A teoria bakhtiniana na concepção de linguagem atual

As duas primeiras abordagens focalizam a linguagem isoladamente
As duas primeiras abordagens focalizam a linguagem isoladamente

Educação e Pedagogia

10/10/2014

Várias são as concepções sobre a linguagem humana, mas vamos nos deter em três delas:

1. A linguagem como reflexo do mundo e do pensamento do indivíduo sobre este mundo. Para se comunicar bem, era necessário estudar a gramática normativa;

2. A segunda concepção vê a linguagem como instrumento de comunicação. Nela, a fala é desconsiderada e há ênfase nos elementos da comunicação (emissor, receptor, código, canal, mensagem e contexto) e suas respectivas funções (emotiva, conativa, metalinguística, fática, poética e referencial);

3. E a terceira entende a linguagem como forma de interação entre os sujeitos da língua, agindo e interagindo com os mais diferentes objetivos.


As duas primeiras abordagens focalizam a linguagem isoladamente, sem uso real, ou seja, a língua é vista em separado do contexto; o que não se aplica à 3ª concepção. O estruturalismo de Saussure e o Gerativismo de Chomsky evidenciam bem isso.


Então, o sociointeracionismo surge como resposta a essas ideias, tentando mostrar que o estudo linguístico deve se basear na relação existente entre o usuário e o contexto de uso da língua.


Geraldi (1997) estabelece que o sujeito, como ser social, interage e a linguagem é resultado de trabalho social e histórico (não individual) do usuário e de seus interlocutores.


Surgem, daí, a Linguística Textual, a Análise da Conversação, a Análise do discurso, a Pragmática, que tem como foco “as manifestações linguísticas produzidas por indivíduos concretos em situações concretas, sob determinadas condições de produção”.


Compreender a linguagem como interação é a principal vertente de Bakhtin e seu Círculo, filósofos que enxergaram na linguagem a multiplicidade de vozes que compõem a singularidade do ser humano.


Seu caráter filosófico não exclui a consistência científica do estudo linguístico, o qual especifica o cunho responsivo da linguagem, ou seja, o eu não existe sem o outro. O ser para se tornar como tal precisa ser reconhecido, ouvido, respeitado... Essa característica filosófica vai embasar aquilo que Bakhtin e Voloshinov discutem em seus textos em relação à linguagem.


A interação surge, então, como a priori da comunicação humana; o estruturalismo saussuriano não responde a todas as questões linguísticas da época, sendo apenas um recorte sincrônico e diacrônico do fenômeno da comunicação. Tal recorte não é excluído por Bakhtin, mas ele ressalta a ideia de que a linguagem só se concretiza com a interação.


O sociointeracionismo estrutura-se na intersubjetividade, com a estruturação de turnos, a troca de pontos de vista e a transmissão de mensagens. Desses princípios, surge a teoria dos gêneros do discurso, em que importa a finalidade comunicativa do texto em relação ao outro, ou seja, o que eu quero dizer para o meu interlocutor? Qual o efeito de sentido que eu desejo produzir no receptor da minha mensagem? Qual modalidade deverá ser utilizada para tal fim? Em todas essas questões, deve-se objetivar a comunicação, a interação.


Nesta nova visão linguística, a Pragmática oferece sua contribuição com o estudo da língua relacionado a fatores contextuais e discursivos, tendo como foco de análise os usos e não as formas.


Na atualidade, o trabalho com a Língua Portuguesa, levando em consideração as ideias bakhtinianas, deve enfatizar os seguintes pontos:

• As relações entre as diversas variantes linguísticas – em que momento devo usar uma variante mais ou menos formal;

• As relações entre fala e escrita no uso real da língua – qual a modalidade mais adequada para determinado contexto;

• A organização do léxico e a exploração do vocabulário;

• A organização das intenções e os processos pragmáticos – em que contexto comunicativo me encontro para atingir determinado objetivo;

• As estratégias de redação e questões de estilo – como irei compor meu texto, considerando meu conhecimento de mundo e linguístico;

• A progressão temática e a organização tópica – quais informações devem ser expostas primeiro e de que forma elas se encadearão;

• A questão da leitura e da compreensão – a partir do incentivo a tal prática, serão desenvolvidas outras competências linguísticas;

• O treinamento do raciocínio e da argumentação – partindo do meu conhecimento de mundo, estruturarei meu texto e sua base argumentativa;

• O estudo dos gêneros textuais – em determinada situação comunicativa, disporei de algumas formas relativamente estáveis para interagir com o outro;

• O treinamento da ampliação, redução e resumo do texto – como extrair a tese defendida em determinado texto.

Assim, percebemos que o tratamento dado à língua enfatizará o estudo das formas de uso, das variantes, das modalidades, das diferentes formas de interagir, de maneira crítica. Já é sabido que as duas modalidades, oral e escrita, são práticas inerentes à língua e que não constituem uma dicotomia. Os usos é que dão status a cada uma delas, conferindo-lhes poder de expressão e de convencimento em dada circunstância.


Ao observar as variações linguísticas, percebemos que elas não acontecem ao acaso, como se cada indivíduo falasse à sua maneira. Há algumas ideias importantes acerca disso:

1. Nenhuma língua é imutável, toda língua se modifica com o passar do tempo;

2. O que é considerado padrão numa época pode ser ultrapassado em outra;

3. As variantes não padrões devem ser tratadas como fenômenos linguísticos regulares.


A língua pode, então, variar em função de:
1. Da identidade social do emissor;
2. Da identidade social do receptor;
3. Das condições sociais de produção discursiva.


Daí, o falante deve possuir alto grau de flexibilidade da língua para usá-la de acordo com o contexto, com seu interlocutor, com seu objetivo comunicativo etc. sendo assim, todos os falantes são capazes de adaptar seu estilo de fala à diversidade das circunstâncias sociais da interação verbal, e de discernir que formas alternativas são as mais apropriadas.


Tendo essa capacidade em vista, a escola deve proporcionar reflexões acerca dos variados usos da língua, sem apresentar a norma padrão como a única aceita nem a do aprendiz como a estigmatizada, como a errada. É dessa singularidade, ou melhor, é desse ensino plural que os estudantes poderão desenvolver suas competências linguísticas para interagir em diferentes contextos de uso. O ensino da variedade padrão continua a ser dever da escola e um direito do aluno, mas não precisa ser substitutivo e, por isso, não implica a erradicação das variedades não padrões.


A escola, seguindo este caminho, deve permitir o contato com situações de uso da língua, que Beth Marcuschi tão bem denomina de ‘redação mimética’, quando o discente apreende diferentes maneiras de construir um texto para que possa elaborar seu próprio estilo de produção textual.


Para enfatizar tal abordagem, temos as palavras de Joaquim Fonseca:

“a preparação do aluno para a produção ágil dos seus discursos alheios – no que se conseguirá que ele obtenha uma maior eficácia na atuação social, um maior sucesso na descoberta de si mesmo e na sua intervenção na prática social.”


Enfim, o ensino da Língua Portuguesa deve ter como foco o uso e a interação, numa visão pragmática da linguagem.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Simone Souza Cunha da Silva

por Simone Souza Cunha da Silva

Foi professora de Língua Portuguesa por mais de 15 anos em estabelecimentos de ensino públicos e privados em Pernambuco, tendo como base a teoria sociointeracionista da linguagem. Tem desenvolvido pesquisa nesta área aliada à educação a distância, visto que acredita ser uma excelente ferramenta para a expansão do acesso ao conhecimento formal.

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