nova: Dona *Simone. Seus cabelos eram curtos e avermelhados; usava óculos de armação transparente e falava muito alto.

Dona Simone também marcou a vida de Ivani devido a uma pequena atitude: pediu para que todos os alunos tivessem um pote de margarina vazio sobre a carteira para jogar o "lixinho" do lápis. Qualquer criança odiaria, pois teria que permanecer sentada por mais tempo mas para Ivani era diferente: agora não precisava mais atravessar a sala para jogar o "lixinho" - afinal ela já estava enxergando tão pouco que o trajeto entre a carteira e o cesto de lixo se tornara num martírio.

Mas nem tudo era belo; a sala de aula era a de número 9 o que obrigava a turma a subir dois lances de escadas, para desespero de Ivani que por enxergar pouquíssimo tinha medo de cair nos degraus e fazia o trajeto bem lentamente sendo sempre a última a chegar na classe. A professora ao perceber "algo diferente" "solicitou" que a menina carregasse a caixa de giz e o apagador, todos os dias, sendo sempre a primeira da fila (agora todos seguiam seu ritmo).

Interessante notar que, após anos numa mesma escola apenas uma professora notou algo diferente e tentou fazer algo, ou seja, mesmo sem saber ao certo o que era esse diferente houve uma tentativa de burlar “a normalidade” e não acreditar no senso comum. Percebeu as diferenças na turma e buscou lidar com a situação. Pode-se afirmar que a professora não contou com o apoio dos demais colegas, posto que eles ainda se encontravam enquadrados numa sociedade perversa que desconsidera as singularidades de cada um.


Um recreio mais triste

O intervalo já não tinha tanta graça para a garota mas, mesmo assim, ainda participava das diversas brincadeiras que não "exigiam muito da visão", como por exemplo: passa anel, gata pintada, telefone sem fio, roda, jogo da velha. De bola e aviãozinho já não brincava mais (dizia aos colegas que havia "enjoado"). Para ir ao banheiro também precisava de auxílio de uma colega devido aos degraus. Copiar da lousa ficava mais difícil, mesmo assim, realizava todas as atividades propostas.

Novamente, nota-se o quanto o ser humano procura “normalizar” para aceitar aquilo que desconhece, isto é, Ivani tinha “algum probleminha” que não era assim tão complicado...a menina apenas precisava de ajuda para ir até ao banheiro, só isso... e a solução fora incumbir uma coleguinha para fazer às vezes de “olhos”...Tal “solução” não passa de um “achismo”; porque ninguém resolveu verificar as raízes das dificuldades apresentadas pela garota; aliás, quem precisava de Ivani?



Quarto ano escolar (1974)
Ivani começa a sentir-se um verdadeiro "monstro" devido aos "olhos tortos" (enfatizados pelos apelidos que ouvia dos colegas, a partir de então) e tinha vergonha dos amigos. Os conflitos internos, externos e a desmotivação pelos estudos emergem.

No entanto, ao perceber as dificuldades de Ivani, bem como a rejeição do grupo em relação à garota, a professora "teve uma ideia": incluía a aluna cada dia num grupo diferente, mas a situação piorou; os colegas faziam tudo deixando a menina de lado e criando apelidos como "Vesga, Zarolha, Ceguinha". Às vezes, a aluna tolerava, outras vezes, empurrava as carteiras em cima da turma e saía correndo chorando, mesmo sabendo que a diretoria da escola seria destino certo mais cedo ou mais tarde "devido à agressividade" (sic!).

No decorrer do ano letivo, as professoras notaram as dificuldades vividas por Ivani e o afastamento da mesma do convívio social e decidiram chamar os responsáveis.

A mãe fora orientada pelos educadores a procurar um profissional. A escola fez um encaminhamento ao psicólogo e ao oftalmologista.

Percebe-se que viver com a diversidade é muito mais delicado do que se imagina. A “sociedade dos iguais” não tolerava o diferente e Ivani era diferente e a educação não era para todos.

Porém, vale ressaltar que na década de70 apalavra “inclusão” pouco aparecia no vocabulário educacional e esta professora teve um olhar diferente e compreendeu “que o importante nessa relação de ensino e aprendizagem, não é conhecer as limitações que cada um de seus alunos possa vir a ter, mas sim, conhecer a peculiaridade do caminho pelo qual conduzirá a criança com deficiência e/ou dificuldade a aprender e se desenvolver da melhor forma possível, dentro de seus limites e capacidades”. (Wuo e Leal, 2008).
Quinto ano escolar (1975)
Por mais que Ivani se esforçasse não conseguia acompanhar as matérias de matemática, inglês e educação física e os professores não sabiam o que fazer para ajudar a aluna.

Nas aulas de inglês sofria porque neste idioma "fala-se de um jeito e escreve-se de outro"; nas aulas de matemática não entendia as disposições dos números na lousa e só resolvia a conta se a professora explicasse apenas para ela e nas aulas de educação física ninguém a queria no time porque não enxergava a bola, no entanto, a professora a colocava em alguma equipe pois "tinha que participar" da aula.

Ir à escola tornou-se um sacrifício para Ivani que tinha como colega a *Rute. Rute também era discriminada pela turma porque era gorda e tinha um bafo horrível.

Ivani não conseguia enxergar as linhas do caderno nem usando óculos e pedia que Rute lesse para que pudesse registrar. O problema era que Rute era muito distraída... Além disso, Ivani tinha vergonha do óculos fundo de garrafa e do tampão que usava em um dos olhos.


Abandono à escola

Mesmo dedicada Ivani não conseguia mais acompanhar as matérias de inglês, educação física e matemática. Um dia, voltando da escola com a colega Rute não viu um espaço entre uma tábua e outra de uma pontinha que ficava sobre um córrego que tinham que atravessar e caiu dentro dele. Foi motivo de gozação para os colegas que vinham logo atrás. Pior foi que quando chegou em casa levou uns safanões e ouviu da mãe que "não servia para nada a não ser para dar prejuízo desde que nascera" (SIC!). A partir de então, a garota decidiu abandonar a escola de uma vez por todas! Passava o dia trancada no quarto, ouvindo música. Só respondia o que lhe perguntavam. Comer já não queria. Ivani caiu numa depressão profunda. O ano era 1975.Não concluiu a quinta série. Esta fora concluída em 1977 e a sexta série, após um ano de reprovação, fora concluída em 1979.

Neste momento da vida de Ivani a mãe acaba por explicitar ainda mais o “luto” em que vive após o nascimento da filha. Infelizmente este sentimento de luto e também de culpa assola a vida de boa parte das famílias cujo um dos membros apresenta alguma deficiência, sobretudo da mãe, a qual pode sentir-se e ou é vista pela sociedade como incompetente.


Consulta decepcionante
Depois de conversar com as professoras a mãe de Ivani procurou um especialista (no ano seguinte, 1976). A família tinha convênio. Após horas de exames, os médicos pediram para que Ivani aguardasse enquanto conversavam com sua mãe Ivonete. A conversa durou uma hora e meia e dona Ivonete saiu da sala chorando dizendo que tudo estava bem! Quando o marido chegou em casa Ivonete informou que a filha estava praticamente cega e que nada poderia ser feito e que nem os óculos e os tampões surtiriam algum efeito (Ivani ouviu tudo escondida, é claro!). Percebe-se que a professora precisou conversar com a mãe e orientá-la deixando claro a importância da relação escola-família - ainda muito fragmentada em nosso país.


Alegria inocente
Ao ouvir tudo a garota ficou muito feliz porque não precisaria usar mais aquele óculos horroroso e nem o tampão. Retorna à escola toda contente em1976. Agarota, face a tamanha felicidade, ainda não havia se dado conta de que deixaria de usá-los porque não adiantava mais...Ao passar dos dias Ivani percebe que ver as cores, as pessoas e caminhar sozinha pelas ruas ficava mais e mais difícil. Pouquíssimo enxergava os desenhos mesmo que contornados com canetinhas, as linhas do caderno, a lousa; o rendimento escolar foi caindo...Nova depressão e abandono escolar (1977).
O primeiro emprego
Após algum tempo em meio a medicamentos contra depressão e angústias Ivani recebe a visita de uma ex-vizinha. Esta relatava que agora estava "bem de vida" e que seus filhos com idade entre nove e treze anos trabalhavam (as crianças envelopavam figurinhas de álbuns do Pernalonga e ganhavam vinte e cinco centavos por cada milheiro entregue e o serviço poderia ser feito em casa após os estudos!). Ivani ao receber "a proposta" animou-se e no dia seguinte chegara bem cedinho ao local combinado para apresentar os documentos.

Na primeira semana Ivani conseguiu entregar "apenas" dois milheiros, mas na segunda semana, com a ajuda das irmãs, entregou muito mais! Aos poucos toda a família se envolveu com o "trabalho" - esta tarefa ajudou-a a superar a depressão. No ano seguinte, 1978, retornou aos estudos para cursar a sexta série. Acredito na importância de se questionar o trabalho de Ivani. Por um lado têm-se pessoas contra a atividade da menina (envelopar figurinhas), por um outro lado, foi este subemprego que ajudou-a a sair da depressão e sentir-se gente novamente. Não seria esta uma tarefa inclusiva pelo fato de não preocupar-se com o resíduo visual e sim com o produto final?

Segundo Ivani “este serviço serviu para unir a família; minha mãe percebeu minhas habilidades e focou menos na minha deficiência. Era um momento em que todos conversavam e riam sobre diversos assuntos e fez com que todos, sobretudo minha mãe, “descobrissem” que eu era capaz de fazer algo mesmo com a cegueira. A partir desse momento minha mãe apoiava-me em tudo aquilo que eu desejava fazer e não mais admitia recusas de minha parte sem antes eu tentar realizar algo. Não permitiu, contudo, que eu estudasse o código Braille devido a ausência de transporte – a escola era um pouco longe da nossa casa”. É interessante ressaltar como uma simples e, para alguns, insignificante tarefa, conseguiu quebrar preconceitos existentes dentro do seio familiar e foi capaz de fortalecer laços entre pessoas tão próximas. Não se pode negar que o trabalho verdadeiramente inclui, ao menos neste caso.


Uma nova escola
No ano de1975 agarota foi matriculada na escola municipal "Almirante Paulo Frontim" para cursar a quinta série. O ensino era muito rígido e Ivani não conseguiu acompanhar. A "outra matéria que pegava no pé" era literatura. O professor exigia que todos lessem em voz alta. Ivani enxergava menos ainda e o professor não entendia porque via a garota "com olhos abertos" e a chamava de preguiçosa. Certo dia no recreio, não tolerando as gozações, bateu num colega. Foi para a diretoria e os pais foram chamados. Dona Ivonete explicou todo o histórico da filha inclusive sobre os medicamentos contra depressão. A partir de então a escola teve um novo olhar, reafirmando que escola e família estão intimamente envolvidas no processo de ensino e aprendizagem.


Mais um ano (letivo) perdido...
Com todos entendendo a situação de Ivani estudar ficou mais prazeroso e, "dentro do possível", cada professor adequava sua aula para que Ivani aprendesse. Mesmo assim, a visão que já era mínima reduziu ainda mais obrigando-a a deixar os estudos para realizar tratamentos diversos.


Sétima série: parte 1 (1979)
Iniciou a sétima série aos dezessete anos de idade e estava muito feliz, no entanto, devido ao trabalho do pai, precisou sair da escola. A família iria morar em outro estado.


Sétima série: parte 2

A família foi residir em Olinda (setembro de 1980) - mudança paga pela empresa. Tudo era novo. Os nomes dos objetos, das coisas (bala era chamada confeito, pão francês era pão de sal, água sanitária era quiboa), das frutas, os sotaques. A água "de cor amarelada" deu alergia em todos, fazendo com que o pai gastasse dinheiro comprando água da bica. Ivani e suas irmãs foram matriculadas, porém era difícil para a garota acompanhar o currículo diferente de São Paulo e não frequentou a sétima série. Ficava boa parte do tempo dentro de casa, pois a nova cidade era desconhecida. A família residiu apenas um ano em Olinda devido ao insucesso da empresa a qual pagou o retorno de todos a São Paulo.


Desafio Pessoal
Residindo novamente na cidade de São Paulo (março de 1982) encontrou uma escola de datilografia particular. Ivani pediu para que o pai pagasse o curso. O professor não queria aceitá-la, pois percebera que a garota era “quase cega”. Ivani insistiu. O professor aceitou-a na turma (com cinquenta alunos), posto que anteriormente, ficou combinado que “havendo ou não aprendizagem satisfatória” o curso seria pago (não afetando a imagem da escola e ou do professor futuramente). Em março de 1983 Ivani recebe o certificado de datilógrafa. Para ela, um prêmio de "consolação", uma vez que ainda não havia concluído o primeiro grau (atual ensino fundamental); para a escola, os professores e os demais colegas, um momento de comoção, pois atingira a meta exigida pelo currículo (ainda que ninguém e nem a própria Ivani acreditassem). Segundo Ivani, “graças a este curso, hoje, tem facilidade na digitação.”
Reaprendendo a viver
Ao completar vinte anos (1984) Ivani vai em busca de recursos para cegos, seu caso. Matriculou-se na Fundação de Ensino dos Cegos Laboriosos do Brasil. Logo aprendeu o código Braille, fazer uso do telefone e se locomover com o auxílio da bengala guia (bengala branca). Sabendo tudo isso, decide sair da fundação, conquistar um emprego e ainda não cursar a sétima série porque sabia que precisaria de materiais escolares adaptados não oferecidos pelas escolas públicas (e maioria das privadas).


O primeiro emprego registrado (1985)

Ivani já podia andar sem depender de outras pessoas e agora queria sua independência financeira. Por intermédio da fundação foi apresentada aos proprietários de uma empresa de engenharia, próxima a instituição, a qual lhe ofereceu treinamento para que fizesse parte do quadro de funcionários enquanto telefonista e recepcionista. Vale ressaltar que a empresa ficava perto da instituição, mas longe da residência (aproximadamente três horas) motivando sua saída após um ano (1986). Porém, como precisava sobreviver conseguiu emprego numa fábrica de sapatos “fundo de quintal”.


Iniciou limpando os resíduos de cola dos sapatos, encaixotando-os e numerando-os de acordo com o código que lhe era dado – embora estivesse registrada como empregada doméstica. Não demorou muito para que fosse "promovida". Agora Ivani passava cola nas palmilhas e saltos dos sapatos. Tudo era feito com tanta eficiência e rapidez que os patrões concederam nova "promoção": cobrir saltos de sapatos sociais femininos. Como ganhava por cada par de sapato "produzido" decidiu continuar a tarefa em casa, logo, trabalhava sem parar nos fins de semana e feriados e adoecia graças ao forte cheiro da cola e tiner. Consequentemente, foi parar no hospital com gastrite corrosiva e após rigoroso tratamento, recuperou-se e abandonou definitivamente o trabalho. Novamente retorna a questão do trabalho para a pessoa com deficiência. Será que a pessoa cega só merece o trabalho insalubre ou Ivani “não contava com a sorte”? Será que pessoas com baixa visão ou cegas têm mais habilidades para executarem determinadas tarefas do que pessoas videntes?


De volta a Fundação
Em 1987 voltou a frequentar a Fundação de Ensino dos Cegos Laboriosos do Brasil (FECEL). Neste local participou de um concurso de redação cujo tema era “A importância e a utilidade do uso da bengala guia”. Ganhou. Fora contemplada com uma bolsa de estudos para fazer três cursos na Faculdade de Agricultura de Jaboticabal, na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo. Optou pelos cursos de jardinagem, horticultura e manutenção de tanques de piscicultura. A faculdade proporcionou também cursos de aperfeiçoamento em locomoção interna, externa e de campo; utilização correta de talheres, a frequentar restaurantes, lanchonetes, teatros, cinemas, fazer compras em mercados e em todos os outros estabelecimentos comerciais existentes naquele campus. Em março do mesmo ano (1988) recebeu os certificados dos cursos realizados e retorna ao seio familiar.



O terceiro emprego registrado (sétima série: parte 3)

Neste mesmo período retornou aos estudos (sétima série, 1988) em uma instituição privada (dessa vez no curso supletivo), pois ganhara uma bolsa por intermédio de uma colega que estudava lá também. Porém, mesmo sendo aceita por todos, a sua deficiência a fez "trancar" a matrícula (não havia o menor recurso).
Novos conhecimentos
Através de um encaminhamento da FECEL fez um curso de Auxiliar de Radiologia.

Estudos: uma nova tentativa (sétima série: o fim)


Para exercer essa profissão era necessário o primeiro grau (atual ensino fundamental) completo. Decidiu então voltar às aulas numa escola da rede estadual de ensino. O ano era 1988 e todos os educadores se empenhavam em auxiliá-la. Finalmente Ivani conseguiu realizar parte de seu sonho: concluir esta etapa do ensino (1989). Ivani alega que: “todo esse processo vivido para concluir o ensino fundamental fez-me forte e persistente; não deixando-me desestimular frente a apelidos, comentários e demais obstáculos.”


Mudando de cidade

Em 1990 Ivani vai morar com a irmã Regina no município de Embu. A irmã de Ivani atuava como frentista de segunda à sexta-feira e aos finais de semana “fazia bico” como manicure à domicílio. Ivani estagiava num Pronto Socorro do bairro, sem remuneração. Conseguiu, então, conciliar o estágio com um “bico” numa fábrica clandestina de batatas fritas, pururucas, castanha-de-caju e amendoins torrados. A tarefa era descascar as batatas, lavá-las e selecioná-las por tamanhos e embalar os demais petiscos. Esta atividade a fez “perder a sensibilidade tátil” para ler o Braille e após um ano meio de trabalho (1991-1992), muito indignada, sua irmã a retira da fábrica.


Novas habilidades
A irmã a fez sair do emprego e com o dinheiro ganho Ivani comprou balas, chicletes, lápis e borracha e começou a vendê-los. O fez por seis meses.


Vivendo e aprendendo
A irmã de Ivani, Regina, fora demitida. Agora as duas estavam desempregadas. Decidiram pegar o pouco dinheiro que restava e investiram em farinha de trigo, açúcar, sal, ovos, óleo e... numa caixa de isopor! Regina faria doces e salgados e sua irmã sairia para vendê-los. Mais um período delicado para "Cris" (apelido de Ivani desde criança), pois a maioria das ruas ainda não haviam recebido asfalto, logo, buracos - e tropeções - não faltaram. Nos dia de chuva, então, era uma loucura! Viveram e sobreviveram deste emprego informal por dois anos. Ivani ficou conhecida nas redondezas como a "ceguinha dos salgados" - o que a fazia feliz, pois mostrara a todos que o fato de não ser vidente não era empecilho para viver com dignidade.


Presente de aniversário
Finalmente uma “trégua do destino” na vida de Ivani! O setor de radiologia no qual estagiava fora terceirizado e por indicação da direção “Cris” foi contratada e atuou entre os anos de1993 a2003 - não fosse a empresa falir!


Ganhando conhecimentos

"Cris" sempre gostou de aprender e não perdia nenhuma oportunidade. Inscreveu-se para concorrer a uma bolsa de estudos num curso de massoterapia e após um ano (1994) fora contemplada (conseguia conciliar o curso com o emprego no posto de saúde Conquistando mais esse diploma quis especializar-se na área de massoterapia óssea, para tanto, necessitava concluir o ensino médio. Rapidamente procurou uma escola estadual e matriculou-se e de "quebra", levou um sobrinho junto. Os dois estudavam na mesma sala, para felicidade de Ivani. Nesta escola ela contou com o auxílio de diversos educadores que buscavam adaptar o conteúdo visando o benefício da aluna. Em 2003 concluiu o ensino médio (Telecurso).
Uma troca de amor
Como sempre gostou de sentir-se útil, "Cris" começou a prestar serviços voluntários, como massoterapeuta em uma escola pública com crianças com deficiências múltiplas, no entanto, precisava de dinheiro para sobreviver, de preferência de um emprego fixo, pois já não aguentava mais fazer crochê, tricô, bolsa com lacres de latinha, tapetes de retalhos, tampouco enviar currículos! Inscreveu-se então num programa social chamado "Frente de Trabalho" ( a pessoa é contratada por um ano, recebe um salário mínimo mais cesta básica e deve estar estudando). Com um currículo irrecusável fora aceita para continuar atuando junto aos deficientes na mesma escola, em Embu, onde era voluntária (2004). E para não perder o "emprego temporário" tinha que fazer cursos. Assim, matriculou-se num curso de informática numa instituição adventista e especializou-se em softwares áudio ( DOSVOX), em 2005.


Uma nova profissão
Num dia conversando com uma advogada esta perguntou se Ivani estava trabalhando. A resposta foi que atuava temporariamente. A advogada pediu para ler o currículo de Cris e o enviou para uma empresa no município de Taboão da Serra. Para surpresa, Ivani atua até os dias atuais nesta empresa como instrutora de informática educacional inclusiva. O ano era 2005.


Em março de 2006 Cris é convidada pela secretária de educação de Embu para atuar na sala de apoio como professora de Braille e massoterapeuta. Após um ano e meio (agosto de 2007) opta por permanecer apenas no município de Taboão da Serra devido a melhor proposta financeira, estabilidade de emprego e apoio aos estudos.


Rumo a um novo objetivo

Cris sempre sonhou com a graduação e pós. Mas como estudar sem dinheiro? Durante o curso de inclusão digital (2005) em uma instituição adventista Ivani se destacou muito e auxiliava os colegas. O professor Roberto Sussumo a incentivou a prestar vestibular e tentar uma bolsa de estudos. Cris não titubeou. Estudou, “prestou” e passou para o curso de Tecnologia de Informática (iniciou o curso em 2006). A bolsa de estudos fora concedida pelo reitor da instituição após árdua batalha. Porém, a falta de recursos materiais e humanos para a pessoa cega a obrigou a “trancar” o curso.


Em 2007 realiza novo vestibular, desta vez para Pedagogia na mesma instituição. A bolsa foi mantida e Ivani está no quinto semestre, no entanto as dificuldades concernentes aos recursos materiais persistem, mas conta com total apoio dos mestres. Segundo Yachmann et al, 2007, “as instituições de ensino não devem menosprezar a capacidade daqueles que as frequentam, caso contrário, impedirá a remoção das montanhas de ignorância, quando na verdade a função das instituições é fazer com que o indivíduo transponha todo e qualquer obstáculo para alcançar o conhecimento, vindo a exercer a cidadania plena”.
6 Considerações Finais
“Que não te despojem do teu sentido inicial. É fácil crer no que crê a multidão. Fortalece teu entendimento de um modo natural; difícil é saber o que é diverso” (Goethe )


A maioria dos países, atualmente, garantem em seus textos legais, o direito de acesso, permanência e sucesso de seus cidadãos à educação escolar básica. Afinal, acreditam que a educação escolar é indispensável para a participação de todos nos espaços sociais e políticos. Em se tratando de Brasil, a educação é um direito de todos. Mas quem faz parte desse todo? Todos?


Tenho uma amiga cega que, para conseguir concluir o ensino fundamental e médio (suplência) precisou de 32 anos! Quem faz parte desses “todos educacional”? Os não estigmatizados? A pessoa cega não pertence a espécie humana? Acredito que sim, embora a sociedade a ignore e prova disto é que Ivani ao longo de sua vida tem sua dignidade humana, um dos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, ferido! Não seria a escola pública um espaço para a reflexão e promoção da não estigmatização, principalmente após duas grandes guerras vividas pela humanidade, no século XX, as quais originaram um renascimento humanista?


Para Ivani, o ingresso na rede pública de ensino, aos 7 anos e meio de idade, proporcionou “a aprendizagem do estigma” (Goffman, 1975) e quase a convenceu de que lugar de gente “com problema de vista” é no meio de “gente com problema de vista”. Com isto, Ivani “demorou” para concluir a educação básica devido a uma sociedade perversa que mesmo sabendo da existência de alguns documentos de caráter internacional (Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948; Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino de 1960; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, dentre outros) não aceita o diferente, discrimina “muitas vezes, sem pensar” e acaba por “reduzir a chance de vida do outro” (Goffman,1975).; Ivani também serve de bode-expiatório social, ou seja, se demorou tanto a culpa é dela mesma, porque “ninguém tem culpa” de a garota ter nascido com retinose pigmentar e ter ficado cega entre os 10 e 15 anos de idade. (Skliar, 2001).


Ivani é filha de Edgar e Ivonete, ambos pernambucanos que na década de 60 desembarcaram em São Paulo, buscando melhores condições de vida “já que a maioria dos filhos haviam nascido com problema por “permissão divina” e imbuídos do seguinte pensamento: “a filha com baixa visão está fadada ao fracasso, sobretudo quando ficar cega de vez!”.


Quando a retinose pigmentar afetou totalmente sua visão, Ivani percebeu que a vida, mais do que antes, seria diferente; no entanto não sentiu-se “anormal” e este comportamento causava estranheza aos olhos dos outros porque a garota empenhou-se em mostrar a si, aos seus pais e à sociedade que possui uma limitação (não enxerga) mas que com algumas adaptações e “bem querer” do outro haveria possibilidade de aprendizado (em amplo sentido), sim! Ivani não se sente inferior, não se isola e não detona a própria autoestima, aliás, procura estar sempre entre pessoas e VIVER!


E por falar em viver... acompanho o cotidiano de Ivani porque além de nossa amizade atuamos na mesma área e presenciamos “situações sociais” - e que perdoem-nos- fazem-nos rir e refletir. Constantemente as pessoas conversam com Ivani em alto tom de voz (ela lembra a pessoa que não tem surdez...). Sempre que é convidada a contar sua experiência, sobretudo aos jovens, nota-se que os “organizadores”, numa busca incessante para recepcioná-la bem, a pegam pelo braço (geralmente apertando forte) e tentam sentá-la na cadeira especialmente reservada (Ivani lembra que não precisam apertar seu braço e muito menos “carregá-la no colo”. Basta informar a onde está a cadeira e quando ela quiser ela mesma usufrui do objeto). Por ser estigmatizada, mas por não sentir-se menor do que ninguém, Ivani, ao “lembrar” as pessoas sobre algumas atitudes junto a pessoa cega, aproveita para mostrar que raciocina, que namora, que toma banho sozinha e que também “tira sarro dos ditos normais”. O que se questiona com este trabalho não é o culpado pela situação, mas os comportamentos sociais que contribuíram para dificultar a formação da garota.


De certo, na história da humanidade a exclusão sempre existiu (na Grécia, a eugenia era uma prática comum e muito posteriormente adotada por Hitler, encontramos ainda relatos de segregação na Bíblia). Além disso, deve-se ressaltar que nunca um século fora tão excludente quanto o século XX, que segundo Hobsbawm (1998) “ foi o século mais mortífero da história, não só por causa da envergadura dos conflitos bélicos, mas pelos genocídios sistemáticos, as matanças étnicas, o apartheid, as ditaduras militares, a violência física e legalista contra imigrantes etc.” Tanto é verdade que a sociedade contemporânea elaborou meios para ausentar o sujeito, ou seja, ao pensar a cultura, apesar de enfatizar que diferenças não podem existir, este próprio discurso tende a ocultar as diferenças numa tentativa de adequar tudo. Esta cultura busca uma sociedade harmoniosa e equilibrada; considera que todos têm a mesma experiência. Engano. Cada um tem uma maneira de encarar as frustrações e realizações.


Cada pessoa cega tem um jeito de ver a vida. Ivani notou que inúmeros obstáculos teria que enfrentar caso quisesse, ao menos, concluir a educação básica. Essa busca incessante, fez com que Ivani incomodasse o outro e o atentasse para algo chamado “diferente/ diversidade”. Diversidade esta que é de grande valia para o ser humano, mas que se depara com algo denominado tolerância e respeito para com o outro. Contudo, diversidade deve ser vista não como a salvadora da pátria posto que também esconde “um quê” de ideologia para manutenção do status quo (Skliar,2001).


Nesta jornada Ivani sofreu e sofre com o preconceito porque ser cego é sinônimo de incapacidade e isto é “natural” porque é assim que a sociedade percebe o mundo daqueles que não enxergam. É sabido que, “o desprezo pelo outro, a antipatia pelo diferente são tão antigos quanto a própria humanidade” (Agnes Heller,1970), logo o fato de a sociedade afirmar que a pessoa cega não serve para nada bem como os apelidos criados pelas crianças e adultos explicita o quanto os pensamentos medievais acerca da pessoa com deficiência persistem nos dias atuais e a necessidade de combater tal “normalidade” que acaba por “banalizar o mal” do indivíduo.
“A vida cotidiana é a vida de todo o homem”(Agnes Heller, 1970,). Isso significa que a pessoa cega também tem o direito de usufruir do cotidiano com qualidade, algo que Ivani conheceu recentemente, posto que uma vida inteira mendigou por uma oportunidade e nunca decepcionou quem a ofereceu. No entanto, poucos são aqueles que acreditam no outro principalmente quando esse outro é diferente; foge dos padrões impostos pela sociedade. Desta maneira, Ivani indaga: “Uma pessoa perde seu conhecimento quando falta energia elétrica? Não. Uma pessoa cega por genética ou algum outro fator perde seu conhecimento ou a capacidade de obtê-lo devido ao fato de não enxergar? Pode o sistema educacional propiciar obstáculos para uma pessoa com deficiência? O indivíduo diferente não tem direito à vida? Deve ser extinto da face da terra? A sociedade é cega porque compra e considera aquilo que vê; que é padrão.


Teoricamente falando, Ivani seria considerada uma coitada cega e exemplar, pois superou as barreiras impostas pela vida e pela sociedade. No entanto, não pode-se esquecer que Ivani é uma pessoa cega e não incapaz e em nenhum momento pode ser considerada ou utilizada como um troféu. A protagonista deste trabalho é uma personagem/vítima de uma sociedade que insiste em calar ou não ouvir a voz de seus agentes históricos. Ivani ainda enfrenta o preconceito social...


Atualmente, Ivani cursa pedagogia por falta de recursos das universidades, sobretudo na área de Exatas (cursava Tecnologia em Informática) e, além de massoterapeuta para reabilitação física, auxiliar de radiologia, é instrutora de informática inclusiva (informática adaptada para pessoas com baixa visão, cegas e videntes) e professora do Código Braille. No entanto, vale questionar: Ivani viu-se obrigada a optar por outro curso porque é cega. Quem é que persiste na cegueira: a aluna ou a sociedade/sistema educacional? “Será que só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são?” (José Saramago, 1995). Muitas das humilhações sofridas por Ivani (além de ferir a Declaração Universal dos Direitos Humanos) poderiam e devem ser eliminadas; para tanto urge “que a sociedade tenha apenas um olhar que a permita vislumbrar “a importância de formar-se nas mentes com base na consciência de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da espécie. (...) a hominização é primordial à educação voltada para a condição humana” (Morin, 1999). Porém, não podemos nos esquecer que boa parte dessa mudança também compete aos profissionais do ensino que devem ter em mente que, em relação a pessoa com deficiência, a sociedade encontra-se num processo de transição.


O que significa esse processo de transição? Significa que a sociedade incomodou-se com o ”velho” mas ainda encontra dificuldades em relacioná-lo com as novas concepções e questionamentos oriundos da própria natureza humana. Significa que a sociedade precisa abdicar de uma acomodação covarde que resultará em retrocesso. Ivani deixa claro que não é covarde porque não se escondeu atrás da cegueira para justificar um possível fracasso. Não se preocupou com o fato de sua “imperfeição” ainda ferir os olhos da sociedade. Arriscou. Ousou. Ganhou. Perdeu. Ganhou porque superou estigmas e se sente tão pessoa quanto qualquer outra pessoa com deficiência ou não. Mas graças à ela e sua vontade e não aos outros.


Esse seria um típico retrato do que se chama de paradigma da integração em que é a pessoa com deficiência e não a sociedade que se transforma para superar as dificuldades causadas pela cegueira (no caso), dificuldades que só são assim consideradas por sermos uma sociedade de videntes. “Diferente seria se todos fôssemos cegos, não?” (José Saramago, 1995).


Apesar de todos os percalços enfrentados, Ivani não atribui toda a responsabilidade do seu sucesso ou insucesso apenas a sociedade, mas também acredita que o seu desejo de não colocar-se como vítima contribuiu e contribui para que seja vista e respeitada como uma atriz social com voz e vez e também responsável pelo benefício da espécie humana: cega ou não.


7 Bibliografia
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FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

LEAL, D. A constituição da identidade de uma aluna com deficiência visual: um estudo de caso sobre o processo de inclusão. Dissertação (Mestrado em Educação: Psicologia da Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

MACEDO, L. Ensaios Pedagógicos: como construir uma escola para todos? Porto Alegre: Artmed, 2005.

RIBAS, J. Preconceito contra as pessoas com deficiência: as relações que travamos com o mundo. São Paulo: Cortez Editora, 2007.

RODRIGUES, D. (org.). Inclusão e Educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus, 2003.

SARAMAGO, J. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SKLIAR, C e LARROSA, J. Habitantes de Babel: políticas poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

WUO, A et al. Vigotski e a Defectologia: um estudo de seus conceitos e contribuições para a educação de pessoas com deficiência. Congresso Brasileiro de Educação Especial, Anais, São Carlos, 2008.

YACHMANN, K et al. Direito e cidadania na Educação Inclusiva. Jornal Bolando Aula, nº 82, p.14, novembro/2007. Santos.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Karen Salete Yachmann

por Karen Salete Yachmann

Professora da rede municipal de ensino de Embu das Artes há 13 anos.

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