Depois das grades tortas: Reflexos do tratamento manicomial em pacientes de HCTP

A saúde mental avançou muito.
A saúde mental avançou muito.

Psicologia

01/06/2014

INTRODUÇÃO

O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), de responsabilidade da Coordenadoria de Saúde do Sistema Penitenciário, é uma instituição psiquiátrica teoricamente responsável pelo tratamento de pessoas que, em função de sua condição psiquiátrica, cometeram um delito. Absolvidos pela justiça a partir do entendimento que, no momento da ação, encontravam-se prejudicadas a consciência do caráter ilícito do ato e a liberdade para escolher agir ou se abster (CAUM et al, 2007), a eles é aplicada medida de segurança, conforme artigo 26 do Código Penal vicariante.

A submissão de um estabelecimento, cuja proposta é voltada para a saúde, à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária constitui o problema inicial a ser discutido.

A imprevisibilidade quanto à permanência do indivíduo em regime fechado se mostra relevante, quando se pensa na possibilidade de retorno à sociedade mais ampla, uma vez que o processo de institucionalização é extremamente violento.

O que se discute, portanto, é a eficácia do tratamento dispensado aos portadores de sofrimento mental dentro de HCTP, procurando avaliar se está em conformidade com as diretrizes e estudos produzidos pela Reforma Psiquiátrica, bem como possíveis violações aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo.

A relevância deste trabalho reside fundamentalmente na necessidade de questionar a discussão acerca da Reforma Psiquiátrica que, apesar de amplamente disseminada nos meios intelectuais, encontra-se restrita no tangente aos HCTP. É de suma importância investigar os reflexos da institucionalização para egressos da psiquiatria penitenciária, já que o referido sistema ainda pauta o tratamento de seus custodiados na lógica manicomial.

O que se procura, portanto, é demonstrar a ineficiência do tratamento psiquiátrico no HCTP, a partir da dinâmica institucional sob a qual vivem os indivíduos no regime fechado.

Isto posto, fundamenta-se a necessidade desta pesquisa no sentido de fornecer material para que a humanização trazida pela Reforma Psiquiátrica estenda-se aos portadores de sofrimento mental em medida de segurança.

Para isso foram utilizados relatórios pessoais da autora, elaborados entre agosto de 2011 e junho de 2012 a partir de vivência como estagiária em um HCTP. Com base na teoria de Goffman, na literatura dos psicólogos Sidnei Corocine e Margarida Mamede e no método conhecido como Zonas de Sentido, extraiu-se particularidades do discurso de cada sujeito quanto à vivência institucional e à perspectiva de reinserção social, de modo que fosse possível identificar as consequências advindas do tratamento em um local que, mesmo após anos de Reforma Psiquiátrica, ainda é permeado pela lógica manicomial.


1 MEDIDA DE SEGURANÇA


Segundo Cohen e Marcolino (2006), os romanos foram os primeiros a relacionar a doença mental com a justiça, no sentido de atenuar a responsabilidade do criminoso sobre o delito, caso ele estivesse embriagado ou mentalmente doente no momento em que o crime foi praticado. Consta também que foram eles os criadores de leis que vetavam o exercício de direitos civis dos doentes mentais. Cabia ao juiz, até então, decidir se o sujeito era doente mental.

Historicamente "a primeira codificação da medida de segurança apareceu no Código Penal suíço, em 1893 e, posteriormente, no Código Penal português, em 1896, e no italiano, em 1930" (COHEN, 2006, pg. 125).

A capacidade de imputação jurídica corresponde ao estado psicológico do indivíduo de compreender o caráter ilícito do fato e capacidade de posicionar-se diante desta compreensão, levando em conta as consequências do ato e sua natureza e se excluindo possíveis condições patológicas que venham a dominar a vontade do indivíduo. Ou seja, para ser juridicamente responsável pelo crime cometido, o indivíduo deve ter, no momento da ação, consciência do caráter da ação e liberdade para escolher se agirá ou não. Esta capacidade pode ser nula, parcial ou total (CAUM et al, 2007) e, após perícia com profissionais da saúde, o indivíduo será classificado como inimputável, semi-imputável ou imputável, respectivamente.

Disposto no artigo 97 do Código Penal Brasileiro (CPB):

Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.

§ 1º A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos.

§ 2º A perícia médica realizar-se-á ao tempo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução.

Se o agente for inimputável, o juiz aplicará medida de segurança e determinará sua internação, o que também é válido para os casos em que o indivíduo apresentar comprometimento psiquiátrico durante o cumprimento de pena em estabelecimento penitenciário comum (Cohen, 2006). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial" (GRECO, 2011, p. 194), devendo comparecer a HCTP em determinados dias para receber o tratamento. Ou seja, a medida de segurança pode ter caráter restritivo, quando, segundo a lei, ao sujeito é determinado tratamento ambulatorial, ou caráter detentivo, em que se embasa este trabalho. A duração do tratamento, conforme o mesmo dispositivo, é indeterminada, e depende também de perícia médica, costumeiramente realizada dentro da unidade que, segundo o artigo 99 do CPB e reafirma a LEP, dispõe:

Art 99. O internado deverá ser recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento.
O que se procura averiguar com o procedimento pericial é a cessação de periculosidade do agente, uma vez que prevalece o entendimento do caráter preventivo da medida de segurança, de modo a evitar o cometimento de novos crimes por parte do agente inimputável. A base para esta prevenção é o comportamento pregresso do indivíduo e suas condições sociais e familiares na sociedade mais ampla.

Conforme a Lei de Execução Penal:

Art 175. diligências, serão ouvidos, sucessivamente, o Ministério Público e o curador ou defensor, no prazo de 3 (três) dias para cada um;

IV - o Juiz nomeará curador ou defensor para o agente que não o tiver;

V - o Juiz, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, poderá determinar novas diligências, ainda que expirado o prazo de duração mínima da medida de segurança;

VI - ouvidas as partes ou realizadas as diligências a que se refere o inciso anterior, o Juiz proferirá a sua decisão, no prazo de 5 (cinco) dias.

Art. 176. Em qualquer tempo, ainda no decorrer do prazo mínimo de duração da medida de segurança, poderá o Juiz da execução, diante de requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado, seu procurador ou defensor, ordenar o exame para que se verifique a cessação da periculosidade, procedendo-se nos termos do artigo anterior.

Art. 177. Nos exames sucessivos para verificar-se a cessação da periculosidade, observar-se-á, no que lhes for aplicável, o disposto no artigo anterior.

Para retornar ao convívio extramuros, o paciente deve, no momento da avaliação, estar globalmente orientado e responder ao perito aquilo que é imposto como verdade nas descrições em prontuário - independente da verdade do fato, de possíveis falhas de memória e coerente ansiedade diante desta situação, em que um desconhecido definirá o próximo ano de sua vida. Isso abarca tanto os pacientes em delírio quanto aqueles em gozo de suas faculdades mentais. Os primeiros, no entanto, já caminham para a perícia em covarde desvantagem. Isso reforça a ideia de que o crime pode não estar ligado à loucura, mas sim a loucura ao crime.


1.1 HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO (HCTP)

Corocine citando Cunha (2005) contextualiza o surgimento do hospício em São Paulo concomitante à revolução industrial, período em que se constatou crescimento urbano e elevação de níveis de marginalidade (delitos, prostituição, vícios, miséria e doenças), vista como característica hereditária de uma geração de degenerados.

Em 1921, no Rio de Janeiro, foi criado o primeiro manicômio judiciário do Brasil, seguido por Porto Alegre em 1902 e Franco da Rocha, em 1933, referido como o maior abrigo para doentes mentais delinquentes do Brasil, sempre pautados no interesse da elite em evitar epidemias de contágio (Tavolaro, 2006).

A saúde mental avançou muito, mas o público de HCTP permanece abandonado à própria sorte, o que, num contexto atual sugere mera modernização da época dos asilos. Mamede (2006) relata que desde os primeiros manicômios judiciários é chocante perceber que os mecanismos que regem estes lugares são doentes:

“reproduzem uma série de descasos, insalubridades, que vão desde o abandono por cuidados básicos da saúde física e mental, até a negligência do Estado como um todo, que “empurra” a pessoa para lá, tentando livrar-se da responsabilidade pelos cuidados que o paciente precisa receber” (MAMEDE, 2006, p. 29).

Com a ditadura militar, o manicômio tornou-se degradado: os 420 leitos disponíveis passaram a abrigar 1800 pessoas e o atendimento, consequentemente, era precário: a maioria dos exames era assinada com o mesmo diagnóstico: esquizofrenia paranoide.

Os pacientes eram submetidos à rígida disciplina e tratamentos desumanos, como eletrochoques, banhos de água excessivamente fria ou quente e doses altíssimas de remédios, além de passarem por sessões nas quais se injetava o vírus da malária no paciente para tratamento de outras doenças e da agressividade. As refeições eram feitas coletivamente em buracos abertos no chão; as solitárias eram escuras e sem condições sanitárias mínimas. O resultado era a morte de inúmeros internos, por frio, fome e/ou diarreia. No fim da década de 60, urubus sobrevoavam a região, atraídos pela carniça humana.

Com o progressivo fim da época militar, o ambiente tornava-se menos tumultuado e violento. Ainda assim os pacientes eram tratados fundamentalmente com narcolépticos, mas quando voltavam às ruas, eram abandonados e reincidiam no crime, vítimas de outro surto psicótico. Para Oliveira (1999), submeter as pessoas a situações de violência exagerada alegando que se trata de segurança, começou cedo. O comportamento normal era ditado pela instituição religiosa, cuja representação era o 'bem' advindo de Deus e o 'mal', do demônio. A teoria de Hipócrates (460 - 377 a.C.) quanto ao cérebro ser responsável pelo comportamento foi descartada, e a igreja mantinha-se no domínio. A este respeito, Oliveira citando Holmes (1999; 1997) afirma que os indivíduos que apresentavam comportamentos anormais eram tidos como uma ameaça para a sociedade que, para ser protegida, precisava eliminar aquelas pessoas, quando o exorcismo falhava. Atualmente o HCTP é a instituição responsável por essa "proteção". No entanto, as condições de trabalho são insalubres e o material disponível é precário e insuficiente, assim como a equipe de profissionais, que pouco preparo tem para lidar com a saúde do paciente infrator, em um tipo de instituição cujo funcionamento encontra base nas técnicas penitenciárias (Mamede, 2006). A própria categoria "doente mental", segundo Goffman (2008), refere-se aos indivíduos cuja interpretação psiquiátrica a seu respeito muda seu destino social. Também a percepção da loucura advém de estereótipos culturais, devendo os indivíduos aceitar o que lhes é imposto e isso inclui interpretações a seu respeito, prejudicando sua individualidade.

Para Carrara (1998), o HCTP sustenta "uma prática secular de contenção, moralização e disciplinarização de indivíduos socialmente desviantes" (CARRARA, 1998, p. 27) mascarada pelo discurso médico em uma instituição dita psiquiátrica. É importante salientar que a lei também faz uso desta máscara, alegando absolvição e impondo reclusão. A interface entre a saúde mental e a justiça reúne em um único local "duas das realidades mais deprimentes das sociedades modernas - asilo de alienados e a prisão - e, do outro, dois fantasmas mais trágicos que nos 'perseguem' a todos - o criminoso e o louco" (CARRARA, 1998, p. 26).


2 REFORMA PSIQUIÁTRICA


Define Amarante que, em território nacional,

a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização (AMARANTE, 1995, p, 91).

Assim, é possível afirmar que a reforma psiquiátrica como se conhece hoje nasceu, no Brasil, a partir de uma crítica à própria psiquiatria e com o propósito de resgatar a cidadania do louco, aliado ao processo de redemocratização nacional. O período da reforma sanitária, como ficou conhecido o movimento que reivindicava melhor gestão administrativa e financeira, bem como acessibilidade ao sistema de saúde, foi marcado por incontáveis propostas que não eram aplicadas. Conforme apontam Paulin e Turato (2004), o período foi marcado:

pelos inúmeros planos, manuais e ordens de serviço propostos no intuito de viabilizar uma prática psiquiátrica comunitária, preventista, extra-hospitalar e terapêutica. Todavia, o que predominou foi a política de privilegiamento do setor privado, por meio da contratação, pela Previdência Social, de serviços de terceiros, expandindo significativamente o modelo hospitalar no Brasil (PAULIN, TURATO, 2004, p. 256).

Conforme salienta Tenório, "não se criticavam os pressupostos do asilo e da psiquiatria, mas seus excessos ou desvios" (TENÓRIO, 2002, p. 32). Foi só em 1978, com o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, pautado em reclamações sobre as condições de trabalho e falta de humanidade no tratamento do louco, que a reforma ganhou contornos mais marcantes.

Na década de 80, a questão dos direitos do louco ainda estava restrita às discussões da reforma sanitária, e os ambulatórios criados não se distanciavam do modelo manicomial.

Na I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, foi percebida a resistência frente à implantação das propostas da reforma sanitária, bem como a intenção de retirar seu caráter comunitário (Tenório citando Bezerra Jr e Amarante), assim nascendo a desinstitucionalização, com fins de "desconstruir no cotidiano das instituições e da sociedade as formas arraigadas de lidar com a loucura" (TENÓRIO, 2002, p. 35). No então Movimento da Luta Antimanicomial, o que se procura é uma interação entre usuários do serviço, família e comunidade, fora dos asilos.

Tenório citando Vasconcelos (1992) aponta para a Lei da Reforma Psiquiátrica, o projeto de lei nº3.657/89, do deputado Paulo Delgado (PT-MG), cujo conteúdo, em três artigos, vetava a construção e contratação de hospitais psiquiátricos, pelo poder público, sendo esta mesma verba destinada à criação de equipamentos substitutivos, "e o terceiro obrigava a comunicação das internações compulsórias à autoridade judiciária, que deveria então emitir parecer sobre a legalidade da internação" (TENÓRIO, 2002, p. 36).


3 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Entende-se como direitos fundamentais um conjunto de direitos de todo homem, que seriam anteriores à própria lei, construídos ao longo da história, reconhecidos e positivados no ordenamento jurídico em razão de sua importância. Com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, teve início a primeira geração dos chamados direitos fundamentais. Nasceu da necessidade de maior proteção dos direitos do indivíduo, civis e abstratos, ligados essencialmente à liberdade. Afirma Moraes que “são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos (liberdades públicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Cartha” (MORAES, 2013, p. 29). A ideia era proteger as pessoas da arbitrariedade do Estado, restringindo sua atuação.

O liberalismo foi acompanhado pelo modo de produção capitalista e busca desenfreada por lucro, a qualquer custo. Aqueles que dominavam o dinheiro dominavam também a força de trabalho dos menos favorecidos, em um contexto de extrema vulnerabilidade do proletariado, o que acarretou a necessidade de alguma intervenção estatal na esfera econômica e social.

A segunda geração de direitos fundamentais propõe transformar em concretos os direitos abstratos. Surgiram constituições que elevavam os direitos sociais, ligados à igualdade. A liberdade passou a ser um direito como os outros e não acima deles, devendo o Estado garantir proteção e meios de exercê-la. Os direitos trabalhistas, seguridade social e amparo aos idosos são exemplo desta geração de direitos sociais, conforme Moraes citando Themistocles Brandão Cavalcanti (2013).

Referentes à solidariedade, a terceira geração de direitos fundamentais parte de uma óptica global, ou seja, zelam pela humanidade como um todo. “[...] englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos (MORAES, 2013, p. 29)”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amplamente disseminada nos meios acadêmicos e da saúde, a Lei da Reforma Psiquiátrica implicou em estímulo para a elaboração de novas normas, no tangente ao tratamento dos portadores de sofrimento mental. A criação de novos equipamentos em saúde mental, bem como o protagonismo da equipe psicossocial, em substituição ao ultrapassado modelo hospitalocêntrico, fundamentado na figura do médico, e maior participação da família e do usuário do serviço, são exemplos relevantes.

No plano legal, apesar dos projetos de alteração do Código Penal e da Lei de Execução Penal, o que se percebe é que não houve adequação à legislação supra, ao dispositivo constitucional e nem aos dispositivos internacionais. Pelo contrário: a medida de segurança tem se mostrado um retrocesso absoluto e indiscriminado, afetando diretamente o indivíduo custodiado, em sentido oposto ao discurso de seu propósito: tratar portadores de sofrimento mental que tenham, em função desta condição, cometido um crime.

A lógica de funcionamento da instituição, além de perversa, contraria a Lei 10.216/01 em praticamente todos os seus artigos, o que sugere ter prevalecido o conceito de periculosidade como relevante e determinante no tipo de tratamento dispensado à população do Hospital de Custódia.

O artigo 1º da referida lei é violado no sentido de não serem assegurados os direitos do indivíduo. O conceito abstrato de periculosidade, como já mencionado, se apresenta como forma de discriminação, aliado à própria condição psiquiátrica do sujeito, uma vez que a todos eles a lei limita o exercício de direitos civis. Quando se pensa na questão da interface com a justiça, também fica evidente a discriminação ao portador de sofrimento mental, quando aquela não estende a estes os direitos, benefícios e garantias próprios dos réus, como as medidas alternativas.

A participação da família é cada vez menor, não havendo, em muitos casos, um trabalho mais eficiente no sentido de incluí-la no processo terapêutico. A isso soma-se a restrição imposta pela lei quanto aos visitantes. Apenas parentes de primeiro grau podem visitar o custodiado, salvo quando a este não restar vínculos, podendo, assim, receber amigos e parentes mais distantes – isto apesar de a Lei de Execução Penal determinar, em seu artigo 41, inciso X, que é direito do preso receber:

X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados.

Em que pese o pertencimento da instituição à administração penitenciária estatal, o procedimento de revista é, mais que rígido, vexatório, e.g. o comando emitido para que a mulher, totalmente despida, abaixe e levante sobre um espelho posicionado no chão. De acordo com os dados coletados, este procedimento, bem como a dificuldade de acesso ao HCTP, contribuem para o gradual abandono dos portadores de sofrimento mental.

A violação ao artigo 2º da Lei 10.216/01 já parte do caput; os direitos previstos nos incisos não são garantidos à população em medida de segurança, tão pouco comunicados aos pacientes e seus familiares.

Art. 2º. Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Não se aplica, efetivamente, um tratamento individualizado, nem as condições básicas e mais fundamentais de infraestrutura são encontradas. Além disso, em média, são cem pacientes para cada psiquiatra, que comparecem à instituição uma única vez por semana para atender aos pacientes do pavilhão no qual é referência e aos casos de emergência. Assim, quando um paciente é transferido para outro pavilhão, é afastado da equipe que o acompanhava, passando a ser acompanhado por outra equipe de profissionais (nem sempre completa, mas que contaria com um médico, um psicólogo, um assistente social e um advogado).

A quantidade de profissionais é inferior à demanda, tornando o atendimento precário e ineficiente: via de regra, os pacientes levam dias – até meses – para receber o retorno de uma solicitação simples, como o andamento do processo, a data da perícia ou um contato com a família. Em decorrência do elevado grau de ansiedade, insistem, gerando desconforto para a equipe, que não rem qualquer preparo e respaldo oficial para lidar com os pacientes. Não raro se pode presenciar a falta de respeito diante do sofrimento do indivíduo no discurso dos funcionários, por vezes culminando em agressões físicas. Em conversas informais durante os intervalos não há discernimento, sendo pressuposto que a todos do hospital cabe ouvir o que quer que seja a respeito do paciente, e o assunto costuma girar em torno de suas mais recentes atividades. Não há razão, teoricamente, para que estas conversas sirvam apenas para criticar, e nunca elogiá-lo, “a não ser que se suponha que a conversa a respeito dos ausentes tende sempre a ser crítica, a fim de manter a integridade e o prestígio do círculo em que a conversa ocorre” (GOFFMAN, 2008, p. 137).
O setor de educação, além de uma escola inexpressiva, oferece atividades de lazer abertas a quem quiser participar. É, para eles, a única parte boa da instituição. Há aulas e campeonatos de videokê e de teatro, além de providenciarem a decoração para os eventos. A arte é um modo de expressão e de contato com a própria subjetividade e, neste sentido, extremamente terapêutica.

A instituição conta com apenas uma terapeuta ocupacional. Este setor promove atividades artesanais, de limpeza das dependências da instituição e na cozinha, para servir a comida aos demais pacientes. Ainda em relação a trabalho, a FUNAP também atua remunerando pacientes que desempenham a restauração de móveis. Já que as vagas disponíveis são restritas, a maioria não executa qualquer tipo de atividade laboral, o que influencia de forma negativa o processo de desinstitucionalização: os pacientes não aprendem nada que possa lhes ser útil na sociedade mais ampla. A quantidade de aparelhos de televisão é limitada por pavilhão, e o que se costuma assistir é a filmes. Não há nenhum trabalho com dados de realidade, nem a possibilidade de acesso à internet ou a jornais e revistas – o que se pode perceber é a completa alienação do indivíduo em relação ao que acontece extra muros.

Todo tipo de tratamento disponível é realizado dentro de ambiente fechado e controlado, com Agentes de Segurança Penitenciária distribuídos por todos os cantos. É com eles o maior contato dos pacientes – até mesmo nos casos de surto, a segurança é o setor responsável por conter e encaminhar o indivíduo à clínica médica, onde a enfermagem atua. Assim, é mais do que esperado que até mesmo aqueles que conhecem a realidade do HCTP sustentem a ideia equivocada de que ali estão loucos perigosos, que devem ser mantidos afastados da sociedade mais ampla por questão de segurança.

A instituição conta com muito mais Agentes de Segurança Penitenciária do que profissionais da saúde e não é percebida como local de tratamento. Muitos dos pacientes sentem que a única forma de deixar a instituição é morrendo - em decorrência da idade, do excesso de medicação ou da carência de cuidados médicos. Trata-se de um ambiente onde as emoções são patologizadas e a solução da equipe dirigente para todos os tipos de conflito é a medicação, em forma de punição.

A Constituição Federal traz, em seu artigo 5º, direitos e deveres individuais e coletivos:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

XII - é inviolável o sigilo da correspondência [...], salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

XLVII - não haverá penas:

b) de caráter perpétuo

e) cruéis XLLIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado.

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo ficado na sentença.

Pretende a Constituição Federal atribuir ao indivíduo, criminoso comum ou inimputável, o cumprimento à sua pena, assegurando ambientes distintos para crimes distintos, com direitos básicos de convivência reclusa, sem tortura, ainda que psicológica ou física, sem sujeição a degradação e, sobretudo, com a garantia de tratamento humano, sendo fator determinante o respeito e manutenção de sua integridade física e moral.

Neste aspecto incluem-se o direito preliminar à viabilidade de acesso a informações que atinjam o sujeito recluso, bem como a correspondências a ele direcionadas, salvo decisão judicial em contrário.

De importância máxima e fundamental, destaca-se a intenção dos legisladores, quando o inciso XLVII dispõe sobre a inaceitabilidade de penas de caráter perpétuo e/ou cruéis, de que, a quaisquer indivíduos condenados pode ou deve ser imputada reclusão, mas de caráter temporário e definido, assim como, jamais sob crueldade alguma. Demonstra, irrefutavelmente, esta pretensão, o dever de indenizar imputado ao próprio Estado, em caso de suposto erro nessa direção.

Diante do exposto, o HCTP figura como realidade alheia à própria legislação constitucional – constitui-se como instituição total, um local típico de invasão de território, com caráter de absoluto fechamento e de vigilância total, facilmente percebido nos edifícios panópticos. Nela, o sujeito vive as três esferas de sua vida (trabalho, lazer e sono) com as mesmas pessoas, nos mesmos lugares e horários, por longo período. Todo o tempo do indivíduo é posto à disposição da equipe dirigente, cuja relação com os internos é marcada por estereótipos hostis e limitados. A parte psiquiátrica deve impor sua soberania, no intuito de sustentar o modelo asilar, devendo mostrar para o paciente que ele é um fracasso. Este, por sua vez, deve compreender e aceitar o que interpretam a seu respeito (Goffman, 2008).

Dispõe o artigo 4º da Lei 10.216/01:

Art. 4º. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§ 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o.

Em um local destinado ao tratamento, não são as regras hospitalares, mas as penitenciárias que estruturalmente prevalecem, fato que dificulta o bem estar dos pacientes, tão necessário para a eficácia do tratar.

A convocação dos pacientes para as refeições e volta aos pavilhões por meio de sinais sonoros, a comida pouco apetitosa, o chão quebrado, a sujeira, os pombos e ratos, a falta constante de medicamentos e suprimentos para o manejo de auto cuidado e pouca capacitação dos funcionários em lidar com os pacientes cria um clima inapropriado em um espaço que deveria primar pelo conforto e acolhimento do sofrimento psíquico a fim de possibilitar o tratamento do público da instituição. Tudo isso repetindo-se há décadas não oferece perspectivas extra muros aos que ali se encontram depositados.

O desconhecimento quanto ao término da medida de segurança é gerador de sofrimento psíquico intenso e pode ser sentido pelo paciente como pena perpétua (efetivamente pode assim se tornar), o que é proibido pela Constituição Federal. Além disso, é comum que o paciente atribua juízos de valor ao delito que cometeu, apesar de ser representado pelo mesmo artigo do Código Penal que o de um indivíduo sem medida de segurança. Assim, o paciente nunca sabe quando deixará de ser perigoso e descobre que não está em suas mãos tornar isso tangível. Tudo isso somado a uma quantidade grande de psicotrópicos, assistência precária e uma quantidade grande de diagnósticos inconsistentes, onde um mesmo prontuário apresenta patologias excludentes, em um ambiente onde a soberania médica impera. Nesses mesmos prontuários são expostas situações que sustentam a necessidade de internação; o corriqueiro pedido de medicamento para cefaleia pode lhe trazer a sensação de que seu próximo laudo, em função disso, aumentará.

O desconhecimento quanto ao período de internação alimenta este tipo de pensamento e cristaliza, aos poucos, o que Goffman (2008) chamou de mortificação do eu, processo que consiste na transformação do indivíduo em objeto, despindo-o de sua identidade pessoal e acarretando a perda de seus papeis sociais e defesas socialmente aceitas. Também a super população, violação de privacidade presente na censura das cartas, telefonemas vigiados e limitados, banheiros sem porta e falta de discernimento quanto a informações descritas em prontuários tem a ver com uma ideia percebida dentro dos sentidos da instituição, que implica negar o eu anterior. Isso porque, a partir da internação, torna-se impossível para o indivíduo desenvolver qualquer papel que não o de internado. A mortificação do eu há de se tornar marca permanente - um estigma, uma especialização no papel de internado que já não envolve o eu civil. Diante do exposto e da experiência de dois anos dentro da instituição, tendo tido a oportunidade de ouvir vozes mudas para o mundo e de observar os reflexos violentos sobre os indivíduos ali custodiados, o que se percebe é que este esquema cria uma estrutura que em nada favorece o tratamento, que o desumaniza de forma intencional e procura amarrar a todos, por bem ou por mal, a este emaranhado que oferece diminutas possibilidades de mudança.


REFERÊNCIAS

AGUIAR, W.M.J., OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: ciência e profissão. 2006, 26 (2), 222-245.

Amarante, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, SDE/ENSP, 1995.

BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. São Paulo: 1ªed., Martin Claret, 2002.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

______. Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

______. Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.

______. Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2,848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e dá outras providências.

______. Lei Nº 12.433, de 29 de junho de 2011. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), para dispor sobre a remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho.

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Lorena Torquato Videira

por Lorena Torquato Videira

Psicóloga, especialista em saúde mental e estudante de direito. Desenvolve trabalhos e pesquisas voltados à área das medidas de segurança.

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