O corpo como estranho de si mesmo: a arte e a (des)construção de identidades

Arte e Psicologia.
Arte e Psicologia.

Psicologia

01/11/2014

Não há tempo a perder. Não se pode dar ao luxo de criar seus próprios conceitos por meio de reflexões e resignificações. Quem não agiliza, atrapalha; quem não otimiza, decai; quem não se adapta, some. Vivendo em ritmo acelerado, tendo tais valores crivados em sua constituição psíquica, o indivíduo assume conceitos pré-estabelecidos como próprios, e não é de se surpreender que os valores artísticos sejam também adquiridos desta forma. Espera-se da arte, em sua forma mais usual, a presença de um modelo de beleza e harmonia, ideais igualmente aplicados ao corpo quando este é tomado como elemento artístico. Na quebra desta expectativa, é instaurado o sentimento de estranhamento, fundamental para que se reconfigure, mediante a reflexão, conceitos anteriormente estabelecidos, produzindo neste caso, novos sentidos para o corpo. A modernidade impulsiona o sujeito ao movimento demandando mudanças e, neste sentido, novas formas de ver, e perceber a figura do corpo, traz consigo novas percepções do outro e de si mesmo. Para alguns artistas modernos o corpo aparece como objeto estético e não como simplesmente suporte para seus trabalhos. Ele ocupa um lugar diferente do esperado, o que gera estranhamento. Seu remodelamento constante produz novas percepções do outro e do próprio artista. Tal metamorfose é uma característica da modernidade, sempre grávida de mudanças e muitas vezes comprometida com a crítica ao seu próprio tempo, isto é, à moral burguesa com a qual surge e entra em crise. O trabalho que realizamos faz parte de uma experiência de estágio em psicologia social, e visou analisar se tais considerações acima feitas podem ser corroboradas a partir de uma perspectiva em psicologia da arte: a elaborada por Vigotski (1999). Para tal, escolhemos obras de artistas contemporâneos e as analisamos, conforme método descrito logo após as considerações teóricas sobre (1) arte, (2) psicologia da arte e (3) corpo e arte do corpo (Body art) na atualidade. Fixamos nossa análise em artistas do século XX e do atual, sem entrarmos na discussão sobre o que significa modernidade hoje, isto é, não avaliamos se estamos ou não na chamada pós-modernidade. Apenas consideramos que, em geral, quando se fala em modernidade, se remete à questão da identidade e de seus processos de produção, incluindo nestes últimos o fazer artístico e sua recepção.


Considerações sobre a arte

O que se entende por arte? Para Bosi (1991), é impossível separar o conceito de arte do contexto cultural e temporal em que tal pergunta é feita. Com efeito, arte para os gregos antigos implicava uma noção de equilíbrio, harmonia; já para os românticos, no século XIX, uma busca de verdades interiores e em contraste com o que era tido como bem estabelecido. No entanto, Bosi considera que o processo artístico implica o fazer, o conhecer e o exprimir. A arte é um fazer, um conjunto de atos que modificam a forma, ou seja, transformam a matéria, seja ela cultural ou natural. Se a arte é a reconfiguração de conteúdos adquiridos, arte é também forma de expressão e conhecimento. Já Mukarovský (1997) explicita que a atitude estética é a atenção dirigida para a realidade, que é transformada em signo artístico e, para tanto, é criada a obra de arte, para causar no observador uma atitude estética, tentando exprimir e alcançar a relação do homem com todo o universo. Já Rosenfeld (1993) afirma que os valores estéticos são decisivos para avaliar uma obra de arte, embora esta possa ter também conotações morais e cognitivas.

 

A psicologia da arte

Um dos psicólogos que se interessaram pela questão da arte foi Vigotski que, assim, elaborou não só uma proposta de psicologia, como de psicologia da arte. Quando sistematiza sua proposta, ele afirma:

Achamos que a ideia central da psicologia da arte é o reconhecimento da superação do material da forma artística ou, o que dá no mesmo, o reconhecimento da arte como técnica social do sentimento. Achamos que o método de estudo desse problema é o método analítico objetivo, que parte da análise da arte para chegar à síntese psicológica: o método de análise dos sistemas artísticos dos estímulos. Com Hennequin, consideramos a obra de arte como um “conjunto de signos estéticos, destinados a suscitar emoções nas pessoas”, e com base na análise desses signos tentamos recriar as emoções que lhes correspondem (VIGOTSKI, Psicologia da Arte, 1999, p.3).

Segundo Carvalho (2007), por material, Vigotski entende tudo o que o artista usou e que já existia antes e independentemente da obra; já a forma, é a destruição desse material ou conteúdo. Ou seja, os significados convencionais de uma cultura são transformados, revelando, dessa forma, sentidos que não são comuns. A destruição do material pela forma promove estranhamento e explosão emocional, isso porque a vida passa a aparecer com mais complexidade e cheia de contradições; o estranhamento impulsiona a uma descarga de energia emocional chamada de reação estética, que tanto pode ser consciente, como inconsciente. Resta saber, pois, se, no trabalho aqui realizado, o corpo tomado como objeto estético pode produzir tal tipo de reação. Sua maneira de operar, constituindo as funções sistematizadas.


Corpo e arte do corpo na modernidade

Costa (2004) considera que a ênfase contemporânea dada ao corpo é devida ao remapeamento cognitivo do corpo físico (a transformação de questões psicológicas em problemas cerebrais, por exemplo), e a invasão da cultura pela moral do espetáculo. O corpo, então, tomado como objeto estético, seria uma reação à sociedade do espetáculo? Ou, dito de outro modo e nas pegadas de Vigotski, é causador de estranhamento e de alteração de percepção com relação à idolatria de si mesmo? Segundo Frayse-Pereira (1997), no decorrer dos anos 60 do século XX, desenvolve-se a Body Art e, partindo dela, pode-se remontar ao Expressionismo Alemão, ao Dadaísmo, ao Surrealismo, ao Teatro de Artaud, na tentativa de ir ao encontro de manifestações modernas que encetam poéticas nas quais o corpo toma posse de um lugar fora do comum, e que levam o artista a ocupar o espaço de criador e criatura simultaneamente, transmudando seu próprio corpo em campo de experimentação estética. Nesse sentido, a Body Art tem como proposta a negação da realidade social, normal e estabelecida pela convenção dos hábitos e da disciplina, e vê no corpo e nas emoções a única realidade palpável digna de arte, utilizando, assim, todo tipo de vestígios humanos, quais sejam, fotos, raios X, voz, exames clínicos, cabelos, unhas, excrementos, dentre outros. Frayse-Pereira (1997), no que se refere à Body Art, diz que nela a poética compreende um amplo espectro de expressões diferenciadas e profundamente subjetivas, tais como atos sadomasoquistas, culto ao corpo, autoflagelações, performances, questionamento da sexualidade e toda uma gama de experiências plásticas que têm relação de contiguidade com experiências teatrais Este tipo de arte suscita uma interrogação no que se refere ao conceito psicanalítico da sublimação, pois, como apontam Meiches e Alperowitch “o desenvolvimento do conceito de sublimação na direção da arte faz perdurar até recentemente a ideia de um apaziguamento pulsional, que o contato com os olhos poderia proporcionar” (apud FRAYSE-PEREIRA, 1997, p.52) e, obviamente, se é algo que a Body Art não proporciona, nem ao artista e nem ao espectador, é o apaziguamento, e sim, seu antagônico, pois muitos destes artistas propõem a reflexão acerca da relação primitiva do homem com a morte, e é justo na parte exterior do corpo que se amarga o combate mais pérfido e mais desesperador, porque perdido preliminarmente. Ao espectador fica o vazio interrogador que se restitui juntamente com a angústia, o que, em termos vigotskianos, remete ao conceito de estranhamento produzido pela arte.


Metodologia da experiência de estágio


Para alcançar os objetivos da experiência de estágio, foi utilizado o método objetivo analítico, segundo o qual se pode chegar ao psiquismo do homem social, particularmente no que se refere à esfera das emoções, por meio da própria obra de arte. Assim, “o psicólogo é levado a recorrer mais amiúde precisamente a provas materiais, às próprias obras de arte, e com base nelas recriar a psicologia que lhes corresponde, para ter possibilidade de estudar essa psicologia e as leis que a regem.” (Vigotski, 1999, p. 26). Em outras palavras: “O sentido geral desse método pode ser expresso na seguinte fórmula: da forma da obra de arte, passando pela análise funcional dos seus elementos e da estrutura para a recriação da resposta estética.” (p. 27) Tal método se mostra relevante, pois pode-se afirmar que as relações entre Arte e Psicologia, como podem ser vistas em Vigotski (1999) ou Carvalho (2007), são dialéticas, isto é, tanto a arte participa do processo de constituição da subjetividade, como a Psicologia contribui para que determinadas abordagens artísticas sejam feitas. Em função da bibliografia consultada (especialmente Frayse-Pereira, 1997), foram escolhidas obras dos seguintes artistas: Ana Mendieta, Hannah Wilke, Marina Abramovic, Matthew Barney, Shirin Neshat, Spencer Tunick, Orlan e autores não conhecidos pelo nome e que se utilizam da técnica de escarificação (scar = cicatriz em inglês) e, assim, tomam o corpo como objeto estético. As obras foram analisadas segundo suas composições – cores, traços, luz, entre outros – e possibilidades de interpretação em um todo, que se constituíram como sínteses psicológicas ou reações estéticas.


Principais resultados


Em linhas gerais, pode-se afirmar que as obras analisadas indicam que o corpo tomado como objeto estético aparece de forma diferente do corpo cotidiano, estereotipado. Uma ideia de mudança sempre aparece. Por exemplo, no trabalho de Ana Mendieta, a queima da própria imagem remete à negação de uma identidade fixa e à construção de uma nova subjetividade. Algo como uma espécie de “purificação” parece ser realizada no próprio corpo que, tal como uma fênix, ressurge das cinzas. O trabalho com o corpo muitas vezes denuncia e questiona seu aprisionamento em normas sociais. O corpo calado, censurado, passivo, produz uma reação estética de perplexidade ou estranhamento, como que a indagar sobre si mesmo e sua condição no mundo dos Homens. Os trabalhos de Mathew Barn e Shirin Neshat são exemplos desse tipo de abordagem. Neste sentido, como afirma Frayse-Pereira (1997), pode-se questionar certa compreensão do conceito freudiano de sublimação, que pressupõe a arte como uma forma de manter reprimidos certos desejos, considerados socialmente inadequados. Nos trabalhos analisados, temas como a sexualidade e seus “desvios”, a exemplo das obras realizadas por Marina Abramovic, aparecem de forma clara. A questão da morte e do vazio emerge em função do corpo apresentado em estado de decomposição, desagregação, ou como objeto de perfuração ou de dor. As obras de Hannah Wilke e Mathew Barney ilustram o trabalho com essa temática. O papel sócio-político da mulher também surge na elaboração poética dos corpos, como no trabalho de Shirin Neshat, cujas imagens vão à contramão da cultura patriarcal islâmica. Já o corpo, tal como utilizado por Spencer Tunick, produz uma reação de estranhamento, na medida em que ocupa lugares e posições que o distanciam de sua inserção da vida cotidiana. Uma de suas obras quebra o pragmatismo do cotidiano, colocando o corpo humano na posição de rebanho. Assim, o trabalho artístico com o corpo constitui uma beleza que, paradoxalmente, pode ser entendida como uma estética do feio. Mas é bela, pois é forma.

Autores: Marinho, V. M. G., Carvalho, A.M., Torres, A.R., Santana, A.B., Bezerra, A. C. P., Heins, A., Hucke, B. F., Dias. D. M., Torres, G.G., Lan, O. C., Neto, A.F.


Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 2003.

CARVALHO, Alex M. Arte e Psicologia: Uma relação delicada. In: Núcleo de Estudos e Pesquisas Psicossociais do Cotidiano. Introdução à Psicologia do Cotidiano. São Paulo: Expressão & Arte, 2007.

COSTA, Jurandir Freire. Comportamento. Notas sobre a cultura somática. In: O vestígio e a aura. Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. 244p.

FRAYSE-PEREIRA, João A.; Acrobacias da identidade: o artista e seus duplos na modernidade. In: CARDOSO, Irene, SILVEIRA, Paulo (org). Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalíticas. São Paulo: HUCITEC, 1997.

MUKAROVSKÝ, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Estampa, 1997.

ROSENFELD, A. Texto/Contexto II. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

VIGOTSKI, L. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Vânia M. G. Marinho

por Vânia M. G. Marinho

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente realiza atendimento em consultório particular localizado no bairro de Santana, zona norte de São Paulo. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em atendimento Individual no tratamento e prevenção na área da Saúde Mental. - e-mail: psicovmgm@gmail.com

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