21/10/2015
Numa praia, com cinco tiros, Meursault mata um árabe, no entanto, o episódio é desprovido de qualquer emoção, não há sentimento de ódio, inveja, ciúmes, desejo de vingança e nem intenção premeditada. Ele mata porque o sol estava forte demais.
“Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. (...) Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver.(...) e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça”.(Camus 2009, p.63)
Na segunda parte do romance, Meursault responde pelo assassinato do árabe. No julgamento, alheio a todo o processo, como se nada tivesse acontecido, não se pronuncia a fim de se defender; não demonstra nenhum arrependimento e sem remorso, sem sofrimento, declara, por fim, como justificativa da catástrofe em que se envolvera, o sol forte demais.
“Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargüi rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-Lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.” (CAMUS, A. 2009. p. 71)
Nesse trecho do julgamento, indiferente ao que possa acontecer, Meursault fala o que pensa e não tenta amenizar sua situação; para ele, tanto faz a decisão dos jurados. Assim, o centro do processo não será o assassinato do árabe, mas sua indiferença aos valores morais convencionais.
Outro ponto muito significativo, consiste no diálogo entre Meursault e um padre que tenta pregar princípios religiosos para o prisioneiro que estava sendo condenado à morte, mas ele reage com fúria aos dogmas que sustentam a crença e o sentido da vida de muitos, mostrando que aquilo, para ele, não tem sentido nenhum.
"Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si’ – disse o padre. Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-Lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto[...] (CAMUS, A. 2009. p. 83).
O romance termina com a condenação à morte.
A partir da breve análise, podemos concluir que, tudo que resta à Meursault, diante do absurdo de sua existência, é o vazio, simbolizado pela condenação à morte.
Meursault é o estrangeiro num mundo de valores líquidos, privado de justiça, de fé, de ilusões, de sentido, de luz. Por isso, vive ao sabor do acaso, como se viver não fizesse sentido, tudo tanto faz.
Esse sentimento de conformismo, essa indiferença, esse repetido “tanto faz” no qual Meursault mergulha, interpretamos como uma antítese do desejo de vontade e potência que impulsiona a vida, restando-lhe o vazio, da morte existencial.
O tema predominante em “O Estrangeiro” é a morte “um homem que mata outro homem”, mas o significado deste tema no romance não se limita à morte como acontecimento biológico, mas como eliminação de toda a pulsão que promove a vida, restando a Meursault a paz sepulcral de uma existência vazia, sem sentido, na qual mergulhou e foi soterrado.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. (L’Étranger). Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2009.
FREUD, S. O Ego e o Id. Edição Eletrônica das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. CD-Rom, 1999 (1923).
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Graduação I - Letras (FIO). Graduação II- Pedagogia (UNINOVE). Título de Especialista I - Língua Portuguesa e Literatura (UENP). Título de Especialista II- Gestão Escolar: Administração e Supervisão (UNOESTE). Extensão Universitária - Estratégias de Leitura e Produção de Texto/ Estudos Linguísticos e Literários (UENP). Linguística Aplicada (FIO). Ética (USP).
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