De acordo com Armando R. Favazza*, a automutilação pode ser dividida em duas principais categorias:
1) Automutilação Culturalmente Sancionada: relacionada a rituais e práticas tribais com o objetivo de promover a cura, a espiritualidade e a ordem social e;
2) Automutilação Desviante/Patológica: classificada em três categorias observáveis baseadas no nível de destruição do tecido e a média e padrão do comportamento. São elas:
a) Maior: comumente associada à psicose e intoxicação aguda. Geralmente, são atos severos e infrequentes de enucleação do olho, castração e amputação de algum membro como resposta a alucinações de cunho religioso ou sexual;
b) Estereotípica: atos repetitivos e rítmicos de bater a cabeça, morder os lábios e pressionar o globo ocular, predominantes em pessoas com retardo mental ou com Psicose Aguda, Esquizofrenia, Autismo, Síndrome de Lesch-Nyhan, Síndrome de deLange, Distúrbio de Rett, Neuroacantose e Síndrome de Tourette e;
c) Moderada/Superficial: é o tipo mais comum. Sem ritmo, com pouco dano tecidual e menor mortalidade. As formas de se mutilar podem ser: cortar, queimar, arranhar, enfiar agulhas ou cavar desenhos, palavras e símbolos na pele, mexer em feridas que estão em cicatrização, quebrar ossos, socar-se, morder as unhas e arrancar os cabelos. Em muitos casos, o uso de instrumentos como fósforos, faca, lâminas de barbear, estilete ajudam no ato. De acordo com Tracy Alderman**, neste tipo de automutilação o indivíduo não perde contato com a realidade e os atos acontecem por razões emocionais ou psicológicas. A automutilação moderada/superficial é ainda subdividida em três tipos:
i) Compulsiva: ocorrem várias vezes por dia de forma repetitiva e ritualística. Fazem parte deste tipo: arrancar cabelos e condições psicodermatológicas como mexer na pele compulsivamente para tentar remover manchas;
ii) Episódica: como o próprio nome diz, ocorre de vez em quando e em muitas situações, já que o intuito é conseguir uma pausa de pensamentos e emoções angustiantes, sentir-se melhor e tentar ganhar autocontrole e;
iii) Repetitiva: aqui existe um aumento no número dos episódios automutilativos se comparado à Automutilação Episódica e o ato de se machucar vira uma preocupação na vida do indivíduo, tornando-se uma dependência.
É este o tipo de Automutilação que será discutido aqui:
De acordo com Alderman, dentre as diversas formas de Automutilação Moderada/Superficial Repetitiva, a mais comum é o self-cutting (cortar-se). Os cortes são feitos, na maioria dos casos, em partes do corpo que podem ser facilmente acessadas e escondidas: braços, pulsos, pernas e peito. Além disso, nestas áreas, os cortes podem ser explicados sem dificuldades e sem comprometimento: “eu caí”, “o gato me arranhou”, são explicações dadas bastante comuns. Outras pessoas utilizam o abdome, rosto, pescoço, seios e órgãos genitais. Em geral, o self-cutting segue um ritual em termos de ambiente, instrumento e/ou procedimento. O ambiente escolhido pela maioria das pessoas é a sua própria casa, já que ela oferece a privacidade e a reclusão desejadas, além de ser um local que propicia sentimentos de isolamento e solidão - sentimentos que ajudam a precipitar o ato. Os instrumentos mais utilizados para cortar-se são: faca, lâmina de barbear, pedaço de vidro e objetos afiados. O procedimento inclui preparar o ambiente e o instrumento para então engajar na atividade propriamente dita. Também pode haver um ritual após o ato: cuidar da ferida com banhos, pomadas e esparadrapos e documentar o ato através de fotos e diários.
Em linhas gerais, o sujeito que se mutila está com uma profunda dor emocional. Machucar-se é a melhor ou a única forma encontrada por ele para aliviar sentimentos como raiva, impotência, culpa, dor, estranhamento, solidão, tédio, falta de controle, estresse, tensão e ansiedade. Apesar de a automutilação não ser a forma mais adequada de expressar e liberar os conflitos internos, ela é a única ou a melhor solução encontrada por ele naquele momento. É uma questão de sobrevivência em um momento de forte crise psicológica. Aqui, o fator mental e emocional é mais importante que o fator físico e, portanto, o físico é mutilado a fim de servir a um propósito maior: evitar a morte real do sujeito.
Segundo Favazza:
"Um entendimento básico é que a pessoa que realmente tenta o suicídio busca acabar com todos os seus sentimentos, enquanto que a pessoa que se mutila busca sentir-se melhor".
Ao infligir danos no corpo físico, o automutilador libera opióides endógenos - encefalina e endorfina - cessando imediatamente sua dor emocional e trazendo assim, alívio, bem estar e relaxamento. Infelizmente, estas sensações prazerosas duram pouco. Em uma próxima turbulência emocional, ele poderá se mutilar em busca do alívio e da sensação de bem estar uma vez sentidos. Com o tempo, necessitará cada vez mais atos automutilativos e em maior intensidade para obter a mesma resposta e, através da repetição destes comportamentos, se determinará a automutilação como dependência, até chegar ao ponto em que ele não vê mais saída.
Para ajudar este indivíduo que sofre em silêncio e sente uma vergonha imensa dos seus atos, é fundamental que familiares, amigos e profissionais de saúde o compreendam e lhe deem o apoio psicológico que necessita. O automutilador é alguém que está com uma profunda dor emocional e necessita de alguém que confie nele e possa ajudá-lo.
(Apesar de haver alguns casos de tatuagem e piercings no corpo que se encaixam na categoria de automutilação, eles não são considerados como tal por esses autores, uma vez que os métodos são diferentes - a aplicação é feita por terceiros - e o objetivo é outro - quem faz tatuagem e piercing tem orgulho e quer se mostrar, ao contrário do automutilador que busca esconder suas feridas a todo custo.)
*Armando R. Favazza é professor do Departmento de Psiquiatria e Neurologia da Escola de Medicina da Universidade Missouri-Columbia e cofundador da Sociedade para o Estudo da Cultura e Psiquiatria e autor do livro pioneiro sobre Automutilação, "Bodies under siege: self-mutilation and body modification in culture and psychiatry" (Corpos cercados: automutilação e modificação do corpo na cultura e na psiquiatria – sem tradução para o Português).
**Tracy Alderman é doutora, psicóloga clínica com experiência em Automutilação, psicóloga do Departamento de Correção e Habilitação da Califórnia, diretora de pesquisa e membro da Universidade para Estudos Humanísticos e professora assistente de Psicologia na Universidade Chapman.
Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.
por Cristina Me Ling Chen Yamada
Escritora. Formada em Psicologia e Coaching de Bem-Estar e Saúde. Pós-graduada em Dependências, Abusos e Compulsões e Arteterapia. Como escritora, tem como objetivo levar temas contemporâneos ao público de forma franca e humorística, sempre com uma pitada de Psicologia/Autoajuda. Página no Facebook: www.facebook.com/escritoracristinachen. Site: www.cristinachen.wix.com/livros
UOL CURSOS TECNOLOGIA EDUCACIONAL LTDA, com sede na cidade de São Paulo, SP, na Alameda Barão de Limeira, 425, 7º andar - Santa Cecília CEP 01202-001 CNPJ: 17.543.049/0001-93