UM ENSAIO SOBRE OS CORTES GENITAIS FEMININOS

Infibulação.
Infibulação.

Psicologia

15/11/2015

Tendo como pano de fundo a questão da universalidade dos Direitos Humanos, foram identificados, com base nos textos Crime, cultura e Justiça: Identidade, diferença e Desigualdade em Torno da Mutilação Genital Feminina, da antropóloga portuguesa Manuela Ivone Cunha (2013), e A política de modificações dos genitais e a questão étnica, das autoras Sara Johnsdotter e Birgitta Essén (2011), alguns dos principais paradoxos que envolvem o discurso sobre os cortes genitais femininos e as e armadilhas que rodeiam a aplicação da legislação sobre estes cortes nas sociedades multiculturais euro-americanas.

Os cortes genitais femininos, doravante designados por CGF, estão envoltos em questões polêmicas de foro moral, sociocultural e jurídico. Moral, pois envolve o debate em torno dos costumes de uma comunidade, e a intenção valorativa que este ato assume quando circunscrito e respaldado num contexto cultural. A cultura, portanto, assume relevo enquanto legitimadora de discursos relativistas, que buscam situar os CGF no seu eixo sociocultural de uma prática ritualística de passagem. Contudo, a questão se torna circunspecta na medida em que as mulheres submetidas aos CGF se tornam objeto da ‘proteção forçada’ dos Estados Ocidentais, por meio de instrumentos jurídicos, na busca pela garantia dos Direitos Humanos Universais.

Os CGF são praticados em algumas regiões de África e Ásia. Cunha (2013) afirma que em termos rituais e simbólicos a práxis equipara-se à circuncisão masculina, posto sua função metafórica de iniciação na vida adulta, pela remoção de elementos anatômicos que estejam conotados com o sexo oposto, ou seja, o prepúcio, como representante dos órgãos femininos, e o clitóris, como representante dos órgãos masculinos, são retirados.

Contudo, segundo Johnsdotter & Essen, (2011), até a década de 70 a existência de tais práticas de CGF era desconhecida pela maior parte da população. O assunto somente veio à tona quando uma feminista radical – Fran P. Hosken apresentou ao mundo o ritual, que chamou de mutilação genital feminina (MGF), praticado pelas próprias mulheres da comunidade.

A designação de circuncisão feminina foi preterida por Hosken e demais feministas em lugar do termo MGF, que trás consigo forte conteúdo ideológico e condicionante de práticas políticas e jurídicas no mundo ocidental até os dias atuais.

O termo MGF automaticamente remete à imagens chocantes de uma brutalidade cometida insensivelmente e à revelia de crianças e mulheres, que têm seus genitais irremediavelmente extirpados, suturados e privados de uma vida sexual e reprodutiva saudável e indolor.

Portanto, tal designação – MGF, por mais que peleje por causas provavelmente nobres, não é o bastante parcial para abranger em seu bojo todas as dimensões dos CGF ritualísticos, que abarcam desde uma inócua punção até a infibulação, além de ser um termo ofensivo, e mesmo contraproducente na luta pela sua prevenção (Johnsdotter & Essen, 2011).

Por essas razões outros termos mais neutros, como incisão genital feminina (IGF); excisão genital feminina (EGF) ou cortes genitais femininos (CGF) foram adotados por outras organizações menos radicais.

 

Os CGF muitas vezes são aceites e desejados pelas mulheres por fazerem parte de suas tradições. Portanto, como explicação para validar o discurso desta prática ‘abominável’, atribuiu-se ao patriarcado a culpa pela ‘castração mental’ das mulheres, que não teriam mais que uma ‘falsa consciência’(Gyn, 1977 apud Johnsdotter & Essen, 2011), e, portanto, seriam incapazes de consentir e defender tais práticas de violência masculina.

A essa altura identifica-se como um dos principais paradoxos, que envolvem os discursos relativos aos CGF, a discrepância da rotulação da MGF de violência masculina, uma vez que, o procedimento é providenciado, executado e defendido pelas próprias mulheres. Mesmo que tais mulheres (adultas) tenham introjetado inconscientemente valores do patriarcado de subjugação feminina, o fato de consentirem e compactuarem com a tradição deve ser levado em consideração pelas sociedades ocidentais.

Porém, tal posicionamento salvaguarda a integridade física das crianças, e apenas defende que mulheres adultas no contexto das civilizações euro-americanas tenham preservados seu livre arbítrio sobre seus corpos assim como as mulheres ocidentais (Cunha, 2013).

No entanto, o que se verifica é a reação protecionista de muitos países que com base nos pressupostos do universalismo dos Direitos Humanos incluíram em suas legislações a proibição de qualquer procedimento nos genitais externos das mulheres. Portanto, a questão que se coloca, de acordo com Cunha, com base nos mesmos pressupostos de igualdade, é: “Mas de quais mulheres estamos falando?”.

Visto que é crescente a busca de procedimentos estéticos nos genitais externos de mulheres ocidentais. Muitas vezes mais complexos, permanentes e danosos do ponto de vista médico, do que as IGF realizadas no âmbito dos rituais das sociedades africanas e asiáticas.

No entanto, não é sequer razoável ou imaginável que qualquer mulher ocidental seja punida ou proibida de modificar seus genitais para atender às demandas da sociedade do culto ao corpo, à beleza e aos padrões esteticamente aceites como desejáveis na atualidade. Não se coloca em questão a autonomia e capacidade de autodeterminação dessas mulheres, que, tal quais as africanas, também poderiam ser consideradas vítimas do patriarcado. Tão pouco se questiona os efeitos médicos de tais procedimentos.

Todo esse quadro faz supor que se presume a vitimização da mulher africana per si. E remete para a questão do pluriculturalismo em associação com o relativismo cultural em confronto com a questão da universalidade dos Direitos Humanos que é o parâmetro pelo qual medimos tal debate.

Nas sociedades pós-coloniais vislumbram-se dois panoramas referentes à lógica cultural. O primeiro pressupõe a existência de um só coletivo com o mesmo conjunto normativo comum. O segundo quadro é pluricultural, possibilitado pela coexistência de várias coletividades formadas pelas migrações de populações pós-coloniais e aquelas potencializadas pela globalização (Cunha, 2013). Tal quadro é compreendido pela lógica multicultural na qual a prática de um delito é associada a uma lógica cultural e a sua repressão a outra, o que pressupõe que tais culturas são homogêneas e estanques.

Este panorama dualizado, coloca em questão a fragilidade e as armadilhas envoltas nos debate público sobre algumas práticas de minorias étnicas, como é o caso dos CGF. Haja vista que sempre será arriscado discutir este tema tendo como referência dicotomias tais como, cultura vs indivíduo; relativismo vs universalismo; diferença cultural vs direitos humanos. (Cunha, 2013).

Portanto, deve-se ponderar dentre cada discurso e não optar por apenas um em detrimentos dos demais. É certo que os indivíduos são os portadores dos direitos e não grupos coletivos, mas também não se pode presumir uma natureza universal dos indivíduos fora do seu contexto social, visto que a humanidade é construída a partir das relações sociais e não o inverso (Cunha, 2013; Turner, 2007 apud Cunha, 2013).

Sendo assim, no que concerne à problemática dos CGF esta deve ser compreendido dentro do seu contexto histórico e em toda sua amplitude, não apenas como uma violência contra a mulher, mas também como um fator positivo para algumas delas.

A visão holística do problema permite fugir da exposição sensacionalista que tem condicionado as práticas políticas e legislativas. Visto que a previsão de uma lei específica para coibir e punir a prática da MGF em lugar de reprimi-la com base na lei geral, no quesito ofensa à integridade física, apenas incorreria no risco de estigmatizar (ainda mais) as minorias étnicas, uma vez que a criação de uma lei específica para combater os CGF incorreria na criminalização de uma prática cultural em particular.

Sendo assim, é possível identificar várias armadilhas em que incidiria a aplicação da Lei específica. Elencadas abaixo:

1. Não traria garantias individuais;

2. Risco do exacerbamento identitário;

3. Variadas apropriações espúrias e excludentes;

4. Contribuição para o aumento do secretismo e clandestinidade da prática;

5. Afastamento das mulheres dos serviços de saúde;

6. Dificultação da promoção de rituais alternativos com menores implicações físicas;

7. Relativamente à proteção das crianças seria contraproducente tratar a excisão como negligencia e maus-tratos, visto que na visão dos pais é o oposto;

8. Com relação ao asilo internacional, deveria poder recorrer a outras figuras que não à tortura, mas com mesma eficácia;

9. A questão do consentimento não é levada em consideração.

Todos estes pontos concorrem para a percepção da criminalização da MGF com base numa lei específica como contraproducente, discriminatória e insensível ao contexto histórico e cultural em que se insere; além ser eternizante, uma vez que julga certas culturas com base nos pressupostos da cultura ocidental.


REFERÊNCIAS


Cunha, M. I. (2013). Crime, cultura e Justiça: Identidade, diferença e Desigualdade em Torno da Mutilação Genital Feminina. Construir a Paz: Visões Interdisciplinares e Internacionais sobre Conhecimentos e Práticas, 3, 89–99. Retrieved from http://repositorium.sdum.uminho.pt/request-item?handle=1822/23669&bitstream-id=117100

Johnsdotter, S., & Essen, B. (2011). A política de modificações dos genitais e a questão étnica. Questões de Saúde Reprodutiva, 18(35), 43–53. Retrieved from http://www.mulheres.org.br/revistarhm/revista_rhm5/revista5/rhm5_artigo_043.pdf

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Nathália Cristina Evangelista

por Nathália Cristina Evangelista

Graduada em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande - MS. Mestre em Crime, Diferença e Desigualdade, pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, Portugal. Cursando MBA em Gestão de Pessoas pela Anhanguera Educacional.

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