Educação, cinema e o feminino: um olhar sobre a animação Princesa Mononoke
A escola é entendida como um espaço de reflexão
Educação e Pedagogia
10/03/2015
A escola é entendida como um espaço de reflexão e construção do saber. Sob esta alcunha se faz fundamental a experimentação de recursos que nos permitam instigar no aluno o senso crítico e o debate profícuo sobre ideologias e posicionamento sociais vigentes, ou mesmo aqueles que marcaram a história.
As narrativas cinematográficas, embora não tenham fiel compromisso com a expressão da verdade, pode ser vista como um documento histórico ou meio de questionamento. Obras que retratam o cenários de guerra, mazela social, rupturas democráticas, ascensões e quedas de povos, costumeiramente nascem de pesquisas em fontes documentais, contudo são transmutadas para um aspecto “espetacular”.
As animações costumam ter como base a narrativa fantástica, ou seja, trabalham com tensões provenientes entre o real/irreal, natural/sobrenatural, corpo/espírito, ordinário/extraordinário entre outros elementos.
Neste contexto, Furtado (1980) nos ensina que o discurso fantástico tem, assim, de multiplicar esforços no sentido de apoiar o desenvolvimento constante deste debate que a razão trava consigo própria sobre o real e a possibilidade simultânea de subversão.
Sob este prisma, a narrativa fantástica nos permite questionar padrões e estabelecer debates sobre situações cotidianas ou acontecimentos históricos onde a não há uma verdade absoluta, mas um caminho de subversão a um olhar ou ideia, seja ela imposta ou não.
Construções fílmicas pautadas neste universo costumam ser bem recebidas pelos alunos, paripasso a sua possibilidade de estabelecer um processo reflexivo e debate crítico que transcende ao modelo expositivo adotado no cotidiano escolar.
Boris Kossoy (1999) nos ensina que quaisquer que sejam os conteúdos das imagens, devemos sempre considera-las como fontes históricas de abrangência multidisciplinar.
É fundamental destacar que a utilização do recurso cinematográfico na escola, em especial nas aulas de história, não devem ter como premissa a recreação, mas a possibilidade de discutir múltiplas temáticas de maneira lúdica, e o aluno deve estar ciente desta proposta.
Vale ainda destacar que no cinema, como em qualquer documento, as imagens não podem ser assumidas como espelho dos fatos ou verdades absolutas, pois podem estar impregnadas de ambiguidades, portando significados que podem estar explícitos ou não, de omissões pensadas, calculadas que nos convidam a decifrá-las.
Anime – Breve recorte sobre o início da animação Japão
O início da produção de animações pelo Japão se remonta ao final do século XX, neste período animadores japoneses tiveram contato com técnicas utilizadas no ocidente e se permitiram experimentar.
Segundo Sato (2005) muitos autores tendem a não considerar os primórdios da produção de animações japonesas anteriores a Segunda Guerra Mundial onde se estabelece como marco inicial para a história da animação apenas o período pós-guerra, quando os japoneses reconstruíram o país sob influência dos Estados Unidos e os estúdios de animação foram criados.
Nos ano 50, a animação japonesa começou a ganhar repercussão e romper a linhas do arquipélago. Noburo Ofuji teve obra exibida no Festival de Cannes na França em 1953 com Kujira (A Baleia). Em 1955, Ofuji teve sua animação Yurei sen (O navio fantasma) premiada no Festival de Cinema de Veneza (Itália).
Ainda na década de 50, Sato (2005) cita que outro marco importante para a animação japonesa foi a produção do primeiro longa-metragem colorido. Hakujaden (A lenda da serpente branca) foi lançado em 1958, produzido por Taijo Yabushita e pela Toei Animation.
É neste período que surge também o termo anime. De acordo com Sato (2005) até o fim da Segunda Guerra Mundial e a subsequente ocupação do território japonês pelo exército dos Aliados, a expressão utilizada para referir-se as animações e aos filmes em geral era doga (imagem em movimento). Com a ocupação do país, várias expressões estrangeiras foram incorporadas à língua japonesas, sendo uma delas a expressão anime que deriva da palavra em inglês animation.
Entre 1950 e 1960 houve uma grande inserção de produções fílmicas, de animação ou não, no Japão. Este período também marcou um enfraquecimento da indústria cinematográfica japonesa, contudo, nomes como Akira Kurosawa encabeçaram a restauração das produções nipônicas, no universo da animação Osamu Tezuka se destaca como precursor de uma nova etapa da animação.
Alguns mangás de Tezuka que se tornaram animações estão Astro Boy (Tetsuwan Atomu) e Kimba, o Leão Branco (Jungle Taitei) e A Princesa e o Cavaleiro (Ribon no Kishi), sendo este último dos primeiros animes voltados para o público femino. Osamu Tezuka sempre apresentou uma forte ligação entre o desenho (mangá) e a animação.
Osamu Tezuka faleceu aos 62 anos em 1989, deixando a sociedade japonesa em luto. Vale destacar que um, dos muitos, legados deixados por Tezuka é o apuro estético nas expressões faciais dos personagens, cujo a inspiração veio de pesquisas feitas sobre produções da Disney e de cartoons estadunidenses.
Debruçados sobre as contribuições deixadas por Osamu Tezuka, Toei Animation e, futuramente, Studio Ghibli viriam a se destacar na produção e difusão de animações japonesas, alcançando lugares outrora não acessíveis.
Hayao Miyazaki: Um expoente da animação
Hayao Miyazaki nasceu em 5 de janeiro de 1941, filho de um operário de uma indústria que produzia peças de avião utilizados pelo Império do Japão na Segunda Guerra Mundial, foi do ofício de seu pai que nasceu a fascinação por aviões, que viriam a marcar seus filmes como Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Nausicaä) de 1984, Laputa Castelo no Céu (Tenkû no shiro no Rapyuta) de 1986 e Porco Rosso: O Último Herói Romântico (Kurenai no Buta) de 1992.
Ainda na infância, desejava ser desenhista, mas apresentada dificuldade com o traço do desenho humano. Se inspirou nos traços de Osamu Tezuka e mergulhou na literatura infanto-juvenil ocidental. A literatura ocidental culminou em filmes como O Castelo Animado (Howl no Ugoku shiro) de 2004 baseado na obra de Diana Wayne e O Mundo dos Pequeninos (Karigurashi no Arriety) de 2010 baseado na obra de Mary Norton.
A mãe de Miyazaki sofria de tuberculose, em virtude desta enfermidade ele mudou várias vezes de escola e cidade. Esta passagem de sua vida também se tornou filme Meu Vizinho Totoro (Tonari no Totoro) de 1988, onde duas personagens a acompanhadas de seu pai se mudam para o interior do Japão, para ficarem mais perto de sua mãe em tratamento.
O desejo de se tornar animador surgiu após assistir a obra Hakujaden de Taiji Yabushita. Em 1963 formou-se na Universidade Gakushin ciências políticas e econômicas, onde fez parte de um grupo de pesquisa sobre literatura infantil.
Após a graduação, Hayao Miyazaki passou por empresas de animação como Toei Company, Tokuma Shoten mas foi em 1985 que junto de Isao Takahata, Yasuyoshi Tokuma e Toshio Suzuki, fundam o Studio Ghibli, que viria a ser o espaço de consagração de Miyazaki.
No Studio Ghibli diversas obras dirigidas, desenhadas e/ou roteirizadas por Hayao Miyazaki ganharam o mundo entre elas Princesa Mononoke (Mononoke Hime) de 1997 que ganhou prêmios no Japão via eventos, sendo considerado o maior anime da década de 90, com maior arrecadação de bilheteira no Japão. A coroação internacional se deu a partir de A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi) que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2002 e o Oscar de melhor animação em 2003.
Princesa Mononoke: Um recorte sobre o feminino
O universo apresentado na obra Princesa Mononoke é habitado por humanos e espíritos, tal narrativa nos remete a um período da história do Japão onde ele está passando transitando no nível feudal para o industrial, representado pelo duelo de forças entre o meio selvagem (a natureza) e a transformação (industrialização).
Entre os múltiplos recortes que a obra apresenta, iremos nos ater as ações protagonizadas pelo movimento feminino. A sociedade japonesa, desde tempos remotos, é marcada pelo exercício do poder praticado pelo homem, sendo a mulher tida apenas como “elemento secundário” onde sua função é servir. Apesar dos avanços ideológicos e do protagonismo feminino que o Japão vive deste o pós-guerra, a ideia de poder masculino sobrepujando a mulher é latente.
Nesta obra de Miyazaki as mulheres, sejam as personagens principais ou secundárias, fogem as representações sociais de feminino atrelada à fragilidade e a subserviência. Entre as personagens de maior destaque estão San, a garota lobo (princesa mononoke), Eboshi, proprietária da fundição de ferro e líder de um grupo de mulheres trabalhadoras, Moro a deusa-lobo, mãe adotiva de San, e a Oráculo da Vila do povo Emishi.
A Oráculo da Vila Emishi, é a mulher mais velha do grupo e desempenha um papel similar à de uma matriarca e conselheira, sendo respeitada por todos os homens do clã. Ela informa ao jovem Ashitaka que este padece de uma maldição adquirida a partir de um conflito com um deus-javali que teve sua alma consumida pelo ódio.
A representação feminina do Oráculo sendo respeitada por todos os homens de um clã, rompe categoricamente com a representação social patriarcal que remete a sociedade japonesa da época. Numa situação onde a mulher seria renegada a um papel secundário, Miyazaki rompe esta premissa empoderando uma mulher anciã.
Na fundição de ferro, Eboshi é soberana. Nesta parte do filme percebe-se grande quantidade de mulheres desempenhando funções que, teoricamente, seriam de homens. Um destaque interessante é o fato das mulheres que trabalham na fundição exercerem poder de liderança em relação aos homens, ou seja, aqui a mulher subserviente é refutada pela mulher empoderada pela prova de que podem exercer com qualidade igual, ou superior, os serviços que seriam dos homens.
Eboshi não apenas se mostra como líder da fundição, como articula caravanas de transporte logístico, bem como encampa confronto direto com deuses da floresta, sendo destemida e altamente habilidosa o uso de armas. Aqui a fragilidade da mulher também é questionada, onde Eboshi passa desempenhar um papel que, tradicionalmente, era dado aos homens. Vale destacar que ela é ponta de lança no confronto, enquanto os homens aguardam seus movimentos para seguir.
Outra passagem interessante é quando a fundição de ferro é atacada por samurais, e as mulheres tomam as armas e protegem o forte a todo custo. Aqui é outro rompimento com a fragilidade, uma vez que o exercício militar era um atributo exclusivamente masculino na ótica feudal japonesa.
San, conhecida pelos seus inimigos como Mononoke Hime, foi abandonada por seus pais biológicos e adotada por Moro, uma deusa-lobo. Embora Moro apresente uma característica feroz, ela aceita a criança e a trata como igual. Ao longo de seu desenvolvimento, San sempre se mostrou firme e fiel a seu clã de lobos e também a proteção da floresta a qual vive.
San é uma exímia guerreira, atributo renegado a mulheres em tempos feudais, e ao longo do enredo assume a linha de frente nos conflitos, onde inclusive desafia Eboshi. Embora ela desperte a chama da paixão por Ashitaka, ela não se desvirtua de seus ideais.
Hayao Miyazaki, nesta produção, em termos do protagonismo feminino, ele consegue estabelecer de maneira poética o empoderamento e o questionamento a uma sociedade patriarcal, evidenciando que a mulher pode e, deve, ser regente de sua própria história e destino.
Mesmo a animação pertencendo ao universo das narrativas fantásticas, como recurso didático, é possível estabelecer debates sobre a sociedade japonesa em seu processo de transformação do feudo para a industrialização, bem como um debate sobre a condição da mulher neste momento histórico.
É importante frisar que a animação de Miyazaki não tem um compromisso com a realidade, tão pouco com a verossimilhança com o fato histórico, contudo, por meio de sua obra nos faz um convite a mergulhar num mundo onírico onde humanos e deuses duelam, e neste bojo de aventura a mulher, outrora deixada em segundo plano, passa a representar o trunfo para a vitória, tipificando que o seu empoderamento é capaz de mudar rumos. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
GUIMARÃES, Selva. Didática e prática de ensino de História: Experiências, reflexões e aprendizados - 13º ed. rev. Ampl – Campinas. Papirus, 2012. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
JENKINS. Keith. A história repensada. Tradução de Mario Vilela, 2 ed. – São Paulo: Contexto, 2004.
KOSSOY, Boris. Realidade e ficções nas tramas fotográficas. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
SATO, Cristiane A. A cultura popular japonesa: anime. In: LUYTEN, Sonia M. Bibe (org.) Cultura Pop Japonesa: Mangá e Anime. São Paulo: Hedra, 2005.
Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.
por Felipo Luiz Abreu de Oliveira
Olá Pessoal, sou Felipo Abreu.
Técnico em Publicidade pelo SENAC/SP, Turismólogo formado pela UNESPAR/PR e Licenciado em História pelo CEUCLAR. Especialista em Artes visuais pelo SENAC/RR e pós-graduado em Museografia e Patrimônio Cultural pelo CEUCLAR. Gestor em cultura e turismo desde 2005. Atualmente é docente e mediador do programa de regionalização do turismo no SENAC Sorocaba.
UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93