Regras e política de portas abertas - animais de laboratório

Veterinária

01/01/2008

Esse binômio garante a continuidade dos estudos com animais de acordo com altos princípios éticos

A discussão sobre o uso de animais para experimentação em laboratório atrai opiniões diametralmente opostas com facilidade. Afinal de contas, são poucas as pessoas que em algum momento da vida não tiveram um animal de estimação. Cães e gatos foram amplamente utilizados durante os séculos XIX e XX em estudos que definiram os princípios da homeostasia e as bases fisiológicas da prática médica. Tanto que, já em meados de 1919, o uso de animais em laboratórios foi questionado por diversos segmentos da população americana. Não fosse a liderança exercida por Walter Cannon, então professor de fisiologia da Faculdade de Medicina da Harvard, o Senado americano teria aprovado projeto de lei de autoria do senador Henry L. Myers, de Montana, banindo a experimentação com cães1. O projeto Myers contava com o apoio da opinião pública dado os relatos de heroísmo praticados por cães durante a Primeira Guerra Mundial no resgate de soldados feridos no campo de batalha. Além disso, a medicina científica encontrava-se enfraquecida devido à incapacidade de fazer frente às epidemias de poliomielite em 1916-17 e de gripe em 1918-19. Para familiarizar-se com a matéria, o Senado convocou audiências com os líderes do movimento, os quais denunciaram os experimentos como cruéis e secretos. Cannon levou ao Senado cientistas, professores e alunos de medicina para que testemunhassem sobre a natureza e utilidade dos experimentos. O projeto de lei fracassou, mas Cannon sabia que isso era só o começo.

Em abril de 1920, cem mil assinaturas foram coletadas na Califórnia em apoio à proibição da pesquisa com animais naquele estado, garantindo a realização de um plebiscito na eleição seguinte. A opinião pública foi sensibilizada com relatos de que os cientistas se valiam da proteção das universidades para torturar animais em laboratórios. Cannon foi chamado para ajudar e liderou uma campanha de esclarecimento da opinião pública, fazendo com que a proposta fosse derrotada. Não obstante, tendo em vista o rápido crescimento do movimento de proteção dos animais, Cannon propôs que todos os laboratórios adotassem as normas para pesquisa com animais elaboradas pela Associação Médica Americana. Além disso, Cannon sugeriu que os laboratórios instituíssem uma política de portas abertas, a qual foi muito mais difícil de ser aceita, em função do medo das invasões e ataques dos protetores dos animais. Mais ou menos ao mesmo tempo, o conhecido naturalista e escritor Ernest Harold Baynes foi atraído pelo movimento de proteção dos animais, tendo decidido investigar as denúncias de torturas. Baynes começou por visitar os laboratórios de Cannon, certo de que sua entrada seria barrada. Para sua surpresa, Cannon, em meio a um estudo do funcionamento do sistema nervoso simpático, não somente estendeu-lhe as boas vindas como lhe explicou detalhadamente o propósito e as etapas dos experimentos em andamento. A visita mudou a opinião de Baynes, o qual ficou impressionado com o tratamento dos animais antes e depois dos experimentos, muito diferente do que havia sido relatado pelos artigos dos jornais. Baynes visitou também laboratórios da Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins e do Instituto Rockefeller, tendo obtido impressões semelhantes às de Harvard. Em julho de 1921, Baynes publicou um artigo em defesa dos cientistas, o qual teve forte apoio em editorial do The New York Times. A política de esclarecimento e de portas abertas, instituída por Cannon, foi muito bem-sucedida, tendo sido adotada como estratégia para derrotar os movimentos que se seguiram contra o uso de animais de experimentação.

Durante as décadas de 1980 e 1990, a experimentação em animais deu lugar ao apogeu da biologia molecular. O estudo de genes e proteínas utilizando-se de modelos celulares foi tão disseminado que os estudos fisiológicos, envolvendo animais de experimentação, perderam força. Em várias universidades, incluindo a Faculdade de Medicina de Harvard, o departamento de Fisiologia foi reorganizado e mudou de nome. Entretanto, a possibilidade de criar linhagens de animais com inativação ou indução de um ou mais genes, descoberta que resultou no Prêmio Nobel de Medicina em 2007, deu um novo impulso à pesquisa com animais. De uma hora para outra, tornou-se necessário compreender a fisiologia desses novos animais, o que valorizou muito o conhecimento fisiológico e popularizou a expressão “biologia dos sistemas”. Com isso, modelos animais voltaram a ser quase que obrigatórios para publicação em revistas de alto impacto.

Hoje, os protestos e movimentos contra a experimentação em animais continuam ocorrendo. Outro dia mesmo, quando estava chegando ao trabalho, deparei-me com pessoas protestando nas portas de um dos prédios de pesquisa da rua em que trabalho. Os manifestantes estavam sob a vigilância da polícia, tendo em vista as ocorrências de invasão, depredação e libertação de animais antes registradas. Estima-se que no Reino Unido o terrorismo em laboratórios tenha causado aproximadamente 150 milhões de libras em danos, nos últimos 25 anos. A Frente de Libertação dos Animais (ALF, na sigla em inglês) foi responsável por dezenas de ataques recentes nos EUA, tendo assumido a autoria do ataque à universidade de Minnesota, em 1999, o qual resultou em danos da ordem de US$ 750 mil em laboratórios que estudam a doença de Alzheimer e a vacina contra o câncer de mama. Apesar da política de portas abertas continuar na Faculdade de Medicina de Harvard, o acesso às dependências dos animais é bastante restrito, controlado por vigilantes, portas eletrônicas, leitores de polegar e palma da mão, tudo a um custo altíssimo – aproximadamente US$ 1,20 por gaiola contendo 4 camundongos, por dia.

Por enquanto, os estudos com animais são imprescindíveis para o avanço do conhecimento médico. Mesmo cem anos mais tarde, a receita pioneira oferecida por Cannon – regulamentação e política de portas abertas – ainda parece ser o melhor antídoto contra movimentos de proteção dos animais. Essa política é oficializada por regulamentação federal, a qual exige que cada instituição tenha um comitê que supervisiona as pesquisas com animais. Cada estudo necessita de uma autorização específica, com um nível de detalhes impressionante. Aqui na faculdade, o pesquisador precisa, por exemplo, demonstrar que o estudo proposto é original, não se tratando de simples confirmação de outro trabalho. O pesquisador tem também que convencer o comitê de que não existem formas alternativas pelas quais as mesmas informações poderiam ser obtidas. Mesmo no caso de pequenas cirurgias, camundongos e ratos têm que receber analgésicos do tipo Tylenol, com o objetivo de evitar ou minimizar qualquer tipo de estresse; os cuidados com animais maiores, como cães, são muito mais rigorosos. Membros do comitê freqüentemente vistoriam os laboratórios e operam um disque-denúncia anônimo, através do qual denúncias de maus-tratos aos animais podem ser feitas.

A observância desses procedimentos tem, de uma forma geral, assegurado à opinião pública que os cientistas atuam dentro dos mais altos padrões de moralidade e ética. Ao mesmo tempo, os movimentos de proteção dos animais continuam a existir e a exercer, à sua forma, um papel importante de supervisão dos cientistas. Na medida em que ambas as partes evitem exageros, esse mecanismo iniciado por Cannon permitirá a continuidade das pesquisas com animais e o avanço do conhecimento médico até que modelos experimentais alternativos tenham sido desenvolvidos.

 por Antonio Bianco

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