Relação entre indícios de disgrafia funcional e desempenho acadêmico

Educação e Pedagogia

06/01/2009

INTRODUÇÃO

No Brasil, a literatura inerente ao desenvolvimento da leitura, da escrita e da matemática é farta, encontrando-se grande quantidade de trabalhos produzidos por diferentes áreas de conhecimento, tais como pedagogia, psicologia, fonoaudiologia, neurologia, entre outras.

No entanto, em se tratando do desenvolvimento da caligrafia, o mesmo não acontece, já que são escassas as pesquisas nacionais voltadas para esse tema. Conseqüentemente, o profissional interessado no desenvolvimento da habilidade da caligrafia tem que recorrer a trabalhos internacionais para obter informações a esse respeito.

A boa caligrafia exige, entre outras coisas, controle motor fino, integração visuo-motora, planejamento motor, propriocepção, percepção visual, atenção sustentada e consciência sensorial dos dedos. Falhas podem resultar em caligrafia ilegível e comprometer o desempenho acadêmico da criança 1. Por essa razão, cresce o interesse em se investigar os aspectos relativos ao diagnóstico 2-9 e intervenção 10-12 de escolares que apresentam problemas com a habilidade de escrever de forma legível.

Embora os trabalhos produzidos em outras culturas contribuam enormemente para o entendimento do tema, deve-se ter claro que os mesmos refletem um tipo de realidade sócio-econômico-cultural totalmente distinta da nossa e, portanto, não se pode afirmar com segurança se os dados por eles obtidos são aplicáveis à nossa população. Nesse sentido, são plenamente justificáveis as pesquisas sobre a caligrafia e, principalmente, sobre os seus distúrbios, nas crianças brasileiras.

Denomina-se de disgrafia a incapacidade do indivíduo produzir uma escrita culturalmente aceitável, apesar de possuir nível intelectual adequado, receber a devida instrução e ser submetido ao mesmo processo de prática da escrita no decorrer de sua formação acadêmica 13 .

Em relação à classificação, em geral, considera-se que a disgrafia pode ser secundária à lesão ou disfunção do sistema nervoso central (SNC). Enquanto a lesão resulta em perda de habilidades anteriormente adquiridas (disgrafia adquirida), a disfunção resulta no desenvolvimento anormal da habilidade de escrever (disgrafia do desenvolvimento) 14,15.

De maneira semelhante, o termo disgrafia funcional é utilizado para se referir àqueles indivíduos com capacidade intelectual normal (ou acima da média), sem déficits sensoriais e lesões neurológicas. Já déficits intelectual, sensorial ou lesão do SNC remetem a digrafia orgânica 16. Ao que parece, essa denominação é a que vem sendo mais utilizada no nosso meio a partir da década de 1990 17 .

No referente às características clínicas da disgrafia, são comuns dificuldade para escrever; produção escrita marcada por mistura de letras (maiúsculas e minúsculas e/ou letras bastão com letra cursiva); traçado de letra ininteligível; traçado de letra incompleto; dificuldade para realizar cópias e falta de respeito à margem do caderno 17 .

Considerando-se, então, que a disgrafia funcional é um distúrbio de aprendizagem e, como tal, pode interferir com o desempenho acadêmico, o objetivo deste estudo é relacionar os sinais indicativos de disgrafia com o desempenho acadêmico em crianças da 3ª. série do ensino fundamental.

 

 MÉTODOS

Foram incluídas no estudo 25 crianças de uma escola pública estadual da Região Metropolitana de Campinas/SP; todas elas matriculadas em uma mesma sala da 3ª. série do ensino fundamental. A escolha dessa sala em especial se deu de forma aleatória. Por meio da análise dos prontuários escolares, constatou-se que nenhuma delas possuía histórico prévio de lesão cerebral e/ou diagnóstico de déficit intelectual. Os pais foram informados sobre o teor da pesquisa e autorizaram seus filhos a participarem do estudo, tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Para a avaliação dos indícios de disgrafia foi utilizada a Escala de Disgrafia de Lorenzini 18, que possibilita analisar os seguintes aspectos da grafia: linhas flutuantes, linhas descendentes e/ou ascendentes, espaço irregular entre as palavras, letras retocadas, curvaturas e angulações das arcadas, pontos de junção, colisões e aderências, movimentos bruscos, irregularidade de dimensão e más formas.

Já a avaliação acadêmica foi realizada por meio do Teste de Desempenho Escolar 19, composto por três subtestes (escrita, aritmética e leitura), que analisa o desempenho da criança em função da idade e da série escolar que freqüenta.

Os testes foram aplicados por uma das pesquisadoras, de forma individual. A criança era retirada da sala de aula e levada a uma sala sem interferências, onde realizava ambos os testes. Cada criança respondeu aos testes em uma única avaliação e o tempo médio com cada uma delas foi de aproximadamente 80 minutos. A coleta de dados junto às crianças foi concluída em aproximadamente 45 dias.

A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Processo no. 143/2007)

Os dados obtidos foram analisados de forma qualitativa e quantitativa. Para a analise estatística utilizou-se o programa SPSS, versão 7.5, tendo sido considerado significativo valor de "p" igual ou menor a 0,05.

 

RESULTADOS

Das 25 crianças que constituíram o grupo de estudo, 12 (48%) eram do sexo masculino. 21 delas (84%) tinham nove anos de idade e dentre as que tinham idade superior a esta (sujeitos 3, 18, 24 e 25), dois (8%) tinham histórico de reprovação (sujeitos 3 e 18) (Tabela 1).

Em relação ao desempenho acadêmico das crianças, avaliado por meio do TDE 19, verificou-se que 15 crianças (60%) tiveram desempenho classificado como inferior no Subteste de Escrita, sendo que um dos sujeitos sequer pontuou. Seis crianças (24%) tiveram desempenho dentro da média e quatro (16%) tiveram desempenho superior. No subteste de aritmética, 10 alunos (40%) tiveram desempenho classificado como inferior. No subteste de leitura 12 crianças (48%) tiveram desempenho classificado como superior e sete como médio (28%). Assim, somente seis sujeitos (24%) tiveram desempenho inferior (Tabela 1).

Analisando-se o desempenho das crianças nos referidos substestes em função do gênero, verificou-se que as meninas tiveram desempenho melhor que os meninos, porém, considerando-se a média de pontos obtida por ambas as categorias (masculino e feminino), esta diferença não foi significativa (Tabela 2).

A avaliação da expressão motora da escrita foi realizada por meio da Escala de Disgrafia de Lorenzini 18, descrita por Oliveira 20. Segundo os critérios dessa escala, considerou-se disgráfica as crianças que obtiveram pontuação igual ou superior a 8,5 (oito pontos e meio), o que equivale à 50% da pontuação total (17 pontos).

Conforme se verifica na Tabela 3, das 25 crianças avaliadas seis apresentaram pontuação compatível com disgrafia, sendo três meninas e três meninos.

Relacionando-se o resultado da escala de disgrafia com o desempenho acadêmico, avaliado pelo TDE, nota-se que somente uma das seis crianças classificada como disgráfica (17%) teve desempenho inferior nos três subtestes do TDE (Tabela 1).

Comparando-se a média de pontos obtida nos subtestes de escrita, aritmética e leitura, em função da presença ou não de escrita disgráfica, verificou-se que os considerados "não disgraficos" tiveram desempenho superior em escrita e aritmética, enquanto que os considerados "disgráficos" tiveram desempenho pouco superior em leitura. Entretanto, essa diferença não foi significativa para nenhum dos grupos (Tabela 4).

 

 DISCUSSÃO

Optou-se pela busca de indícios do quadro de disgrafia, e não pelo seu diagnóstico, porque se partiu do pressuposto de que a disgrafia, como qualquer outro distúrbio de aprendizagem, envolve uma ampla variável de fatores e, assim, para um diagnóstico mais consistente é aconselhável o envolvimento de profissionais de diferentes áreas de atuação 21, fato que não seria possível naquele contexto.

A escolha por alunos da 3ª. série do ensino fundamental se deu pelo fato de que nessa etapa de ensino as crianças já devem estar alfabetizadas, escrevem em letra cursiva e têm pelo menos três anos de treino na expressão escrita. Todos esses fatores levam a crer que as crianças da 3ª. série são capazes de escrever, sob ditado, um pequeno texto de forma legível e compreensível, segundo os padrões exigidos por nossa cultura.

Além dos fatores anteriormente mencionados, considerou-se também que nessa faixa etária as áreas corticais (parieto-occipitais, parietais e frontais) já estão bem desenvolvidas e integradas, possibilitando assim a adequada função motora, sensitiva, acústica e visual 22 que, sabidamente, são necessárias para a produção escrita dentro dos padrões esperados.

Partindo do pressuposto de que a disgrafia é uma disfunção do sistema nervoso central, próprio de crianças com nível intelectual normal e sem deficiências sensoriais ou motoras 23, realizou-se inicialmente a análise da "Ficha Escolar do Aluno" para se identificar se havia presença de um desses fatores no histórico dos alunos avaliados; em nenhuma ficha havia menção a comprometimentos dessa ordem (intelectual, sensorial ou motor).

A partir do resultado do TDE, nota-se que uma grande quantidade de alunos tinha baixo desempenho acadêmico em escrita e aritmética, já que 15/25 e 12/25, respectivamente, tiveram classificação inferior nestes dois subtestes. Contrariamente, em leitura a maioria (19/25) obteve bom desempenho.

Como se sabe, a escrita é considerada a habilidade de comunicação mais complexa a ser adquirida pela criança e a sua aquisição depende não só dos aspectos relacionados à maturação, desenvolvimento e integração do sistema nervoso central, mas também do contexto social do qual a criança faz parte. Na verdade, um ambiente estimulador (rico em materiais escritos e com interações de práticas de leitura), parece influenciar de maneira positiva a aprendizagem da criança.

Além disso, as práticas escolares e extra-escolares de leitura e de escrita produzem efeitos sobre o desenvolvimento da criança, já que contribuem para a ampliação do vocabulário e para um melhor proveito da leitura e da escrita no ambiente escolar.

Não se pode afirmar com certeza se as crianças aqui analisadas possuem ou não um ambiente estimulador, já que esse aspecto não foi investigado nesta pesquisa, porém, a julgar pelo resultado obtido no Subteste de Escrita do TDE, e pelo fato de as crianças não terem qualquer comprometimento de ordem neurológica, pode-se pressupor que esse ambiente não tem sido estimulador o suficiente.

Considerando-se a variável sexo, verificou-se que as meninas tiveram melhor desempenho que os meninos em escrita e leitura e estes, melhor desempenho em aritmética. No entanto, essa diferença não foi estatisticamente significativa. A esse respeito, deve-se considerar que os meninos têm mais problemas para aprender (numa proporção de 6:1) 17 e, assim, os dados aqui encontrados são condizentes com a literatura.

No referente à análise de indicativo de presença (ou não) de escrita com característica disgráfica, verificou-se que 6/25 crianças (24%) tiveram pontuação compatível com esse distúrbio, sendo três meninos e três meninas. Este índice é bem maior do que o que se supunha, uma vez que a literatura indica que esse distúrbio acomete em torno de 3 a 4% da população escolar 24 .

Porcentagem semelhante a nossa (24%) foi encontrada em outro estudo nacional 20, onde se avaliou crianças institucionalizadas que freqüentavam escola pública, com histórico de dificuldade na escrita e com renda familiar de até três salários mínimos. Os grupos controles do referido estudo foram compostos por crianças que freqüentavam escola pública, sem dificuldade de aprendizagem e renda familiar de oito a 12 salários mínimos (GC1) e por crianças que freqüentavam escola privada, sem dificuldade de aprendizagem, com renda familiar de 15 a 30 salários mínimos (GC2). Entre os sujeitos do Grupo GC1 havia 20% de disgráficos, enquanto entre os sujeitos do Grupo GC2 havia somente 8% de disgráficos. A autora concluiu que o fator sócio-economico foi considerado determinante para o diagnóstico de disgrafia funcional, já que as crianças de classe menos favorecidas vivem em ambientes onde é restrito o uso de escrita social, acarretando desvantagens no uso desta prática discursiva da linguagem. No presente estudo, não foi identificado o nível sócio-econômico das crianças avaliadas, o que impede uma comparação mais objetiva com o estudo mencionado.

Quanto à relação entre indicativo de disgrafia e desempenho escolar, avaliado pelo TDE, constatou-se que a escrita foi o fator mais preponderante, uma vez que dentre os seis sujeitos que apresentaram indícios de disgrafia, quatro tiveram desempenho classificado como inferior em escrita (em aritmética essa relação foi de 3/6 e em leitura de 1/6). Por fim, é Interessante mencionar que apenas um sujeito teve desempenho inferior nos três subtestes (escrita, aritmética e leitura), sendo que este apresentou um tipo de escrita que lembra o distúrbio especifico de leitura e escrita. Como se sabe, não é incomum encontrar ambos os distúrbios (dislexia e disgrafia) numa só criança 17,25. Interessante destacar que a literatura vem demonstrando também que há relação entre problemas com a caligrafia e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade 26-31 .

Entre as crianças sem indícios de disgrafia também se constatou grande número com desempenho classificado como inferior em escrita (11/19) e em aritmética (7/19). Comparando-se a média obtida por ambos os grupos (com e sem indícios de disgrafia), nota-se que os que tinham indícios de disgrafia tiveram pior desempenho nos três subtestes, porém a diferença não foi estatisticamente significativa (Tabela 4). Do exposto, depreende-se que, no presente grupo, não houve relação entre desempenho acadêmico e indícios de disgrafia, já que classificação inferior nos substestes de escrita e de aritmética foi observada em ambos os grupos (com e sem indícios de disgrafia).

Como a presente casuística é considerada pequena, há planos de se desenvolver novo estudo, com um número maior de crianças, provenientes de diferentes áreas da nossa região. A idéia é avaliar também em que medida a inadequação da postura da criança durante o ato da escrita interfere com a legibilidade da escrita.

Finalmente, cientes de que o diagnóstico do distúrbio de aprendizagem deve envolver profissionais de diferentes áreas, as seis crianças com indícios de disgrafia foram encaminhadas ao Laboratório de Distúrbio, Dificuldade de aprendizagem e Déficit de Atenção (Disapre) da FCM/Unicamp, para avaliação diagnóstica multidisciplinar.

 

 CONCLUSÃO

No presente estudo seis crianças (24%) matriculadas na 3ª. série do ensino fundamental, apresentaram indícios de disgrafia. A maior parte dos considerados disgráficos (4/6) teve desempenho inferior em escrita e 3/6 tiveram desempenho inferior em aritmética. Porém, não foi possível estabelecer relação entre dificuldade acadêmica com escrita disgráfica, já que desempenho inferior foi identificado também entre as crianças consideradas não disgráficos.

 

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