O evangélico e a morte: representações no movimento neopentecostal
O EVANGÉLICO E A MORTE: REPRESENTAÇÕES NO MOVIMENTO NEOPENTECOSTAL.
Psicologia
23/08/2015
INTRODUÇÃO
A morte e suas representações
A consciência da finitude, entre outras coisas, é o que difere os seres humanos das outras espécies animais, no entanto, saber que a morte é um fato inevitável e irreversível é fonte de sofrimento e angústia. Entretanto, é importante compreender que a morte, apesar de temida e negada, é parte constituinte do processo de desenvolvimento humano. A impossibilidade de reverter à morte evidencia a impotência do ser humano diante de tal realidade. A morte é inevitável e por mais que se faça para impedir ou postergar sua chegada, o fato é que a qualquer momento ela virá. Para Kovács (1992), na pós-modernidade há um processo denegação da morte; ao invés de ser concebida como um fato natural da vida está é encarada como derrota, vergonha e perda, sendo explicada como um erro de percurso. A autora ainda destaca que, “a morte faz parte do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade. Nos primeiros meses de vida a criança vive a ausência da mãe, sentindo que esta não é onipresente. Estas primeiras ausências são vividas como mortes, a criança se percebe só e desamparada“ (p.03). No decorrer dos séculos com avanço da tecnologia e da medicina, a morte passou a ser considerada como fracasso, deixando de ser concebida como uma condição do processo fisiológico humano. Por conseguinte, a possibilidade de sua presença passou a ser um assombro. Essa maneira de conceber a morte no atual contexto tem dificultado a elaboração do luto e das perdas que se enfrentam durante a vida, assim, sua negação é o gatilho para a falta de sentido existencial. Para Kovács (1992), a falta de rituais que favoreçam a despedida do morto é o que impede o processo de elaboração do luto e consequentemente as dificuldades em “deixá-lo ir”.
É importante destacar que ao longo dos séculos a humanidade atribuiu diferentes significados para a morte. De acordo com Kovács (1992), no período medieval a representação que prevalecia era da morte domada, que corresponde ao conhecimento da trajetória de sua morte a partir da observação de signos naturais, avisos e convicção interna. Nesse período a morte
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era celebrada como evento público em um cerimonial composto por três atos: 1 –lamento da vida; a evocação triste, mas discreta dos seres, das coisas amadas; 2 –o perdão dos companheiros que rodeiam o leito do moribundo; 3 –a absolvição sacramental. Nesse ritual eram aceitas manifestações de tristeza e dor pela comunidade, o que favorecia a elaboração do luto e uma morte mais digna ao moribundo a partir do reestabelecimento entre os vivos e os mortos. Nesse período da história (Idade Média) existia a preocupação com a vida após a morte e o medo do julgamento da alma a partir da visão cristã no ocidente. Nesse contexto, o testamento era uma forma de garantir um bom lugar na eternidade, o que revelava uma atitude piedosa do morto (KOVÁCS, 1992). Entre os séculos XVII e XVIII existia o medo de ser enterrado vivo; motivo pelo qual os rituais eram estendidos chegando há durar 48 horas após a morte. Era a confusão entre a vida e a morte, visto que não existiam medidas tecnológicas que atestassem que a pessoa estava realmente morta. Havia também a crença de que a alma não se separava do corpo de imediato, permanecendo no período de sete dias transitando entre o túmulo e a casa da pessoa que morreu. Nesse período aconteciam rezas e orações, assim como encomendas demissas pela alma do morto, as missas de corpo presente (KOVÁCS, 1992). No século XIX-de acordo com Kovács (1992) -a morte passou a ser caracterizada como romântica, a partir da qual o morto poderia descansar eternamente de seu sofrimento terreno e encontrar seus familiares e amigos que já haviam morrido. Nesse período a morte passa a ser desejada; era a possibilidade de libertação, evasão e fuga para o além. Entretanto significava a ruptura e a separação insuportável da vida terrena. A morte escancarada e sua banalização é outra questão que merece atenção. Kovács (1992) caracteriza a morte escancarada por processos violentos e inesperados (acidentes e assassinatos) que integram a vida como um elemento invasor, o que pode gerar sua banalização. Na banalização a morte passa a ser encarada de forma indiferente, como um mecanismo de defesa que visa à proteção contra sua chegada inesperada. Nesse contexto, a presença de uma pessoa acidentada e morta no meio da avenida, representa apenas um empecilho ao tráfego. A banalização da morte a torna tão habitual para ser notada e excessivamente habitual para causar emoções intensas (BAUMAN, 1998 apud MELO, 2012).
Outra questão relevante sobre a morte é a fase do desenvolvimento cognitivo que o indivíduo se encontra. Em cada fase da vida a morte é encarada de forma diferente. Um estudo
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realizado por Torres (1999 apud MELO, 2012), que trabalhou a percepção de morte a partir da teoria de desenvolvimento de Jean Piaget (1896-1980),“demonstrou que a percepção de morte pela criança é um processo gradual e dependente dos recursos intelectuais de que ela dispõe, os quais sinalizam o período de desenvolvimento cognitivo em que a criança se encontra”(p.244).No estágio pré-operatório, a criança não distingue entre objetos e seres animados e inanimados, nesse estágio não há percepção de morte; no estágio das operações concretas a criança é capaz de perceber a morte pela imobilidade de alguns objetos, (animais de estimação que não se mexem mais) e por sua irreversibilidade. É no último estágio –operações formais–que a criança é capaz de compreender a morte como um evento universal e irreversível, o fim do processo de desenvolvimento(TORRES, 1999 apud MELO, 2012).É a partir da adolescência que acontece a compreensão definitiva da morte, nesse período o adolescente é capaz de entender a morte por seu próprio intelecto. Ele sabe que todas as pessoas morrerão um dia, inclusive ele mesmo (MELO2012). Considerando as fases de desenvolvimento descritas acima, é necessário entender como a visão de morte perpassa os estágios de desenvolvimento que se sucedem a adolescência. Na primeira fase da vida adulta os jovens procuram: assumir um lugar social se envolvendo em atividades profissionais e conjugais, essa atitude caracteriza o aumento das responsabilidades com a vida em sociedade; o desejo de construção de uma família; e necessidade de total autonomia em relação aos pais (BARBOSA; MELCHIORE & NEME, 2011). Nessa fase há um grande dispêndio de energia para atividades características da vida adulta, o que não inclui uma grande preocupação com a morte (KOVÁCS, 1992). Por volta dos 40 e 50 anos o adulto passa por algumas mudanças: limitações em seu estado fisiológico; a saída dos filhos de casa; a possibilidade e/ou perda de pessoas próximas (pai e mãe) e os sinas de envelhecimento se manifestam de forma mais evidente. O adulto pode passar pela “crise da meia-idade”, período no qual vai se conscientizando da própria morte e de sua proximidade. Esse também é um período de revisão do que foi vivido até então e dos principais papéis desempenhados, nesse período a morte passa a ser uma realidade não tão distante (KOVÁCS, 2002).
Na velhice – mais ou menos a partir dos 65 anos – as perdas começam a ser maiores. O declínio da saúde e as limitações que se sucedem requerem a renúncia de várias atividades e
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consequentemente uma desaceleração da produtividade. Contudo, nesse período a morte pode não ser o principal temor. É frequente a concepção de que o medo da morte é mais presente entre os idosos. Todavia, o que parece mais assustá-los são as incertezas relacionadas ao período que antecede a morte, como as dúvidas quanto ao local em que irão residir no futuro, ou mesmo quem vai cuidar deles, se adoecerem (BARBOSA; MELCHIORE & NEME, 2011, p. 176). O que fica evidente é que a maneira de se conceber a morte é diferente em cada fase do desenvolvimento humano, assim, é necessário compreender -além das singularidades –em qual fase o sujeito se encontra, contudo deve-se evitar enquadrá-lo e/ou reduzi-lo a modelos teóricos, pois o desenvolvimento humano é bem mais complexo e de difícil apreensão. Outro aspecto importante que contribui na concepção de morte é a religiosidade. Num estudo realizado por Miranda (1979) e Kovács (1985), que mediu o nível de ansiedade diante da morte entre evangélicos, católicos e ateus, verificou-se que o grupo de evangélicos, considerados como muito religiosos, apresentou menor ansiedade diante da morte que católicos (grupo mais heterogêneo) e ateus. De acordo com a autora, o grau de certeza/incerteza é o que tem mais relação com o medo da morte, ou seja, o nível de envolvimento religioso de cada um (KOVÁCS, 1992). É importante destacar que a percepção da morte tem significativo impacto no tipo de vida que se leva. Para Kovács (1992), “a forma como a vemos certamente influenciará a nossa forma de ser. Entrelaçamos vida e morte, durante todo o nosso processo de desenvolvimento vital”(p.02). Desta forma, é necessário considerar que o contexto neoliberal –no qual a pregação do consumo e do individualismo ganha cada vez mais força -teve forte impacto na percepção religiosa dos evangélicos, o que pode ser percebido com o grande crescimento das igrejas neopentecostais. Do pentecostalismo ao neopentecostalismo O pentecostalismo começou no Brasil à mais de 100anos. Nesse período centenas de novas igrejas foram fundadas e diversas mudanças aconteceram em seu interior, implicando numa complexidade e hetegoneidade desse movimento. Mariano (1996)divide o movimento pentecostal em três “ondas”: pentecostalismo clássico, pentecostalismo neoclássico e neopentecostalismo.
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O pentecostalismo clássico, que abrange o período de 1910 à 1950a partir da fundação da Igreja Cristã no Brasil (1910 em São Paulo) e Assembleia de Deus (1911, Pará) sendo difundidas em todo o Brasil. A principal características dessa onda é o anticatolicismo, ênfase no dom de línguas, radical sectarismo e ascetismo de rejeição do “mundo”, características que se mantém (em sua maioria) até hoje (MARIANO, 1996). O pentecostalismo neoclássico teve início no ano de 1950 quando chegaram a São Paulo dois missionários norte-americanos da International Church of the Foursquare Gospel. Esses missionários criaram a Cruzada Nacional de Evangelização, iniciando um movimento caracterizado pela “cura divina”, uso do rádio (não utilizados pelas pentecostais clássicas até o ano de 1950) e pelo evangelismo constante em tendas de lona. Nesse contexto, houve a fragmentação e expansão do pentecostalismo no país(fundação da Igreja do Evangelho Quadrangular, 1951 em São Paulo; O Brasil Para Cristo, 1955 em São Paulo, Deus é amor 1962 em São Paulo e muitas outras de menor porte)(MARIANO, 1996). O neopentecostalismo-recorte do presente estudo -foi o seguimento que mais cresceu nas últimas décadas. Começou a partir do ano de 1970 crescendo e se desenvolvendo nas décadas que se sucederam. As principais igrejas fundadas nesse seguimento são: Universal do Reino de Deus (1977, Rio de Janeiro), Internacional da Graça de Deus (1980, Rio de Janeiro), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, Goiás) e Renascer em Cristo (1986, São Paulo)(MARIANO, 1996). O neopentecostalismo possui características teológicas e comportamentais bem distintas do movimento pentecostal clássico e neoclássico, sobretudo no investimento em atividades extraigreja, como empresariais, políticas, culturais e assistenciais (MARIANO 1995). Esse movimento incentiva a busca de bens materiais com “campanhas” que envolvem a doação de quantias em dinheiro e até imóveis pessoais. Defendem “que os cristãos, enquanto sócios de Deus ou financiadores da obra divina, estão destinados a ser prósperos, saudáveis, felizes e vitoriosos em todos os seus empreendimentos”(MARIANO, 1996, p. 24). De acordo com Dantas (2011):
Percebe-se, pois, nas denominações neopentecostais, sobretudo na Igreja Universal, uma tendência a acomodação cultural e a integração social, reforçadas pela utilização das mídias eletrônicas para realização do proselitismo de massa, pela participação na política partidária, pela liberalização dos comportamentos e pela adoção dos modelos de gestão
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empresarial para gerir e administrar igrejas, o que lhes confere o status de organizações com fins lucrativos (p.29)A morte, entre os cristãos evangélicos, sempre foi tratada como uma passagem do “reino terreno” para o “reino celeste”, esperada com anseio por muitos. Os cristãos mais clássicos do movimento pentecostal se preocupavam com sua “salvação” e com a possibilidade de uma vida eterna em primeiro lugar. Isso sugere que a morte para eles sempre se tratou de certo prêmio após anos de sofrimento na “caminhada com Deus”. Atualmente, com a chegada dos novos seguimentos evangélicos, sobretudo o neopentecostal, que passa ter considerável participação política e interferência nos rumos do país, pode-se inferir que a morte (tida como “a entrada no reino dos céus”) deixa de ter um caráter transcendental, passando a ser encarada como a interrupção dos “negócios e transações com Deus” aqui na terra, essa é a hipótese desse estudo. Pinezi (2009) comparou o sentido da morte entre neopentecostais e protestantes, e segundo o autor, os protestantes concebem a morte como uma transição dolorosa e acompanhada de rituais que levam a passagem para a vida eterna, assim como um reencontro com os que esperam a redenção da alma para a segunda vinda de Jesus Cristo. Para os neopentecostais, a morte se apresenta como um fato natural, que de certa maneira, significa o fim de uma vida de aquisições que o fiel buscaria se estivesse vivo. Nesse caso, é compreensível que não hajam rituais em torno da morte, somente ritos de cura e prosperidade. Visto sob esse prisma, é provável que a morte no movimento neopentecostal possua características que também divergem com as pentecostais clássicas e neoclássicas. Nesse sentido, compreender a morte e os sentimentos nela presentes (sob a perspectiva dos evangélicos neopentecostais) contribuirá para entender as implicações da pós-modernidade e do neoliberalismo nessa religião, assim como a banalização da morte atinge esse seguimento.
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por Leonidas Valverde da Silva
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie (CCBS-Mackenzie); possui graduação em Psicologia pelo Mackenzie (2016); concluiu pesquisa de iniciação científica pelo PIVIC - Mackenzie (2015). Trabalha com pesquisa em Psicologia do desenvolvimento humano com enfoque em: saúde mental, psicopatologias e suas especificidades; autoestigma, internalização do estigma público por indivíduos com transtornos psiquiátricos.
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