DIFERENCIAÇÃO E INDIFERENCIAÇÃO NO JOGO DO ESSENCIAL: ORIDES FONTELA E O HAICAI
Orides Fontela; Haicai.
Educação e Pedagogia
08/11/2014
As relações de dissemelhança e semelhança que serão apresentadas, nesta pequena análise comparativa, são fundamentadas em trabalhos de Paulo Franchetti e Cleri Bucioli, para tratar das temáticas: haicai e a poética de Orides Fontela, respectivamente.
Orides Fontela (1940- 1998) foi uma poeta paulista, nascida em São João da boa vista. Sua lírica apresenta singularidade, um dedicado trabalho com a palavra e hermetismo. Sua expressão poética é, muito constantemente, associada à poetas construtores, como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. No entanto, conforme afirma Arrigucci Jr: há na poesia de “Orides um orientalismo, um despojamento no qual as características formais e éticas revelam uma depuração pessoal”. Interessa-nos, aqui, observar este orientalismo a partir da poesia e, portanto, é no haicai que acreditamos ser possível compreender uma das tantas fontes em que a poeta bebeu. (BUCIOLI apud ARRIGUCCI JR, 2003, p.22).
O haicai, originário do oriente, mais, especificamente, do Japão, grosso modo, é um poema composto por uma estrofe, distribuída em três versos de 5-7-5 sílabas poéticas. É completo, sintaticamente, e diferente do que possa parecer, é complexo do ponto de vista de sua elaboração. Pode-se considerá-lo uma das mais recentes formas poéticas orientais.
Para falarmos sobre o haicai, necessitamos, de “nos lembrarmos constantemente” de que esta forma poética (…) “é produto de um pensamento religioso sincrético, em que o animismo xintoísta convive com a doutrina budista do mundo como ilusão e sofrimento” e não podemos projetar excessivamente sobre o haicai “nossos próprios pressupostos metafísicos”, bem como, conceitos estéticos de “verossimilhança, universalidade e particularidade”. (FRANCHETTI, 2012, p.20).
Isto é, não podemos pensar no haicai apenas como uma composição poética totalmente, pois havia na época de sua criação, no oriente, hoje muito mais ocidentalizado, uma forte relação entre religião, política, ética e artes. No que concerne à religião, percebe-se facilmente a partir da presença de traços do zen budismo. Estes elementos apresentados, podem ser considerados critérios estéticos. Levando-se em consideração tal poética, na antiguidade, temos o termo makoto, que pode exprimir a noção de “sinceridade” e “verdade”.
Ao se pensar na lírica oridiana, podemos inferir que talvez seja por conta deste orientalismo impresso em sua poesia, que observamos um sujeito lírico tão internalizado, que em muitos momentos parece estar em um nirvana. De certa forma, um sujeito paradoxal.
Retornando ao termo makoto, temos ainda, três desdobramentos. São eles: Sei (pureza), mei (brilho) e choku (correção espiritual, franqueza). Percebe-se a busca pela pureza no poema Águas, do qual selecionamos apenas parte dos 7º e 8º versos:
“O necessário
batismo”. (FONTELA, p. 211).
Estes versos demonstram uma procura pelo processo de pureza/purificação que de alguma forma está disponível na natureza, e tudo mascarado pela iconoclastia de alguns símbolos cristãos. Observa-se também, o brilho (que é uma representação de algo sublime: apresentado de forma simples) caracterizado pela máxima inventividade na metáfora dos 1º e 2º versos do poema “Nuvem”:
“Asa sem
Pássaro” (FONTELA, p. 235).
E a correção espiritual que pode ser notada em muitos poemas de diferentes publicações da autora. Apenas para elucidar temos, como exemplo, os 15º e 16º versos do poema “Estrada”:
“Sufocando toda a
Memória... (FONTELA, p.139).
Outros critérios importantes que fazem parte da estética do haicai segundo Bashô, e que podem ser considerados caminhos para o ideal poético da poesia japonesa, são: sabi, wabi, karumi, que podem ser resumidos da seguinte forma: tranquilidade e solidão (tanto física, quanto emocional), apreciar aspectos agradáveis da pobreza, libertar o espírito dos desejos que o prendem ao mundo, e, também, uma simplicidade superficial combinada a um conteúdo sutil.
Tais conceitos estão presentes nos poemas de Orides, principalmente, em momentos de negação do “eu”, de meditação do sujeito lírico e a constante observação de elementos da natureza, que podem parecer superficiais, mas, obviamente, não estão presentes no texto por acaso.
Franchetti (2012[1990]) chama atenção também, para o pensamento de Pound (em seus estudos, levou em consideração as poéticas orientais) que traz três significativas observações sobre alguns elementos fundamentais que compõem o haicai. Para o estudioso, as poéticas orientais, trazem em seus textos, relações entre “duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre elas” (FRANCHETTI apud POUND, 2012, p.45). Como por exemplo, a relação entre a água e o rio, que são dois elementos que se somam:
“A água não cessa
e o rio
nunca passa” (FONTELA, p. 211).
Outra função importantíssima do poeta é “rastrear retrospectivamente as antigas linhas de avanço […] para que as palavras conservem a riqueza dos matizes sutis de todos os seus significados” (FRANCHETTI apud POUND, p.45). Um exemplo, é o uso da palavra pedra, que é uma palavra que pode trazer uma grande reflexão sobre a riqueza de seus significados, isto é, a plurissignificação (pedra que poder ser tomada como palavra).
Há de se pensar também na função estética de que “o pensamento poético trabalha por sugestão, acumulando o máximo de significado numa única frase replena, carregada, luminosa de brilho interior” (FRANCHETTI apud POUND, 2012, p.45). O que ocorre na metáfora, metonímia e inversão sintática (pluralidade ambígua de imagens) asa sem pássaro, do poema “Nuvem”.
Percebe-se que do ponto de vista que se fundamenta “de acordo com a tradição japonesa”, o haicai pode ser considerado “uma percepção súbita a partir de uma sensação concreta”. (FRANCHETTI, 2008, p.262). Isto é, pode-se dizer que o haicai é como uma fotografia. A captura de uma imagem. Sendo assim, pode ser caracterizado como a expressão do máximo pelo mínimo. Algo que vai ao encontro com a lírica oridiana.
Temos, ainda, um campo semântico que apresenta termos concretos, muito constantemente, relacionados à natureza, que, especificamente, na poesia de Fontela reitera símbolos e nomes:
(...) como flor, silêncio, rosa, fonte, pássaro, estrela, luz, entre outros, não são apenas um referente de escrita, mas, antes, constituem um “repertório metafórico-vocabular próprio”. Enfatizando símbolos ou reescrevendo formas e acontecimentos[...]. (BUCIOLI, 2003, p. 90).
Tais símbolos e nomes também estão presentes nos haicais:
No perfume das flores de ameixa,
O sol de súbito surge –
Ah, o caminho da montanha!
Bashô (Franchetti, 2007, p. 86. Grifos nossos).
Quietude –
O barulho do pássaro
Pisando as folhas secas.
Ryúshi (Franchetti, 2007, p.181. Grifos nossos).
Estrelas no lago –
E então novamente o ruído
Da chuva fina que cai.
Hokushi (Franchetti, 2007, p. 160. Grifos nossos).
Até mesmo o corvo
Passa em silêncio –
Entardecer de outono.
Kishú (Franchetti, 2007, p. 127. Grifos nossos).
Como se percebe, os termos, as construções de escrita que reiteram alguns símbolos, estão presentes na lírica oridiana, bem como na poética oriental, o haicai. Nesta observação comparativa, é possível notar uma alusão ao ciclo da natureza. Se por um lado o haicai é escrito, levando-se em consideração a estação, a poesia de Orides transborda diversos elementos da natureza e de seus ciclos, sendo retomados, muitas vezes, em um mesmo poema.
Dessa forma, pode-se reiterar que a expressão “máximo pelo mínimo” que define bem o haicai, trazendo uma reflexão sobre o essencial, seja no que se refere à semântica, sintaxe, ou, ainda, ao discurso, é também, uma boa forma de definição para a construção poética de Orides Fontela.
BUCIOLI, Cleri Aparecida Biotto. Entretecer e tramar uma teia poética: a poesia de Orides Fontela. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.
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