A psicopatologia é vista como um desequilíbrio a ser transformado
Psicologia
30/01/2014
A Psicopatologia, na perspectiva da Psicologia Analítica, é vista muito mais como um desequilíbrio a ser transformado do que um mal propriamente dito. Trabalha-se aqui com a ideia de que há algo na psique que necessita de atenção e este processo deve ser entendido.
Isso ocorre devido a relação de compensação entre consciente e inconsciente. Se algo é percebido como incômodo à consciência, devemos buscar a fonte deste desequilíbrio em processos inconscientes. A questão a ser feita é: qual parte da psique, qual conteúdo, está precisando ser olhado e atendido?
A busca desta resposta nos leva a perceber quais complexos estão mais atuantes e interferindo nos processos normais executados pelo Ego (Eu). De acordo com Jung (1990), essas interferências são processos naturais não aceitos pelo Ego, mas que devem ser incorporados pelo mesmo a fim de que a personalidade siga seu desenvolvimento no processo de individuação.
É como se os processos patológicos fossem sinais de que algo está em desacordo com o processo natural. Através desta ideia, o “problema” não precisa necessariamente ser corrigido, mas sim compreendido. Não eliminado, mas sim integrado a fim de que a energia utilizada por esse complexo seja transformada e reaproveitada pelo Ego em seu desenvolvimento.
De acordo com Jung, a série de acontecimentos aparentemente tão absurdos, as “loucuras”, adquire, de repente, um sentido; descobrimos um sentido no sem-sentido, conquistando, assim, uma aproximação mais humana do doente mental. Ele é uma pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós, e nem de longe é uma máquina cerebral em desordem. Até hoje predominou a opinião de que o doente mental nada mais manifesta em seus sintomas do que o produto ilógico das células cerebrais. Mas isso não passa de estudo acadêmico, de elucubrações estéreis. Quando, porém, penetramos nos segredos do doente, percebemos que a loucura possui seu sistema próprio, e passamos a reconhecer na doença mental apenas uma reação inusitada a problemas emocionais que pertencem a todos nós. (1990, pg. 149).
Dessa forma, Jung (1990) nos chama a atenção para vermos além dos sintomas. Não o aparente, mas o oculto. Nesta perspectiva, cada sintoma tem algo a dizer ao indivíduo. Nas palavras de Jung: “que objetivo o paciente tentou alcançar com a criação de seu sistema [de sintomas]?” (JUNG, 1990, pg. 168). Para Jung (1990) a busca pelo entendimento do sintoma deve ser achada na subjetividade do indivíduo. Disso advém o fato de que alguns sintomas encontram referencia nos mais diversos sistemas teóricos, outros em crenças primitivas, outros simplesmente aparecem através de desejos. Isso tudo quer nos dizer que o sintoma terá suas raízes em situações, desejos, ideias e características próprias do indivíduo. Apesar de um diagnóstico geral, útil para a convenção das patologias, cada indivíduo elencará características únicas que o remetem a uma sintomatologia própria.
O objetivo deles [doentes mentais] é manifestamente criar um sistema, cujas fórmulas lhes permitam assimilação de fenômenos psíquicos desconhecidos, ou seja, lhes possibilitem ordenar o seu próprio mundo. Esse ordenamento é, de início, meramente subjetivo, embora seja necessariamente um estágio de transição enquanto vai se adaptando sua personalidade ao mundo. No entanto, o doente permanece neste estágio e vê o mundo com sua compreensão subjetiva e por isso é considerado doente. Ele não consegue se libertar do subjetivismo, não encontrando nenhum elo de ligação com o pensamento objetivo, ou seja, com a sociedade. O doente, contudo, não alcança uma compreensão real de si mesmo, enquanto sua compreensão é apenas subjetiva. Uma compreensão apenas subjetiva não é de modo algum uma compreensão verdadeira e definitiva. (JUNG, 1990, pg. 171).
Seguindo por este ponto de vista, percebemos que o doente é apenas alguém que falha em sua tentativa de adaptação ao mundo. Podemos entender esse processo da seguinte forma: desejo algo e, buscando realizar esses desejo, começo a pensar nas várias possibilidades. Ao me perder nestas possibilidades não concretizo meu desejo e começo a ser envolvido de tal forma que não realizo nem o desejo e nem nada. Isso desencadearia sintomas que possuiriam uma ligação simbólica com o desejo inicial. Essa relação simbólica que se apresenta é uma forma de pacto entre a consciência e o inconsciente. Como eles funcionam, dentro da perspectiva da Psicologia Analítica, de forma compensatória, o próprio sistema começa a tentativa de equilibrar-se. Se um dos lados está em falta o outro deve compensar.
De acordo com Jung (1987; 1990), nas pessoas normais, o inconsciente tem a função de estabelecer uma compensação e um equilíbrio com a consciência, atenuando e suavizando as tendências extremistas desta. Não raras vezes, esse processo de equilíbrio vem através de posturas inadequadas ou insensatas que são representações de interesses pulsionais, intelectuais e anímicos. Essas são as ações sintomáticas que nos mostram os sintomas de cada indivíduo. Por outro lado, como são conteúdos e formas vindas do inconsciente se mostram de forma simbólica e numa linguagem primitiva – pois o inconsciente não tem contato com a realidade externa e, portanto, se utiliza de uma linguagem própria. O que ocorre nestas situações é uma liberação intensa dos conteúdos inconscientes na consciência perturbando o equilíbrio e o contato do sujeito com a realidade externa. Sabemos o quanto é forte a natureza do inconsciente.
A pessoa mentalmente desequilibrada tenta se defender contra seu próprio inconsciente, lutando contra suas influências compensatórias. [...] O resultado dessa luta é um estado de excitação que provoca, por sua vez, uma grande desarmonia entre as tendências conscientes e as inconscientes. Os pares de oposição se separam e a consequente cisão conduz à doença, pois o inconsciente começa a se sobrepor violentamente à consciência. Surgem então pensamentos e humores estranhos e incompreensíveis, alucinações que trazem nitidamente a marca do conflito interno. (JUNG, 1990, pg. 191).
O trabalho psicoterapêutico nestes casos deve ser o de compreender a mensagem simbólica do sintoma. Queremos dizer com isso que deve-se compreender o que o inconsciente está nos dizendo através do sintoma que se apresenta.
Adentrando ao desenvolvimento da personalidade, Jung (1990; 1987; 1988) nos chama atenção para o fato de que pode haver uma predisposição psíquica que leve ao conflito e, consequentemente, à doença mental.
Se levarmos em consideração o ambiente no qual o indivíduo se desenvolve, suas relações parentais e disposição genética para algumas deficiências neuroquímicas e hormonais, chegaremos ao ponto em que toda a história do sujeito deve ser avaliada quando nos propomos a estudar essas questões. Como sabemos, um ego se fortalece em relações e ambientes que promovam o seu desenvolvimento. Noutro pólo, a desestrutura das relações e do ambiente pode levar a uma má formação egóica e consequentemente um Ego suscetível aos conflitos com o Inconsciente. Neste sentido, a intervenção não deve ser apenas sobre o sintoma, mas sim na totalidade do ser. Fazer com que o indivíduo visualize essa totalidade própria, é fazer com que ele perceba o outro lado que está em falta, o provocador do desequilíbrio.
O que leva à doença é somente a impossibilidade de a pessoa se libertar de um conflito avassalador. No momento em que o indivíduo percebe que sozinho não pode resolver suas dificuldades e ninguém pode ajudá-lo é que ele entra em pânico e se vê tomado por um caos de emoções e pensamentos estranhos. (JUNG, 1990, pg. 204).
O papel desempenhado pelo Ego neste processo é o de trazer à luz da consciência as falhas do processo, reconhecendo ainda as possibilidades de resolução. Seria este processo, realizado pelo Ego, que promoveria a “cura” no sentido de retornar ao equilíbrio que encaminhará o indivíduo em seu processo de individuação.
Podemos visualizar isso, por exemplo, nos processos obsessivos.
Ao se perguntar “para que se tornar obsessivo” ao invés de simplesmente tentar eliminar a obsessividade lidamos com questões mais profundas da psique. Por esse caminho fazemos o indivíduo refletir sobre a totalidade de suas vivências, o que o motiva estar desta ou daquela forma, quais os ganhos envolvidos e, mais importante, ter consciência do seu processo e escolher de forma consciente seu caminho. Este último ponto se torna importante, pois, para Jung (1985), às vezes, o importante para o indivíduo é apenas ter consciência do processo.
A escolha, vista por este prisma, implica em permanecer ou sair deste estado patológico. (Advém disto uma amplificação da ideia de cura.) Haja vista que o indivíduo deve possuir consciência para refletir sobre o fato de poder ou não permanecer num processo patológico, pois, algumas vezes, a patologia pode ser o que ele tem de mais concreto de si naquele momento.Entretanto, esta escolha implica na responsabilidade do Ego sobre os processos seguintes.
Se é que “cura” significa tornar sadio um doente, cura significa transformação. Sempre que possível, isto é, no caso de a personalidade do doente não ser sacrificada em demasia, ele deve ser transformado terapeuticamente. Mas quando um doente reconhece que a cura por transformação significaria renunciar demais à sua personalidade, o médico deve renunciar à modificação, ou seja, à vontade de curar. [...] na pior das hipóteses poderá chegar a aceitar a sua neurose, porque entendeu o sentido da sua doença. Vários doentes me confessaram que aprenderam a ver com gratidão os seus sintomas neuróticos, pois estes, como um barômetro, sempre lhes mostraram quando e onde tinham desviado de seu caminho individual, ou quando e onde coisas importantes tinham ficado inconscientes. (JUNG, 2004, pg. 8).
Esta visão abre novos campos à psicopatologia. A cura, aqui, não significa retirar o indivíduo do processo patológico ou eliminar a patologia no indivíduo. A cura significa tornar o indivíduo consciente de seu processo e se responsabilizar por suas escolhas. Daí a importância de se ter consciência e reconhecer o papel organizador do Ego.
Ter consciência de e organizar algo vincula-se diretamente à necessidade de relação verdadeira entre consciente e inconsciente. Em outras palavras, entre Ego (Eu) e Self (Si-mesmo).
O patologizar nada mais é do que a ruptura desta relação em algum ponto. E este ponto de ruptura será maior ou menor dependendo da intensidade do complexo ativado. Por exemplo, a queixa do indivíduo irá girar sobre um complexo mais carregado que interfere na organização normal do Ego. A identificação desse complexo irá direcionar o trabalho do profissional e, consequentemente, a conscientização desse complexo (integração de sua energia) e das questões que o envolvem promoverá a cura na forma aqui exposta (JUNG, 1990).
Ao profissional, cabe saber que a história da doença é a história de vida do indivíduo. A patologia não apareceu simplesmente, ela foi se construindo no decorrer do desenvolvimento do indivíduo e o profissional deve compreender essa história a fim de elucidar os movimentos que tornaram a doença possível.
A possibilidade do aparecimento da patologia descreverá a relação entre o Inconsciente e a Consciência e como essa relação afeta e é afetada pelo meio.
É comum o inconsciente ser desfavorável, ou perigoso, por não concordarmos e, portanto, nos opormos a ele. A atitude negativa em relação ao inconsciente, isto é, a ruptura com o mesmo é prejudicial, na medida em que a sua dinâmica é idêntica à energia dos instintos. A falta de solidariedade com o inconsciente significa ausência de instinto, ausência de raízes. (JUNG, 1987, pg. 106).
Como dissemos, Jung (1990) não fez algo sistemático com relação as psicopatologias. O que podemos encontrar no decorrer de sua teoria é um apanhado de ideias e reflexões que enfatizam algumas partes da psique envolvidas no processo de adoecimento juntamente com a distribuição de energia no sistema psíquico. É através destes dois pontos que ele argumenta sobre as psicopatologias.
De acordo com a teoria percebemos que apenas alguns conteúdos são mantidos na consciência e encontramos muitos outros tomados, na visão do Ego, como desnecessários. Neste sentido, a Consciência torna-se um campo seletivo que possui uma formação unilateral. Ou seja, ao excluir determinados conteúdos a Consciência dá prioridade à apenas uma forma de ser menosprezando outros conteúdos que poderiam levar à totalidade do ser. Isso ocorre visto que nos processos conscientes faz-se de tudo para que haja apenas gratificações evitando processos conflituosos (JUNG, 1987).
Neste processo de separação, os conteúdos excluídos formam uma contraposição inconsciente que, quando integrados novamente a Consciência, auxiliam no equilíbrio do aparelho psíquico e, por outro lado, quando não reconhecidos como pertencentes ao sujeito, agravam a situação e geram um conflito que leva o indivíduo à doença. A integração da energia desses conteúdos leva ao equilíbrio e ao desenvolvimento enquanto o contrário leva à doença.
Dessa forma, vemos o processo de adoecimento como uma possibilidade de transformação na qual o Ego deve tomar consciência de que algo deve ser integrado para que continue o desenvolvimento normal da totalidade do ser.
Se a atitude do ego-consciência torna-se muito unilateral e não pode ser modificada por compensação normal, desenvolve-se uma neurose, e a informação que iria compensar a atitude consciente é expressa através dos sintomas. [...] Terapeuticamente, a situação de distúrbio é tratada restabelecendo-se o equilíbrio na distribuição de energia na psique e não buscando a causa na vida exterior. (STEINBERG, 1992, pg. 139.
Compreendemos, portanto, que o sintoma é apenas uma expressão do desequilíbrio gerado pela exclusão de conteúdos que são necessários ao desenvolvimento da Psique mas que, por ter uma visão unilateral e limitada, o Ego exclui da consciência (JUNG, 1990).
Vista dessa forma, a doença não é vista como um mal em si mesma mas sim uma possibilidade do indivíduo repensar suas ações. A doença nesta perspectiva se mostra como uma possibilidade de transformação que se apresenta ao indivíduo.
Ao discutir os processos depressivos, Steinberg nos fala que Jung via uma relação entre depressão e transformação, e estava particularmente interessado em aplicar suas ideias sobre depressão ao estudo desse relacionamento. Para ele, o inconsciente é criativo, isto é, produz conteúdos cujo objetivo é a evolução da personalidade. A necessidade de conhecer estes assunto pode privar o ego de energia e redundar em depressão. Neste caso, a depressão não é uma reação patológica, mas uma consequência natural da necessidade interior de modificação. Em outras palavras, estar deprimido não é necessariamente um sinal de neurose.
Nas depressões transformativas, a libido é atraída por algum conteúdo psíquico que precisa tornar-se consciente, de forma a apressar o processo de individuação. (1992, pg. 137).
Podemos entender nesta citação que Jung (1990) não via a depressão como um processo simplesmente patológico, mas sim como algo que é necessário ocorrer para que o indivíduo tome consciência de alguns conteúdos. Neste sentido, a resolução de uma condição patológica deve passar por um entendimento dos significados inconscientes que permeiam a situação do sujeito.
Jung (1990) não vê somente a depressão dentro dessa perspectiva, mas qualquer patologia pode ser entendida dessa forma – através de um desequilíbrio que necessita de atenção – inclusive as somáticas. Um ótimo exemplo desses processos encontramos na leitura do livro A Doença como Símbolo de Rudiger Dahlke (2008), no qual oferece uma variedade de símbolos relacionados com as patologias.
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por Colunista Portal - Saúde
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