30/12/2015
A Pós- Modernidade (segunda metade do século XX) trouxe várias transformações sociais e culturais, muitas vezes, favorecidas e propagadas pelos avanços tecnológicos. Essa mudança de paradigma culminou na instabilidade e na fluidez de ideais e ideias como Estado (justiça), Razão (ciência), Religião (fé).
Esses ideais que antes organizavam- se em corpos doutrinários- Marxismo, Iluminismo e Cristianismo- que caracterizavam um sistema de pensamento e determinavam uma visão de mundo, de homem e de valores caíram em descrédito, esfacelando-se diante de uma realidade líquida, que promove o consumismo, o individualismo e a busca incessante pela satisfação de prazeres imediatos e efêmeros, na qual o sujeito é soterrado pela oferta de sensações externas que dominam seus interesses pessoais e culturais, seus vínculos afetivos e sobretudo, limita sua capacidade de pensar criticamente sobre si e o meio circundante.
Não havendo mais interdição ditada pelas instituições sociais, o homem passa a desacreditar nos valores e crenças utópicos prometidos pela ciência, pela fé e pela justiça no mundo; os valores tornaram-se uma opção e, diante dessa nova realidade, o indivíduo tem a oportunidade de criar seu próprio valor, sua própria crença e consequentemente, sua própria identidade, na qual tudo é inventado, fluido e descartável.
Em outras palavras, o homem já não acredita mais em nada e essa nova consciência traz consigo a insatisfação e a angustia, pois descobriu que não é nada, nada o satisfaz e, assim, caminha para o nada.
Para entendermos um pouco mais esse processo existencial no qual o homem mergulhou, recorremos, sucintamente, a alguns conceitos da Psicanálise.
De acordo com a Psicanálise, o ser humano é movido por dois tipos de pulsão; uma que promove a busca pela vida, pelo crescimento e outra, que conduz o ser ao estado inferior, sem vida, ao nada, denominado poção de morte, esta última, denominada Patologia do Vazio.
Patologia do Vazio é o nome dado às doenças psíquicas que, por vezes, denominamos depressão ou ainda neurose e nelas, o que impera é o vazio existencial, que se explica pela sensação de estar sozinho e pela solidão externa, o que faculta ao indivíduo, a construção da capacidade de estabelecer um contato significativo com o outro, já que as trocas não se estabelecem entre o eu e o outro.
Essa indiferença que o sujeito estabelece com o outro e com o meio circundante, muitas vezes vem associada a comportamentos impulsivos e imprevisíveis, relacionados ao funcionamento instável da psique.
Diante de uma existência marcada pela solidão, pela indiferença, pela falta de sentido e comportamento imprevisível, o vazio e o nada apoderam- se da vida emocional, restando ao indivíduo que padece desse mal, “a paz” sepulcral de uma morte psíquica.
Com base no exposto acima, o foco do presente ensaio apresenta uma breve reflexão sobre como a “Patologia do Vazio” é representada ficcionalmente na Literatura, já que entendemos que uma de suas funções é proporcionar ao leitor, o conhecimento das inquietudes da alma humana. Compreendida dessa forma, a Literatura transforma-se em um instrumento capaz de auxiliar-nos na compreensão do mundo interno humano, ou seja, o funcionamento psíquico.
Partimos então da obra “O Estrangeiro” de Albert Camus, publicada em 1942, para compreendermos como vive e age um indivíduo acometido pelo Vazio Existencial.
O protagonista e também narrador é Meursault, um escriturário modesto de Argel que, ao longo da narrativa, como num diário, vai relatando sua vida.
O romance é dividido em duas partes. A primeira parte da narrativa é caracterizada pela morte de Meursault, num asilo em Marengo, cidade a oitenta KM de Argel, para onde ele viaja a fim de sepultá-la.
“Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele não me podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe "A culpa não é minha". (CAMUS, A. 2009. p. 01)
Podemos claramente notar no trecho acima, indícios da indiferença da personagem em relação à morte da mãe, pois ao relatar a cerimônia fúnebre, Meursault relata a superfície de tudo que se passa, sem qualquer referência ao significado da experiência emocional vivida por ele diante daquele acontecimento. Agindo de forma imperturbável, não demonstrando nenhum sentimento e sem chorar, presencia friamente o enterro.
“Houve ainda a igreja e os aldeões nos passeios, os gerânios vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio do Perez (dir-se-ia um boneco partido), a terra cor de sangue que atiravam para cima do caixão da mãe, a carne branca das raízes que se lhes juntavam, ainda mais gente, vozes, a aldeia, a espera diante de um café, o incessante roncar do motor, e a minha alegria quando o autocarro entrou no ninho de luzes de Argel e que pensei que me ia deitar e dormir durante doze horas”. (CAMUS, A. 2009. p.15)
Mantendo essa posição de indiferença, Meursault parte para sua casa em Argel, feliz por tudo ter se arranjada, como ele gostava de dizer.
Ao longo da narrativa, Meursault vai demonstrando quem ele é, um indivíduo cuja personalidade se distancia dos padrões estabelecidos socialmente. Ele encarna a indiferença e insensibilidade não só no enterro de sua mãe, mas também perante outros acontecimentos, que são tomados por ele, como algo insignificante e sem valor emocional.
Vejamos como ele estabelece a relação amorosa com sua “namorada” Maria.
“Quando nos vestimos na praia, Maria olhava- me com olhos brilhantes. Voltei a beijá-la. A partir daí, não falamos mais (...) só queríamos apanhar depressa um autocarro, ir para minha casa e deitarmos- nos na minha cama (...).
Instantes depois, perguntou- me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não: Ficou com ar triste. Mas, ao preparar o almoço, e sem que viesse a propósito, voltou a rir-se de tal forma, que q beijei outra vez.” (CAMUS, A. 2009. p. 26)
Percebemos que a relação com a “namorada” Maria é marcada pela indiferença, Meursault não a ama, mas também não a odeia, pois não reconhece nela algo que desperte um sentimento amoroso ou intensa paixão. Maria vale para ele enquanto aparência externa que lhe proporciona prazer imediato.
Também não se importa em ser amigo de Raimundo, um cafetão que espanca a amante e por isso, não é querido pela vizinhança.
“Nesse instante preciso, entrou o meu segundo vizinho de andar. No bairro corre o boato que vive à custa das mulheres (...) chama-se Raimundo Sintès (...). Era- me indiferente ser ou não amigo dele e, como isso parecia dar-lhe gosto (...). Fechou o sobrescrito e acabamos o vinho que ainda havia. Depois ficamos uns momentos a fumar, sem dizer uma palavra.
Lá fora tudo estava calmo e ouvimos o ruído um automóvel que passava. Eu disse: “É tarde”. (CAMUS, A. 2009. p. 21)
Notadamente percebemos que, o fato de Meursault ignorar e não chorar a morte da mãe; não amar e o tanto faz casar-se com Maria, a mulher com que dormia; o tanto faz ser ou não amigo de Raimundo, denunciam o conformismo e a indiferença de Meursault diante da realidade absurda de sua existência e que o conduz ao clímax final, a gratuidade de um assassinato.
Numa praia, com cinco tiros, Meursault mata um árabe, no entanto, o episódio é desprovido de qualquer emoção, não há sentimento de ódio, inveja, ciúmes, desejo de vingança e nem intenção premeditada. Ele mata porque o sol estava forte demais.
“Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. (...) Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver.(...) e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça”.(Camus 2009, p.63)
Na segunda parte do romance, Meursault responde pelo assassinato do árabe. No julgamento, alheio a todo o processo, como se nada tivesse acontecido, não se pronuncia a fim de se defender; não demonstra nenhum arrependimento e sem remorso, sem sofrimento, declara, por fim, como justificativa da catástrofe em que se envolvera, o sol forte demais.
“Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargui rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-Lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.” (CAMUS, A. 2009. p. 71)
Nesse trecho do julgamento, indiferente ao que possa acontecer, Meursault fala o que pensa e não tenta amenizar sua situação; para ele, tanto faz a decisão dos jurados. Assim, o centro do processo não será o assassinato do árabe, mas sua indiferença aos valores morais convencionais.
Outro ponto muito significativo, consiste no diálogo entre Meursault e um padre que tenta pregar princípios religiosos para o prisioneiro que estava sendo condenado à morte, mas ele reage com fúria aos dogmas que sustentam a crença e o sentido da vida de muitos, mostrando que aquilo, para ele, não tem sentido nenhum.
"Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si’ – disse o padre. Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-Lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto[...] (CAMUS, A. 2009. p. 83).
O romance termina com a condenação à morte.
A partir da breve análise, podemos concluir que, tudo que resta à Meursault, diante do absurdo de sua existência, é o vazio, simbolizado pela condenação à morte.
Meursault é o estrangeiro num mundo de valores líquidos, privado de justiça, de fé, de ilusões, de sentido, de luz. Por isso, vive ao sabor do acaso, como se viver não fizesse sentido, tudo tanto faz.
Esse sentimento de conformismo, essa indiferença, esse repetido “tanto faz” no qual Meursault mergulha, interpretamos como uma antítese do desejo de vontade e potência que impulsiona a vida, restando-lhe o vazio, da morte existencial.
O tema predominante em “O Estrangeiro” é a morte “um homem que mata outro homem”, mas o significado deste tema no romance não se limita à morte como acontecimento biológico, mas como eliminação de toda a pulsão que promove a vida, restando a Meursault a paz sepulcral de uma existência vazia, sem sentido, na qual mergulhou e foi soterrado.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. (L’Étranger). Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2009.
FREUD, S. O Ego e o Id. Edição Eletrônica das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. CD-Rom, 1999 (1923).
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